8.7.18

#646

Na página rasurada
a consciência serve-se fria.

7.7.18

#645

Métrica.
Liga metálica.
Metáfora.
Matemática.
Mnemónica.

Anestesia

Consegui trazer
o diamante em bruto
no periscópio amuralhado. 
Trouxe ao saber
a história que encerra a história
capitel esculpido pelos braços não tementes. 
Não sabia
deslindar as entrelinhas
até descobrir o avesso da página
a escultura indelével sufragada. 
Soube encontrar as sílabas no lugar
as vírgulas diligentes
a gramática 
num lugar não indecoroso. 
Ou talvez julgasse
terem estas sido as ilações
depois de aplacar
o mar tumultuoso.

Agora
já não uso os verbos no pretérito.
Agora
desconfio das coisas
quando se revelam em sua claridade. 

Desmonto as consagrações
os (afinal) volúveis imperativos
os edifícios cerceados 
em seus alicerces incorruptíveis
as balas oferecidas aos provocadores
as atrozes linhas 
perfeitas como leito de palavras 
sem mácula
do mar calmo 
que esconde subterrâneos remoinhos. 
Sob um campo de nuvens
ouço um avião que se fará à pista;
é tudo o que me é dado a saber 
– é pouco e muito, 
ao mesmo tempo. 
Arroteio a sementeira do pensamento
e intuo
(desmentindo lugar a qualquer certeza)
a sua cansável condição
um muro que pretendia coerente,
sem a combustão da sua fragilidade. 

Volto temporariamente 
ao verbo no pretérito:
desenganei o coloquial estatuto do pensamento:
encontrei-o
nómada e sem pertença ancorada
no incerto lugar onde se desmente
sucessivamente. 

Passei a saber
que muito saber
tem pouca serventia.

6.7.18

Manual da preguiça ao entardecer

A gata
ao colo do entardecer. 
Na instrução da preguiça 
enquanto o dia se funde no ocaso. 
Pergunta,
no domínio de seu silêncio, 
se amanhã 
será outro prodigioso dia 
benzido pelo sol. 
Sabe, a gata,
a maioria das pessoas 
está arreliada com o verão. 
Acusam-no de estar envergonhado. 
Exigem um estio como dantes. 
A gata não se importa. 
Desde que o entardecer 
seja cativo do sol desmaiado 
e a preguiça assim acarinhada.

Fugi da cidade

Fugi da cidade
da teia monstruosa de olhares
dos gatos vadios, furtivos
da coreografia de vaidades
do magro destino imerso no vazio
da frenética adulação ensimesmada
das casas sem janelas
dos rostos desapalavrados
da boçal revelação dos habitantes
dos apoderados que tresleem a cidade
da indiferença das almas despovoadas
da imensidão das praças sobrelotadas
das meteóricas aparições dos notáveis
dos notáveis 
(outra vez: dos notáveis
putativos filhos diletos
autoconsagrados embaixadores 
do sentir da cidade,
seus adulteradores máximos);
fugi da cidade
do que se esgrime no trânsito demencial
das árvores enodoadas pelo ar impuro
dos mendigos de olhos encovados
da farsante vacina da modernidade
do turismo panaceia, ou turismo pandemia
do sol embaciado na névoa teimosa
da geografia da cidade
e da sua garbosa identidade
(como se diferença fosse superioridade).
Fugi da cidade.
Agora
tenho uma janela
e o mar inteiro sob as minhas mãos.
(E sinto-me maior que a cidade,
sua provável antítese.)

#644

Se tirar a caução às palavras
elas crescem descarnadas?

