11.3.15

Vidro estilhaçado

Os veios atravessam a superfície do vidro.
Do agora vidro raiado.
Não chegou a ficar em escombros,
o vidro,
apenas sobrou um espelho estilhaçado
já sem a cintilação de antes
já sem a serventia que teve.
Os estilhaços decantam o olhar:
julgava-se que o embaciassem
a superfície arrombada pelos veios tentaculares;
ao contrário
os estilhaços devolvem a imagem retorcida
do que um (falso) espelho diria translúcido.
Em contraponto com a maré
o vidro estilhaçado mostra a claridade de tudo.
Já nada é embuste
já nada se encobre num simulacro capaz
já tudo se revela matéria transparente.
Por vezes há rombos argutos.
E, por vezes,
derramadas as lágrimas necessárias
em depurações que abraçam as (enfim)
cristalinas coisas.
Não tem préstimo a consolação da sorte madrasta.
Não têm préstimo vidros resplandecentes
ocultando a podridão das coisas.
A ser assim,
antes os vidros estilhaçados
a tonalidade das coisas sem máscara.
Pois nos vidros estilhaçados
não se ferem os olhos penhorados
por uma penumbra promissora.
As quimeras
não são fiadoras da alma soerguida.

9.3.15

Dança dos pontos de interrogação

E se o sol retardasse o entardecer?
Se as velhinhas se despissem da coscuvilhice?
Se os gatos e os cães viessem com genética trocada?
Se a lua adejasse sobre a luz diurna?
Se os chacais fossem curadores da bondade?
Se os algarismos fossem frases completas?
Se o vómito de um bêbado adubasse a magnólia?
Se as crianças ensinassem leituras aos mais velhos?
E os velhos desdenhassem o firmamento?
Se os esteios fossem os lados frágeis do mundo?
Se os mares perdessem o sal e a areia fugisse das praias?
Se em toda a comida se extinguisse o paladar?
Se as mãos não se embotassem de afetos?
Se os pássaros fossem juízes da gente?
E a gente fosse toda mundana?
Se as pedras sob os pés fossem um tapete de veludo?
Se as pedras atiradas enfeitassem quem elas atingem?
Se os ultrajes se virassem do avesso?
Se um módico de confiança não fosse atraiçoado?
Se a boçalidade fosse espécie em extinção?
Se se reinventasse a escrita?
Se fossem depurados os olhares que se deitam sobre as coisas?
Se a noite fosse banida na perenidade da luz diurna?
E se os sonhos perdessem a espessura de sonhos?
e nem os pesadelos troassem no lugar escondido do pensamento?
Se as coisas fossem antípodas do que são
e as palavras ganhassem sentidos singulares pelas bocas diferentes
e toda a linguagem fosse uma metáfora de um pulsar radioso
e as mãos tocassem sempre ouro em teclas de piano enfeitiçadas?
E se fôssemos partes inteiras e não a soma de todas as partes?
E se as sombras não fossem apenas tédio?
E as utopias uma linhagem das coisas que há?
E o que seria
se não houvesse pontos de interrogação?

5.3.15

Siamese hearts

Incomparável
Inigualável
Inúmero
Indelével
Incalculável
Inextinguível
Inviolável
Indisputável
Inamovível
Inquebrantável
Incansável
Incorruptível
Improrrogável
Inadiável
Indispensável
Insaciável
Incandescente
Inimputável
Inestimável
Invejável
Inexorável
Impassível
Imbatível
Incontestável
Imperioso
Irrefreável
Irrepetível.
E intenso.

2.3.15

Speak louder

Our hands shelter the sky.
When misty clouds spread tears of joy
as blood spurs emotions high.
With veins walking away from dust
and strings melted in sunny days ahead.
You know that inhabited places are useless
as embedded as you are in shaded skies.
We have our own eyes,
the eyes that count.
Others are hollowed,
thinner that air
darker than a soaking decay
straddled by countless bones that shake
through soulless earthquakes.
Let others be aware
of their tininess sculptures.
To our hands immeasurable glasses of wine
in celebration of kingdoms within.

