Tirando as impertinências
e o jeito ocasionalmente iracundo
não eram regateados predicados
que sogras proclamam em genros.
10.10.16
Carne e osso
Um
casaco vestido num busto sem gente
entre
cotovias grafando danças pueris
e
sete pedras sentadas na cumeada
à
espera de gente cansada de estar em pé.
Um
casaco vestido
e
um busto sem braços seu possuidor:
as
antenas de outrora
(as
que afeavam as cidades)
povoam
as cumeadas à espera do vento
para
serem gente.
Um
casaco afinal despido
e
um busto inanimado por companhia.
Não
é peça bastante.
Casaco
estéril sem valimento
não
encontra cais em gente.
A
carne e osso fazem diferença.
9.10.16
Canto do cisne
Epílogo.
A
última gota do mar
a
desmaiar na areia molhada.
O
último gole de ar
antes
de a água sem freio
engolir
a respiração.
A
última prestidigitação
antes
de cair a máscara
ao
farsante.
A
última coisa que se é
antes
de um vendaval intempestivo
tudo
deixar sem serventia.
Ou
apenas um cisne a cantar
sem
causalidade que haja
com
os pretéritos exemplos.
E
o cisne vagueia,
leve
e livre,
sobre
as águas seu domínio
garganteando
um canto nada lírico.
Sendo
cisne.
A
julgar
pela
sabedoria ajustada pelas convenções
o
canto do cisne é o seu epílogo.
Pois
não cantem os cisnes
em
segredo não revelado da perenidade.
Ou
então
desfaça-se
em despojos sem utilidade
o
que sobrar da convencionada sabedoria.
E
deixem os cisnes cantar
na
sua leveza e liberdade
que
eles amestram a paisagem bucólica.
E
deixem todos os fins de histórias
desacorrentados
de estultas imagens,
apenas
sê-lo
fins
de histórias.
7.10.16
Tinta invisível
No
arco delgado da porta velha
os
turistas apreciam o vagar.
Não
interessam
os
maltrapilhos nas proximidades
devolvidos
ao desvalor
que
dizem ser seu merecer.
Não
interessam
as
águas lodosas do rio que acama a paisagem.
Entrecortado
o silêncio
no
pesar do palavreado sem sentido
matraqueado
sobre o dorso das pedras milenares
e
descarregado o arsenal de fotografias
os forasteiros bebem de uma garrafa sem fundo.
Cambaleiam
ruidosos
no entardecer confuso do pensamento embaciado.
Aterram na terra-mãe.
Sobram memórias tinta invisível.
(Valem os retratos guardados
para avivar a tinta
que deixou de ser invisível).
6.10.16
Águas furtadas
As
mãos na terra
senti-la
respirar entre os poros.
As
mãos por dentro da terra
desenhando
as figuras geométricas da manhã.
Por
dentro da terra
sem
medo de saírem imersas em negrume
das
mãos nascem as veias rejuvenescidas
as
veias que aprenderam com a alma da terra.
E
as mãos não desistem do aroma da terra
remexem-na
alarvemente
como
se de uma hibernação viessem devolvidas
e
famintas porfiassem.
As
mãos insistem na terra
antes
que a chuva tenha império
e
desfaça os desenhos sem fronteira
lavando o pecúlio de um gesto.
Tiro
as mãos da terra.
As
mãos negras
as
mãos reaprendidas
as
mãos adultas.
As
mãos.
E
escrevo
em
pauta de argila
as
estrofes crepusculares
de
uma espada cintada com a lua
bordada a prata.
5.10.16
Dual
Peça ilha
três dias
tiro meia
tiro tudo
coço dedo
ligo baia
olho baço
bala erma
cura eito
dito meio
alvo mero
dedo alto
ceia toda
fria vaca
fera bela
toca alva
tôla tola.
30.9.16
A cidade nua
A
cidade nua
desfolha-se
através da escotilha entreaberta.
Não
se sabem se as costas cansadas
dão
cais aos sonhos angariados
ou
se são apenas a porta transversal
de
uma cidade antípoda
os
raios vidrados da cidade sonhada.