5.7.18

Promontório

A sorte do penhasco
é ser promontório soberano
varanda que fratura a paisagem
entre o sopé dominante
e a planície súbdita.
Agitam-se as mãos
enquanto não sobem ao sopé
enquanto não apreciam
o quadro montado num pedestal
a proeminência da varanda alada
mesmo que dê o rosto aos ventos iracundos
e nela todo o frio imponderável
se faça resumir.
Não saberei
se o sabre delicodoce
se pode desembainhar pela imperial pose;
saberei
que de tal ufanar
se esvaecem as veias de sangue 
e em frivolidades arcanas
tudo se decompõe.
A sorte do penhasco
não é a altivez;
não é a cumplicidade com o céu
ali mais junto das mãos 
quase como se num pequeno salto
fosse dissolvida a diferença.
Não cuida,
o promontório,
de assustar os demónios com mitos seus
nem cuida,
outro tanto,
de renegar os mortais que se enfeitiçam
e dele querem exemplo.
Ele há tanta prece,
tanto milagre compósito 
nos interstícios da desrazão,
que o sopé assim vistoso
não pode recusar o estatuto.
Agradeça à geografia
(ou a deus, 
para os que assim quiserem)
o sortilégio da sua centrípeta e altiva
posição.

#643

Perguntei ao sonho
quantas luas eram sua esquadria;
disse-me estar à espera
que a luz se cindisse na candeia.

4.7.18

Morte

Não sei nada da morte. 
A não ser o medo. 
Sinto-me acossado pela morte 
através da morte 
de que me chega notícia. 
A morte dos outros, 
a morte que também me assusta, 
devia ser uma lição. 
Uma lição de vida. 
Para dissipar o significado do tempo 
e assim tê-lo na mão. 
Sabendo que o dia nascente 
é o que está à mão de semear. 
Sem importar
se vem o dia depois. 
Sem importar
se é breve a vida. 
Pois se ela for tutelada 
pela imaterialidade do tempo, 
não se mede pela quantidade. 
A morte devia ser uma lição de vida. 
Para dela sabermos fazer um festim. 
E através da vida, 
esconjurar a morte.

Douro

As minhas mãos sabem 
do aroma de um corpo.
São tutoras de um mapa
nas entrelaçadas vozes de um coro.
Nos raios emergentes da alvorada
a maresia levanta-se na frontaria 
e não sabemos 
do paradeiro dos escombros
dos vultos furtivos;
só tomamos conta
do verbo que sinaliza o despojamento
em estrofes com sílabas dedilhadas
num fundo sem fundo
onde somos património imaterial.
Não é de salvação que se trata;
anotamos num caderno envelhecido
as palavras em falta
mesmo que sejam inventariadas no instante
e delas só sentimos falta
por delas ter havido lembrança.
As gotas do orvalho
desenham diques no vidro da janela;
podíamos certificar
que usando as gotas do orvalho
escrevíamos as palavras em falta
num lado da janela
enquanto na outra metade
combinávamos as palavras sortilégio
as que se soltam do ouro dos nossos dedos
matricial aroma do desejo
no desembaraço dos sentidos hasteados.
Podíamos 
açambarcar o resto da manhã
na quimera à nossa mercê
cingir os corpos em forma de pétala
balbuciar o diadema em transgressão
ou apenas 
capitular no sono heurístico
e na pele dos sonhos 
erguer o sonho mais alto
de que somos curadores únicos.
Diríamos o que apetecesse
contra as convenções
contra os levantamentos 
dos insuspeitos velejadores da decência
a favor da vontade 
da soberania da vontade
sem contracenar com vultos intrusos
e, em total deslimite,
em total inimputabilidade das regras,
diríamos 
como se soletra o amor.
Só para termos mnemónica
e dele tirarmos o alvará centrípeto
as cores imorredoiras
a tábua rasa onde compomos o devir.

#642

Sob os auspícios do lume aceso
o corpo aclarado na fogueira
na noite das rosas vertidas no colo.

