9.2.19

#912

Vergonha é culpa
(Antígona):
o eclipse da humanidade,
ou a sua cegueira.

#911

Vinha mesmo a calhar
(o 911).

Caiado

Por dentro do segredo
a melodia
anestesia em forma de favor. 

Por parte do ensejo
o chamamento
refúgio sem portas visíveis. 

Por adesão à farsa
o jogo
tribunal longe da justiça. 

Por compromisso da maresia
o castelo
notário à míngua de papéis. 

Por fuga do hodierno
a centelha
luz desmaiada no recobro do olhar. 

Por vontade sem freio
um livro
paisagem que colhe substantivos. 

Por armadilha esperada
a cautela
provisão disfarçada de advertência. 

Por causa de tudo
uma ideia
santuário de todas as dúvidas. 

Por deferência das interrogações
o bálsamo
apetite do irrecusável.

8.2.19

Moldura

Calculo de cor
a altura da tua pele
o cais em que vejo as cores
num destino sem mapa
se não a bússola em minhas mãos. 
O estremecimento não cora
à espera das armas iguais,
enquanto tribunos no mais elevado altar
somos penhores das joias singulares
no pleito onde entregamos os corpos
em mares agitados num frémito sem horizonte
e as bocas que se cruzam
no suor intemporal. 
Corremos os apeadeiros
em incalculáveis paisagens ditadas pelo olhar.
A submissão da voz
desembaraça o silêncio que fala mais alto
e os sonhos já não são sonhos
porque os traduzimos em cada dia nosso. 
Cresce uma espada sem dor
manual impecável sob a lareira meã
cresce
pelo que de ti há de tanta água em minha boca
no mapa que tateio
o corpo que quero, 
ávido de o querer:
não serão vãos os predicados;
a bem, percorrendo os teus centímetros
a cartografia que aprendo de cada vez
mesmo sabendo-a de cor.
Juntamos a noite ao peito faminto
e se as bocas não se perdem
continuamos feitores da empreitada
uma coreografia em papeis suaves
uma paleta das cores que inventamos
uma marca registada
singular.
Do amanhã
sabemos ser nosso caudal
a bissetriz onde se fundem os corpos nossos
um amanhã que se faz hoje a cada minuto.
Cuidamos do incenso
que se insinua nas veias:
não o deixamos decair
pois somos os curadores das fogueiras válidas
em prosa elegantemente deitada
nas folhas arrancadas ao céu da boca.
Pétalas frondosas emergem dos poros
enquanto dançamos a dança verossímil
compondo as pautas ufanas 
no amparo das velas dispostas
os corpos transidos
a certa altura, 
exangues,
no imodesto verso que te dou
à troca do tanto que me completas.
Se um deus houvesse
tenho a certeza que daria a aprovação
ao império impróprio 
que juntamos com as mãos feitas 
no sangue vínico. 
Os sonhos já não são sonhos
porque os traduzimos em cada dia nosso.
No amanhã que se faz hoje 
a cada minuto.

#910

Os braços murados
desaprenderem de neles abraçar
um corpo outro,
e nem assim lágrimas.

7.2.19

Intrépido

Entrei no vértice do fogo
sem o medo prescrito
apenas a vontade em rima
talvez
com uma loucura inesperada. 

Estes cometimentos
uma certa bravura inóspita
o fermento de uma rebeldia desatada
é mister que se abraça ao corpo
mesmo sabendo da rua sem saída
do eco persistente 
a matraquear a advertência
, contudo, dissolvida. 

É como ir a jogo preparado para perder
e mesmo assim
a ele atirar-me de cabeça
resoluto.

Sei sempre que, pelo caminho,
enquanto jogo os dados da imprevisível demanda,
e o ar rarefeito prova a acrobacia estulta,
pergunto um punhado de vezes:
o que tenho a perder?
Em perdendo o jogo
não perco ao que ia,
apurando o cálculo das probabilidades. 