A
cidade nua
respira
o odor da chuva na terra ressequida.
Respira
demoradamente
enquanto
se embebe nos taninos singulares
de
um vinho imaginado
embarcado
em navios sabiamente desenhados
sulcando
o rio sem o magoar.
Na
cidade nua
desaprovam-se
os preconceitos a eito
povoam-se
os hábitos com desábitos a preceito
à
mercê do vinho a rodos
que
por todos é bebido
em
noviço festim.
Até
que tudo fique nu
impurezas
que deixam de o ser
segredos
sem cortinas
tratados
assinados a tinta da china.
Sem
supor
que
há ardis por desnudar
sobressaltando
a altiva nudez da cidade.
29.9.16
Archote
Um archote de
pavio lacónico
todavia aceso
por perto.
A penumbra
açoita o olhar
e o archote
aceso
arranja lugar.
Saber-se-iam as
febres tantas
houvesse carência
de luz
e o corpo medrasse
no limbo.
Saber-se-iam
dores tumulares
e a penumbra
seria endemoninhada.
Saber-se-iam
sabores ácidos a turvar a boca.
O archote do
pavio lacónico
convoca de uma
vontade
efémera e frágil
que seja,
desmaiado seja o
pavio.
Só uma centelha frugal
um módico clarão
travando o pé à
penumbra.
A servidão maior
procede dos
olhos voluntariamente vendados
acostumados à luz
apartada.
Um archote
mesmo de lacónico
estatuto
opera milagres de
que deus nenhum é capaz.
28.9.16
#77
A calçada gasta
e orvalhada
covil de todos
os logros
esconde os
segredos
de quem por ela
mete os pés.
Slow motion
O
inverno insinua-se,
letárgico.
Os
corpos cobrem-se,
frios.
O
vagar dos relógios,
catártico.
Um
espelho de neves,
contemplativo.
Os
gatos impassíveis,
ociosos.
A
penumbra opulenta,
anestesiante.
O
tempo arrastado,
ciciando.
Chaminés
fragmentos,
convocatória.
O
calendário cautelar,
amarrotado.
As
pressas adiadas,
lentamente.
Os
operários enregelados,
consumidos.
As
árvores despidas,
esperando.
E
gente enfraquecida,
doente.
Um
inverno lazarento,
algoz.
E
a pressa sem pressa,
enfim.
27.9.16
Inflação homóloga
Subia pela árvore
indomável
sem retiro outro que não fosse
o impecável estatuto de um lugar sobranceiro.
Preparava os instintos para apreciarem
os lugares subjacentes;
não por usura
não para a experiência cimeira
não queria comenda inerente
ou regalias bastantes para sinecura.
O que me motivava
era a tenção de saber
o que vê um pássaro em voo
à falta de capacidades para o efeito.
Dir-se-ia
uma visão de conjunto
para mais cobrir com o olhar.
Tentativa
(julgava que não vã)
de estender os campos abraçados pelo olhar
ou apenas a irreprimível pulsão
de outro olhar trazer ao olhar.
Fosse peixe em demoradas sabatinas pelos mares
era como se espreitasse no dorso das ondas
só para as conseguir ver do avesso.
A demora que levo congemina tais preparos:
as coisas como são,
são uma fonte que se esgota.
Dizem que é juízo impreparado:
que por dentro das coisas
de que julgamos ser incansáveis hermeneutas
se escondem sentidos sublimes
entrelinhas por acautelar
e tudo se reinventa
quando a folha está repleta de texto.
Concedo.
Sou,
todavia,
argonauta intrépido
que precisa de árvores outrora descamisadas
para deixar porfiar os sentidos avisados
os sentidos que não querem capitular.
Para deixar as mãos
cinzelar as formas das árvores
que a elas veem.
Pois há sempre
um avesso no céu da boca do pensamento,
de maior carestia
do que interstícios a haver por descoberta.
26.9.16
Vertigem
Deslumbrantes
morangos
frescos sobre a cama
respiram
sobre a noite temporã.
Desalinham-se
os céus
devolvida
a claridade
apesar
da noite
(já
noite):
um
grande lago azul sobreposto.