3.7.18

D. Sebastião, outra vez

Um garfo hasteado
na gutural encarniçada
ferimento voraz na praça cheia
e, ato contínuo,
um faquir engole os garfos todos
não sobejando do crime prova.
Nem por causa da praça cheia:
a multidão estava distraída
com os néones e o cortejo de solenidades
inebriada com o peso grave da pátria
assim recolhida na praça da grandiosidade
e, todavia, 
aninhada num fausto sem provimento.
O delfim está ferido de morte:
o garfo cortou a gutural
e o sangue abundante 
inundou o chão da praça.
O povaréu não dá conta.
Pisa o chão ensanguentado
como se estivesse a agredir o delfim prostrado
em seu leito de morte 
– caso a populaça desse conta
do chão sanguíneo que pisa.
No dia seguinte, 
véspera de outra solenidade,
a multidão recolhida em seus aposentos.
Era o funeral do delfim
e o fim da esperança da pátria inteira;
era como se o delfim fosse a encarnação
de um rebatismo da pátria
e nem dissidentes houvesse 
para desmentir o oráculo em cal viva.
Maldito o faquir
que perpetuou o mito sebastiânico
e nem teve coragem de continuar vivo
para em julgamento 
dele a pátria se vingar.

#641

O idioma dos chacais
que às vezes apetece abraçar.
(Não fosse a denegação da barbárie.)

2.7.18

Correspondência

O correio 
na maré que rasa
os sentidos.

Cartas abertas
o lacre sem bojo
nas ameias tardias.

Chapéu de gola alta
na apanha do salitre
de juras sem contrato.

A nuvem
assobia pelos pássaros
no teatro sem audiência.

A estrela sem brilho
casa com a montanha
modesta é a boda.

Anoitece
na manhã assaltada
no campanário sem castelo.

O correio resgatado
de ladrões sem siso
como garrafas de náufragos.

No meio do mapa
o estiolado gato
depois de vida em desfrute.

Ao lago
os haveres sem dono
num ecuménico pesar.

Um garrote
segura as veias
contra o açambarcado navio.

Destilam-se
as palavras que se esperam certas
no nó górdio do impasse.

O selo de ouro
no furibundo arrependimento
em golpes exatos de esgrima.

A ponte atravessada
com bilhete caucionado
o quadro sem esquadria por tenência.

Da falésia
o horizonte mais alto
murmura a estrada mais nobre.

#640

Nesta chuva de chumbo
as lágrimas de julho 
num verão pela metade.

1.7.18

O domínio dos sonhos

A voz inexorável
promitente
murmura os poros da pele
enxameados de mel tardio.
Documenta um pesar infundado
a voz trémula
como se estivesse 
transida pelo frio glacial.
Admite o arco-íris como medida
e ajeita-se à cor de um poema
como o pássaro tem o voo como sextante.
À noite
a voz, já cansada,
emudece.
Engolida pelo sono
dá lugar ao fértil império
onde os sonhos são suseranos.

#639

Se perguntassem
palavras preferidas em inglês:
“therefore” (número um)
e “nevertheless” (número dois).

(Assim, à primeira vista.)

30.6.18

#638

Não há perdidos e achados. 
Apenas um meridiano 
de flores e de sonhos.

Fecundo

Consigo ser aurora boreal
nos melhores preparos que arranjo
nos corredores sublimes
que desafiam o centrípeto sol. 
Às vezes
sou chão insensível
ou apenas um enevoado entardecer
sequestrado pelo silêncio. 
Às vezes
não sei das medidas e dos temperos
e o rosto serve-se em fachada vetusta
na exata medida da impaciente fazenda
que cobre a nudez. 
Consigo destravar a claridade desmaiada
do sol que se esvai
sob a tutela do mar que é chão sob meus pés
viável estatueta que adere à maresia
nas vezes do nevoeiro
que com versos sem medida
retiro do céu que se faz horizonte. 
Às vezes
sou uma sombra que se esconde
na falésia em que me encerro. 
Às vezes
sou a mão maior que um mundo
em legado de bondade.

#637

Saio à rua
e na esquadria da manhã
desarmo a melancolia promitente.