The light does not vanish inside the greatness of our hands.

Thus, let us throw hands up in the sky.
They shall shelter the sky from daunting vultures.
At the end
we will stay sacred entities
fearless bodies vaccinated against rage.
We will be greatness within
here and ever
as the sky bends towards these protecting hands:
ours, from now to there.

26.2.15

Lua prodigiosa

À lua tudo se pergunta.
As vontades
as exasperações
os volteios da alma
o porquê das pedras pontiagudas
o admirável renascer dos elementos
as vozes que troam
os sussurros doces
o marasmo inquietante
o lívido estado do mundo
ou o seu encanto em manhãs brumosas.
A lua a tudo responde
não esconde o rosto
nem quando se emudece atrás do mundo.
Ensina a paciência.
A sua luz intensamente branca
expede as respostas que cavalgam no olhar.
Um olhar sabedor
que decanta a lua levedada do dia prévio
e retira a penumbra do seu estertor.
Não gritem os sobressaltos
não fervam as amarguras
nem se encastelem as importunações;
que a lua faz de teia
e com saliva a nada reduz esses nadas.
Devemos à lua
a maresia que adeja
e cimenta a pele árdua que se desembacia.
Numa simbiose de que não se dá conta
a não ser
quando nos achamos lua de nós mesmos
e da lua tiramos a alforria do ser.
O resto
(os escombros infecundos
as cinzas álgidas
os punhais insidiosos)
deixamos à sombra aninhada no reverso da lua.
Com as mãos cheias de vontade
- da indomável vontade -
e um rosto que não capitula às sombras medonhas
e um sorriso que desmonta as emboscadas,
somos a face lunar
e a luz que derrota as trevas.
A lua sela o amanhecer devagar.
Ajuramenta um tempo sem mácula.

18.2.15

Tira-teimas

Ah! as estrelas cadentes
e as fixas
e aquelas que se levantam diante dos olhos nossos.
Ah! nutriente luminoso
archotes abraseando a noite fria
onde somos caudilhos em ré menor
e cantamos, em doces sussurros,
às nuvens que desenham o céu.
Ah! os baloiços que recordam a meninice
o tempo de uma inocência madraça
que não apetece resgatar.
Pois só contam os suspiros de amanhã
pela mão dos hojes que se repetem.
Ah! resplandecemos na aurora das velas
fazemos coreografias com os dedos entrelaçados
bebemos a seiva de um altar-mor
onde nos entronizamos imperadores.
Ah! os corpos dançam sob a lua que decai
deles retemos as dedadas carregadas de suor
e o mantra que soubemos descobrir por dentro de nós.
Queremos tudo.
Queremos tudo.
E sabemos que temos o tudo que queremos
à distancia de dois dedos,
de um olhar retumbante
e das palavras solstício que são fio de prumo.
Ah! sabemos ser nós
e do jogo forte dos corpos enlaçados
sabemos extrair os sucos do âmago dos prazeres.
Para dizermos:
ah!
uma, duas e três vezes
as que preciso forem
para deixarmos legado no mapa celestial
de onde irrompem as lições maiores.
E, ah!
- ah! outra vez -
exclamemos o pulsar interior
em segredos soprados para o refúgio em nós.
Até que uma constelação inteira esteja a nossos pés
e nós,
sobre ela adejando,
nos façamos seus imperadores.

16.2.15

O joelho do javali

Já a jornada jorrava jovialidade
e os javardos jaziam no jasmim
na jactância dos javalis.
Um javardo,
que não o javardo joeirado,
jogou o jornal no joanete.
Nisto
um javali jejuou para o jantar.
O javardo deu jeito janota
julgando o javali jazendo no churrasco.
Julgou mal:
o joelho do javali
jogou-se, judicioso, no Jacinto.
Jubilado à força, javardo já não era
e jovem jamais.
A jaula era agora um jacinto jovial.   