Anotação
de empreitadas:
que
estou a chegar
que
trago uma forma diferente de estio
que
das lonjuras viajou comigo
o
horizonte desembaraçado
e
as legítimas rodas dentadas
que
prendem os olhos salgados à tela majestosa.
E
num dezembro tardio
sem
os ósculos caridosos em velhinhas ao acaso
sem
as íngremes subidas mordazes
talvez
encontre
uma floreira viçosa a destempo
sem
garantia de gente importante
ou
caução de funcionários atestados.
Os
feixes de luz
incendeiam-se por dentro dos olhos
deixando
os frutos sem aroma
e
os dedos incapazes de tecerem seu mapa.
Não
me assusto.
Não
será decerto tarde.
Não
serão
nórdicos gelos a entronizar a inércia.
Não
haverá
casacos de ferro a impedir o movimento
ou
algozes desembainhados
a
tornar deletérios os pensamentos.
Tenho
o horizonte debaixo da manga
e
não conto contar o segredo.
Os
morangos colhidos
têm
dias de repouso em cima da cama
e
nem assim a madurez se evaporou.
O
aroma obtido dos morangos
continua
a ser o vaso comunicante
a
aragem continua do quarto
–
do quarto portanto pleno.
25.9.16
Sótão
Julgava
que o peso do corpo
era
preparo bastante
nos
interstícios dos ramos arqueados.
Não
sabia dos penhores das almas
dos
humores sucedâneos
do
outono pusilânime
das
barcaças caducas no lodo do rio.
Não
sabia que havia cores sem cortinas
ou
palavras retiradas do exílio
ou
suores sem o concurso de esforços.
Ele
havia tantas coisas que não sabia
que
nem tinha aproximada ideia
das
coisas de que podia ter tirocínio.
Passava
um pano limpo no retrovisor
de
onde se aprumavam as memórias.
Não
que tivessem préstimo as memórias;
queria
que o espelho fosse varanda nítida
(e
sobranceira)
sobre
o cós do tempo que estava de véspera.
Não
era para trazer um oráculo às minhas mãos,
que
adivinhar o que se espera
é
locupletar o tempo antes de tempo,
açambarcar
conhecimento a destempo:
só
queria um espelho desembaciado
para
se abraçar
(descomprometido)
ao
tempo que ainda era véspera
e
dar caução ao muito que se viesse aninhar
nos anéis do saber.
24.9.16
Pela maré
Terçam-se
as espadas frias
um
banquete soez
aguçam-se
os lápis desembainhados
para
um logro no tempo.
Sabia
ser uma caução sem fundo
um
espelho estilhaçado que nada deixa ver
a
antinomia de paisagens pinceladas a ouro.
Sabia
das noites perdidas
no
jeito desastrado
de
desarranjar as estáveis considerações.
Sabia
dos rios tumultuosos
que
apenas são graça
para
a paisagem que extasia.
E
sabia
que
as espadas correm o risco de sangrar
o
risco de serem dor funda
tornando
impuros os domínios onde se terçam.
Tudo
confere.
Das
lições marginais que não são aprendidas
das
luzes baças que se emprestam ao torpor
dos
corpos abandonados às nuvens vetustas
dos
anéis despolidos em coreografia bastarda.
Confere.
A
lição magistral
dentro
de um palco freguês
onde
tem lugar
o
desalfandegar dos assentos confortáveis.
No
dorso de um cavalo mítico
desautorizando esgares aferroados na fealdade
no
sentido contrato com a inteireza.
Até
que sobrem
sobre
o chão molhado e sem vestígio das ruínas
só
as palavras doces
os
olhares ternos
a
sorte tirada no avesso do infortúnio
a
homérica assinatura das folhas brancas
à espera de heurísticas formulações.
23.9.16
#76
Aberta a
escotilha
uma rosa de
espuma sentou-se no rosto.
O sortilégio da
manhã
mestiçou-se no metálico
bramido do navio.
Oito ou oitenta
Aconchegar o
peito vazio
ao cais capitão
dando voltas
seguidas ao perplexo sentido.