Sabendo que nada tenho a perder
(pois perder é já mais de meio caminho)
não aceito tergiversações
nem me intimido 
com o resultado das probabilidades.

Em releitura do acontecido
intuo não se tratar de caso de loucura.
Não há memória
que no dicionário das palavras recitadas
intrepidez coabite com loucura.

#909

Emprestem-me uma venda
para do mundo sem lacerações
uma aguarela ser tela do olhar.

6.2.19

#908

Como pode uma guerra ser civil
se todas as guerras são incivilizadas?

Alma

A alma cheia. 
Mistério com fundações 
que devolve a hermenêutica do ser
no abastado leito onde se dilui a fadiga. 
Os parêntesis não contam;
ou, em dando seu inventário como próprio,
inauguram a quimera escondida
na volúvel espessura das palavras. 
Enche-se o poema
e os versos guturais são a viável mão
que segura o corpo inteiro. 

A alma inteira. 
Transfiguração do medo em paisagem domada
transbordando de sentidos na foz achada. 
Não se cumpre o calendário,
perdida a noção do tempo. 
Agora sei da canção que ecoa no pensamento
sei-a singular
povoada pelo luar de cetim
que se oferece às flores,
excecionalmente não recolhidas em si,
para apreciarem o cenário. 

A alma funda. 
Vertida sobre o orvalho demorado
por dentro do olhar sem peias
destinando às árvores
as mesmas raízes em que se funda,
a alma funda.

#907

Ziguezagueando. 
Como uma serpente. 
Não precisa de coluna vertebral.

5.2.19

O desvalor da modernidade

Invento um modernismo. 
Apetece um modernismo
um que seja só para mim
(não é egoísmo). 
Um modernismo sem espelho
que não silabe em preconceitos
a primeira e a última hora
escrito na efemeridade de uma hera outonal
efémero como são as modernidades.
Nem que seja asneira
ou atavismo pela lente alheia;
que é o que menos importa
(a modernidade,
que não estou em dia
de ser desagradável para os outros).
Deixo o pensamento em roda livre
à procura do paradeiro da modernidade:
é assim tão importante
sermos tutelados pela modernidade?
Há os que se projetam na posteridade
os que conservam pergaminhos conservadores,
atados ao pretérito
(seu casulo contra a modernidade).
O pensamento voga para a distração
esquecendo-se da pergunta de partida. 
Ainda bem que assim foi. 
A demanda pela modernidade
é um pastiche sem serventia,
um psitacismo imberbe.

#906


Os votos de bom apetite
são cortesia 
ou um convite à obesidade?


4.2.19

#905

(Poema económico)

Tempos sem inflação
esgotam do vocabulário a carestia.

Manta de corpos

Corpos amontoados
nus
uns dormindo
outros entretecendo-se uns nos outros
outros ainda dormitando
outros em contemplação
outros partindo em demanda de um corpo par
outros tocando-se
outros falando através dos poros
outros desembainhando o desejo
outros vestindo um agasalho
outros sacudindo o suor
outros ensinando
outros estrofes da sua grandiloquência
outros desmatando o ubere da decadência
outros desenhando outros
outros entronizados num clamor triunfal
outros bebendo na seiva resultante
outros perfumando com suas bocas
outros desistindo do marasmo
outros em declinação, intoxicados
outros em êxtase, intoxicados também
outros dedilhando a pele tremeluzente de outros
outros nos outros
outros saindo de outros
outros em amparo de si mesmos
outros cinematográficos
outros decadentes e mesmo assim a jogo
outros no jugo de outros
outros âncora em espera
outros promitentes de cesuras 
outros timoratos do deleite
outros aprisionados no preconceito
outros desenhando silhuetas
outros iracundos
outros defenestrando fantasmas
outros recitando o sol invernal
outros desaguando na indolência
outros arremedos, na indulgência do medo
outros sarcófagos sem saberem
outros impecavelmente belos
outros banhados em artificialidade
outros iguarias em altruísta pose
outros suplicando pares
outros querendo solidão
outros em tirocínio
outros na vulgata da adulação
outros experimentando
outros sem medo da idade
outros à compra de tempo
outros no invejável Némesis
outros atirados ao precipício
outros exangues
outros elixires intermináveis
corpos
todos
sem a decomposição dos síndicos
e até estes
contra todos os prognósticos
corpos.