10.2.15

Otherness

Difere no que é diferente
contrapõe e indaga
discorda e tolera
a discordância à tua discordância.
Heterogéneo e plural
as janelas abertas aos diferentes ventos
para deles seres maior.
Não dês guarida ao monolitismo
despreza a estreiteza de vistas
amolece as confrangedoras páginas iguais:
deixa-te ir no que te não revês
enxuga as ideias,
as que não consegues iterar
e as outras que coalham inspiração.
Cresce com o que está fora de ti.
Desprende-te
das algemas que amordaçam o olhar.
As lições maiores
estão na condição outra que é exterior.
Sem deixar de seres quem és
nem sendo um ensimesmar estulto.
De fora de ti,
a ti um feixe interminável de luzes
constelação da pluralidade rica.
Não:
a condição outra não é bastarda
nem madrasta impostura para inglês ver.
São os sinais
que importa reter
entre os dedos suados das mãos.

4.2.15

Culatra

Um compêndio de fúrias mal acamadas.
Prometem peleja aos que discordam
aos que ousam a dissidência
aos que simplesmente dizem “porém”.
Puxam o coldre  
destravam as munições

e disparam a eito.

Valentes
passeiam a razão da força.


(Não haja quem lhes conte que essa é uma desrazão)


Só sabem a linguagem dos punhos
só escutam as melodias marciais
só se encantam com a arte da guerra


(Sem saberem que é uma desarte)


A uns, munições a sério

nos belicosos exércitos.
A outros, arsenal em sonhos
ou um pequeno arremedo se arquivarem armas.
A outros, ainda,
apenas a tanta força bruta braçal.


Diferentes culatras
a mesma agnosia militante.

Um compêndio de desrazão assassina
ou apenas uma pulsão suicida
que medra entre as febres iracundas.


À tolerância, dizem-se ausentes.

2.2.15

Bancarrota

Amarrota os papeis
sopra-os em demanda do lixo.
Prepara a melhor fatiota
a que seja celebrada pelos demónios.
Que se não te ampute a vontade
a absurda vontade que demência parece.
Pelo caminho
bate as asas e mete o pé em frente:
pois à frente vem o abismo
onde nem as amadoras asas
salvam do despenhamento.
Notarás o chão
(como duro é o chão)
quando os ossos estalarem
e os olhos raiados despontarem o ocaso.
Bem te tinham avisado.
A bancarrota
não é coisa agradável de se ver.

28.1.15

Not the paradise

Throw the vows into the carpet
where lions wait for digestion.
Throw the cards into the blanket
where sweat was the emperor of bodies.

Shallow the thin shades
where dark cards outplay.
Glimpse them with your glare
where memories vanish.

And yet, paradise is infrequent
(is) where dreams fade away.
Paradise is not lost
(is) where absence dismays.

Promised, archaic lands emerge
where furnaces incinerate tears.
Neglect what eyes must not envisage
(of) where branded dreams boil in pain.

Turn away from the tainted words
(there) where hands become prisoners
and ruined houses levitate within the clouds.

An empty boat is left in the lake
(is) where legs shove the movement
and a nutshell of you, real thing, grows legacy.

27.1.15

Um minuto

Se dessem um minuto,
um minuto apenas,
o que diria?
Num minuto,
que palavras ecoariam os mosaicos por dentro?
Seriam doces
ou apanágio do pânico
(pois só haveria um minuto)
ou um vale sedoso de uma vida cheia?
Haveria sequer palavras,
sem a serventia delas se num tão curto minuto
não seriam serventuárias de resumo algum,
nem prodigiosas ao ponto de terem merecimento?
Num minuto
não se erguem interrogações.
(A não ser porquê um minuto apenas
e se estaria a um minuto do juízo final)
Não haveria traições semânticas
nem trôpegas encenações quiméricas.
Num minuto,
num singelo minuto,
não se encerra nada.
Um minuto é um cárcere.
Ser dele algoz
é a pena pior que um juiz pode decretar.
Num minuto diria nada.
E com tão ruidoso silêncio
diria tudo o que importa.