Ditados descomunais
em vestes sumptuosas
a preceito da
função
sem rimas,
inúteis.
E o peito vazio
sacia-se
enche-se de
imagens grossas
imagens espessas
e leitosas
com palavras
capitais
palavras lustrosas
a eloquência
incendiada
na ponta do fósforo
teimoso.
O cais devolve a
calma parecida
deitando aos
olhos sementes frutuosas
de um mar cheio
de navios belos
um mar timoneiro
um mar
matricial.
E o peito,
já cheio
oferece-se aos
preceitos idênticos.
Mandam as
convenções
que não se
regateie a generosidade.
22.9.16
Miradouro
As
mangas arregaçadas limpam o norte
das
cotovias tontas que esvoaçam rentes.
Deixei
que a árvore se sentasse ao meu colo
desde
que duvidei que as nuvens fossem água.
As
margens acossadas de um rio
suportam
os pesares contristados e nulos.
Depois
da noite clara
açambarquei
as fogueiras acesas em meu manto.
Convoquei
os
sacerdotes evidentes
os
mágicos sem eira
os
cães famintos
os
mendigos serenados em sua humildade
as
avenidas largas e vazias de gente
sem
esquecer
os
tribunícios loquazes
os
preguiçosos peritos
os
pássaros das ilhas amaciadas
e
os tenores de óperas falidas.
Para
lhes dizer
em
solene proclamação
que
destarte sou ciente dos capazes limites
e
que nada
nada
desafia
os altares onde depus apoquentações.
Sou
eu e os meus
em
abraços cúmplices
em
palavras fundas
em
olhares frontais
em
sentidos albergados
em
casas por nós habitadas
e
nada mais.
21.9.16
#75
E a cidade
emudeceu
escurecida pelo
nevoeiro repentino
como se houvesse
perdido os pés
ou debaixo deles
o chão se ausentasse.
Antes
Antes
que seja tarde
antes
que não se possa dizer
antes
e
que o depois queira de volta
o
antes que não chegou a ter lugar.
Antes
que a língua se intumesça
antes
que dos fiordes venha o degelo
antes
que o mar engula a areia
antes
que o sol se perca no fim do mar
antes
que tomem as palavras por loucas
antes
que os relógios sejam desmentidos
antes
que o sangue deixe de ferver
antes
dos beijos últimos
antes
que a seara matinal entregue o orvalho
antes
dos pesares sem remédio
antes
que venham deuses dentes desmentidos.
E
antes que se possa só dizer antes
para
que o “antes que” não atire a lua ao céu
e
ela venha devolvida em estilhaços.
20.9.16
Âncora perdida
Pelo
fundo desbotado de uma garrafa
impuras
as ideias que povoam a angústia.
Os
sinos não são subtis
quando
ressoam por dentro dos esteios,
desfazendo-os
em pedaços.
Dir-se-ia
não
ficam ideias de pé
sobram
delas vestígios que apenas
apuram
o sentido da memória.
O
fundo da garrafa
desbotado
no vidro arranhado
confere
a indecisão:
idas
as ideias
partidas
para parte incerta
arranjam-se
pedaços de chão para vindicar outras.
Não
é apocalipse.
A
orfandade tem vista curta.
Ditam
os corpos lançados num abismo
em
sua queda livre
que
terá um epílogo almofadado:
não
há ninguém órfão de ideias
(tirando
os que nem dão conta da petição de princípio).
Espólio
Não era o fingimento
o esconderijo arranjado no leque de sombras
a secura dos dias longamente sem chuva
os pretéritos alternativos em manhãs sem regra
que desencavilhavam explosivos interiores.
Podiam as luzes mortiças travar o firmamento.
Podiam os cordões deslaçados
armar armadilhas sem espera.
Podia o espólio terçar cicatrizes incuráveis.
Nada tinha importância
nada se congeminava
no possível furto do tempo
pois não havia algozes capazes.
O espólio desarrumado
um pouco como as ruínas em redor:
desconsumição com raízes frágeis
mas promessa entrelaçada
numa teia diligentemente servida.
O espólio já não entra nas contas.
Já só cinzas
imprestável grilheta seria ao tempo maior.
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