#904

Da massa seminal
o amparo da noite sem armas,
o dardo tranquilizante.

3.2.19

Ferrolho

No banquete dos servos
a mão pesada do suserano
disfarçada de benevolência:
malquisto mundo este
viciado em viciantes dependências
imprimindo no rosto dos súbditos
a marca de água do eterno agradecimento
por de tresmalhados rebanhos se eximirem,
ordeiramente à ordem dos senhores;
para as moedas,
e como tinta-da-China do apascentar,
os rostos de suseranos
imortalizados em sua benevolência.

No banquete dos servos
coalesce a pútrida contrafação dos homens.
Entre esgares que são máscaras
e a indulgência da insciência
crepita a autoridade dos senhores
sob o beneplácito da autocracia invisível.

Oxalá a história servisse
para a emancipação dos homens.

#903

Não é um espelho;
é um biombo
que anestesia os nomes dos rostos.

2.2.19

Medalha

Estremecimento:
o sísmico estilhaço
em repetições que desmaiam
e o vago céu tomado por bruma
espera a noite.
O contrabando não se faz por menos.
O copo vago,
vazado de um golpe só,
deixou a sofreguidão falar
e a boca tomou o sentido.
Já não havia espera para nada.
Por enquanto.

#902

As mãos que não choram
mitigam o mar tumultuoso.

1.2.19

Peito

Bato no peito farto
bato como quem à porta bate:
poderá ser a safra das interrogações
e só um peito generoso
será caudal capaz da função. 
Bato no peito pétreo
bato como que serve arrependimento;
não sei de que culpa se explora
mas sei da dor que a percussão bolça. 
Bato ao peito outro;
pode ser o vitral da atenção
um rumorejo sem jura
ou apenas o diadema das almas somadas:
o estipêndio da ternura
pois não é agressão que se aviva:
é um gesto aveludado
os dedos pincelando os poros
salivando o desejo sem freio. 
Bato ao peito farto
e a boca entoa a consulta da alma
nos vocábulos que surdamente 
tomam conta dos corpos. 
Bato ao peito pétreo
a bandeira de um desejo desarmado,
à espera do peito outro
como santuário da demora.

#901

Considerava pleonástico 
um jornal se chamar “de notícias”.
Depois conheci o Correio da Manhã.

#900

Não juro hinos.
Não venero bandeiras.
Não me inclino diante de dignitários.
Execro os exércitos.
A liberdade não aceita contaminações.

31.1.19

#899

Deito sal na ferida
não sei se para a suturar
ou para castigo de dor.

Caducidade

Uma roda viva
para ver se uma lotaria me unge
e eu, magnânimo,
trato da igualdade dos desiguais.

Uma pétala perdida 
sobrevoa a paragem do autocarro
estaciona à frente dos passageiros em espera
à míngua de audiência.
Estão todos distraídos
a pétala correndo o risco de ser esmagada
se o autocarro cumprir o horário.
Que alguém dê pela presença da pétala
e a salve de tão terrível caducidade!

Ninguém abdica do lugar
na paragem do autocarro.
Ninguém dá pela presença da pétala.

E ela, lacrimejando melancolia
(ou seria uma gota da chuva que começava?)
como se seu pranto ciciasse aos ouvidos
e ela, triste por já não habitar
na árvore frondosa que dela se desprendeu.

Sorte 
que o autocarro estava em atraso
e a pétala foi salva por um golpe de vento,
a sua lotaria num acaso. 

#898

Medida de efeito equivalente:
o rosto nu
desafiando-se ao espelho sem rugas.