29.6.18

Perfumado

Contraponto.
O véu sem céu por levantar.
Miragem sem baioneta.
O ponto de mira hasteado.
Mar sem ondas, timorato.
A casa sentada em seus alicerces.
O beijo quente.
Os olhos suados, melancólicos.
A chave no horizonte do labirinto.
E os olhos marejados pelo sal da chuva.
Colheita tardia.
O cometa rasante.
Cinzas duradouras no parapeito da noite.
Uma elegia.
Cobrança a destempo.
A pureza no desenho do luar que irradia.
A força da palavra acertadamente tocada.
O vinho efusivo.
O amplexo do porvir em adoração benquista.
O aval da amada.
O penhor das mãos incansáveis.
Um olhar multiplicado por mil.
A centelha afivelada por cima do olhar.
O contraponto das angústias.
O mar inteiro.
Abraçado.

#636

O feminino sumo de tangerinas
que levo à boca
e anestesia os lábios com deleite.

28.6.18

O comboio sem patrono

Ganhei o caudal sem meças
no dia em que o calendário transbordou
e em fatias o sol se fez tirocínio
à espera do verão ajuramentado. 

O comboio passou
acelerado
talvez atrasado. 
À lapela 
trazia o cantor lírico
a voz embotada pelo vento que corria
no sentido lugar que não chegava a ter lugar
tanta a velocidade do comboio
tantos os apeadeiros falhados. 
Fazia lembrar
a infância 
ou a remissão de um tempo perdoado
no inconveniente de um olhar sem peias;
o comboio
sentia-o apressado
apesar de vir em débito com o tempo:
e, mesmo assim,
a pressa toda consumia a paisagem
transformada num borrão
nem sequer os limites conseguidos 
na moldura do olhar. 

Se perguntassem ao comboio
ele já não se lembrava 
de onde tinha partido
e menos ainda tinha em lembrança
onde queria ter cais. 

Era quando 
a âncora se lançava
na distante nuvem 
onde medravam evocações da infância:
o comboio de brincar
andava sucessivamente às voltas
na pista montada 
que era circular. 

Até que as pilhas se esgotavam
e o comboio de brincar 
ficava à mercê do rio caudaloso.

#635

O sumo retirado 
a minhas palavras
não as deixa desidratadas.

27.6.18

#634

Passo as mãos na água.
Os olhos vadios
prometem amanhã.

Comodato

Qual é o verbo da servidão?

A mastodôntica algema
que reduz à poeira invisível
a poderosa ameia da alma
o caudal de outro modo sem freio
a voragem de ser o ser
sem cuidar do penhor de outro adejando.

Que escravidão nos arruína?

Que bolor putrefacto
se cinge à pele por plebeus servidores
que se aprazem com a condição
e a querem contaminada aos que sorriem,
livres?

De onde sopram os ventos fastidiosos
os lúgubres almocreves açaimados
diligentes na exibição de quem é séquito
servidores de bestas sem rosto?

Arrumam-se os móveis inúteis
entre a tralha amontoada
e sabemos ler nas entrelinhas das nuvens
o espaço boreal
a quimérica claridade 
uma candeia que se assenhoreia dos limites
na valsa esplêndida
da liberdade.

#633

Arrefeço
na orla do vulcão
o sangue esportulado pela ebulição.

26.6.18

#632

Se eu tivesse asas
dava caça às renas
só para obnubilar o pai natal.

Sem candeeiros

Apague-se a luz.
Subam os feiticeiros sem nome
as cortinas baças cingidas ao corpo
pois do nada se tira um módico
no bater de asas que o mundo oferece
em cascatas contumazes de águas barrentas.

Apaguem-se as luzes.
Os selos gastos não servem para correspondência
e, à sua míngua,
devolve-se o silêncio ao pedestal
sem contar com as palavras sussurradas
e as baías que alindam o entardecer.

Apagam-se as luzes.
A noite colabora com a angústia
juntando as luzes em seu desmaio
com a poderosa vigília dos rios fartos
na portentosa remissão dos vorazes delitos
turvando a deletéria camisa-de-forças.

Apagam as luzes.
Os anónimos repositores da insanidade
em crendo que a luminosidade é criminosa
um acosso sobre o rosto exasperado
e em antítese soergue-se a terapêutica sombra
o tempero sem receita na sala de espera.

#631

Recorto 
a lava imersa no sonho
e levo o murmúrio no colo sedento.