30.1.19

A fúria demitida

A dedução escrita na ardósia:
a fúria cabeluda
não é alimento que se veja.
É como submeter o crânio
à centrifugação de uma máquina de lavar
a centrifugação velozmente dolorosa 
– e a cefaleia prolongando-se para além do sono
na sucessão de dias condoídos.

Em vez da cabeluda fúria
e para desapalavrar o iracundo estado
antes ferroadas de abelhas em barda
uma colher de sopa de mostarda de Dijon
uma ópera bufa 
malparida por músico amador
a literatura dos gurus das almas
a esfusiante e, todavia, ardilosa alegria
irrompendo dos gurus das almas.

A dedução
escrita na ardósia
na rima dos violinos
na fervura do mar gentio
no insubstituível cais
onde repousa o pensamento.
O colo firme
onde se dissolvem os males inteiros
(fúria incluída).

#897

Este apoteótico amanhecer
o mel tingido de uvas
e um perene conforto no regaço.

29.1.19

Sorvete de inverno

A litania dos escorraçados
os vultos seráficos açoitando o riso
por dentro das nuvens
onde tudo é chumbo
onde nada se avista.

À margem
uma frase escrita à pressa
a caligrafia imprecisa
o eco forte de um sino válido
na maré sem estribeira, transbordando.

À luz clara
uma loa sentida
a juba do tempo açambarca o verbo
e todos vítimas de todos
na anulação matemática da culpa.

Que serventia, a convocatória dos escorraçados
se todos se embebem na purulenta sede
e amarelecem na palidez gasta
vestígio de nada
no contragosto de tudo?

Desfaçam os paredões hasteados
contrariem os pederastas da razão
tirem o fio de prumo às raízes fundas
no caldo mestiço dos verdugos
em contemplação dos rios sem rédea.

#896

Domesticada a época
sei que a portagem se abre
aos inspirados uivos da matilha.

28.1.19

Meia-idade

O rosto visível
na sombra dos versos
chama a voz a desmedo
nas sílabas que se desprendem da boca.
Sem a ferrugem do gasto
na mão das palavras casuísticas
e, porém, acertadamente temporais,
esboça-se uma dança sem par
o colóquio antes da tarde
no sopé do peito ufano
autor dos versos escondidos.
Fossem os sufrágios da mesma têmpera
as manhãs um riso sem fim
e as rosáceas não murchassem com o frio;
fosse a jura como a maldição
e as campas sem corpos
a tinta perene, na recarga da caneta,
e os pulmões não cessassem a função;
fosse o labirinto o escol da modéstia
e os furtos, distrações sobre a maldade
as vestes nunca gastas
e os pirómanos transfigurados fogueteiros
à passagem dos comboios fantasmas
nos apeadeiros perdidos
nos rios sem nascente por demarcar
e as guitarras uníssonas ciciando o silêncio
contra o jorro dos geiseres pespontados
no olhar insaciável.
Creio ser pouca a ambição
se segredar que quero tomar posse
do mundo inteiro,
dar à sua volta quatro voltas inteiras
e atar a angústia esmaecida 
nos contrafortes da loucura  
como é privilégio dos argonautas sem sono.
Quatro
as voltas ao mundo
sabendo tua mão gémea da minha.
E depois
na mealha do matinal vento quente
segredar ao teu ouvido
um punhado de palavras quiméricas
antes de sabermos por onde entrelaçar os corpos
e na bica dos suores
escrevermos as estrofes vadias
os preparos do despreparo
a loucura em que fermenta inveja
as orações sem deus outro se não nós mesmos
as mãos juntas
cúmplices
as bocas desenhando-se uma na outra
e toda a fome descontada no singular amor.
Com tudo à mão de semear
as armas que não precisam de guerras
as armas com que terçamos os opúsculos fartos
património que só nós sabemos
tutores das almas que apetecer.
Bebo uma gota do suor
na curvatura levemente ruborizada 
do teu dorso
e sei-a do sabor do meu.