20.1.15

Questionário

Diz-me tu.
Diz-me as cores que compõem o dia.
Os odores que tomam conta da paisagem.
Quantas pessoas nos vêm.
Quantas estão lá fora ao frio.
Diz-me quantas gotas traz a chuva
quantas sabem ao vinho que fizemos.
Diz-me o que souberes ser de tecer loas.
As páginas de um livro
o dedilhar de uma guitarra
o enredo de uma peça de teatro
ou apenas o entrelaçar das mãos
o olhar que se emaranha noutro
os desejos que quisermos
as alvoradas que tomamos nas mãos
a neve que esvoaça na leveza da noite
os caminhos que descobrimos
os segredos que deitamos sobre nós.
Diz-me tudo o que te apetecer.
Eu te direi o que o amplexo de nós levar à boca.
As palavras doces
a pele acetinada
os olhos (nem que sejam marejados)
as facas que desbastam memórias gastas.
Tecendo os dedos entre cabelos molhados
não ajuramentando o que não precisa de juras
nem correndo das paredes quentes que são refúgio.
Diz-me tu,
que direi o que de mim achares belo.

Promessa

De que vale amofinar,
de que vale se o sol vem depois da noite
os pássaros não deixam de voar
os diplomatas não deixam de urdir
os artistas mal paridos não deixam de ultrajar a arte
e se as promessas não deixam de ser
contrato descumprido para memória futura?
Antes não desembolsar promessas
antes que sejam vertidas num vão altar.
Antes o sol nascente na sua lhaneza
os pássaros em bando compondo a paisagem
os diplomatas na arte da simulação
os mal paridos artistas a dececionarem a estética.
Antes não haja nascimento para as promessas.
Não venha o ajuste de contas da memória
e as cefaleias pontuem nas sobras das promessas álgidas.
Prometa-se que não haja promessas doravante.
E as que a distração escapar deixe
se faça desnascê-las.

30.12.14

Gourmet não acidental

O dente de leão.
Metia o dente de leão
às iguarias que viessem.
O amesendar era diferente:
não eram mesas de madeira
não eram savanas com arbustos rasos
nem mares com o sal como tempero.
Os campos eram de outra igualha.
Era onde os gentios se desembaraçavam de rivais
e, em não sendo hienas,
terçavam urros para seu território marcarem.
Gulosos,
metiam o dente frio às iguarias todas.
Pareciam aviadores na coleção de estrelas
que ostentavam, com garbo, à lapela.
O dente branco,
impecavelmente afiado,
era um punhal sem contemplações.
O dente era quente quando a preceito
espetava-se na carne deliciosa,
anestesiava-a.
O dente era frio na implacável destreza.
Os sussurros ecoados ao ouvido
em amestradas cantilenas rituais
Enfeitiçam as presas.
Depois
é um ver-que-te-avias.
O tempo não conta,
as memórias dos rostos também não
(dissolvidas em ácido deixado pelas lágrimas de alguém):
sobra uma contabilidade sem tempero.
Um amontoado de corpos
pernas e troncos entrelaçados na difusa memória.
E o tempo que interessa que parece esgotado
na voragem do instante.
O dente de leão
(consta a lenda)
não se gasta.
Os suores depois
tratarão de provar a profecia.

16.12.14

Harmonia

As pedras coalhadas são o chão ceifado
por onde seguem alces destemperados.
Rios apascentados emprestam suor à paisagem.
Estorninhos vigiam o arvoredo, procuram intrusos.
Um padre peregrina.
Um cantor assina a pauta dos sabores.
Um cozinheiro ensaia a coreografia ousada.
E nem o bailarino tem a têmpera para meter a mão em arte alheia
nem os julgadores se fazem rogados para ciciar nas costas dos dementes.
As rosas não estremecem na coloração
nem com trovoadas medonhas que descarregam toda a ira.
As rochas agarram-se às raízes
não querem ser desapossadas do seu chão.
As pessoas entrelaçam-se em abraços dóceis:
não há estranhos entre ninguém.
As estrelas que incensam a noite ensinam o rumo
mesmo que as nuvens escondam o céu.
Os frutos colhidos são doces como nunca se soube.
O papel está branco
à espera de ver nele vertidas as palavras quiméricas.
O corpo,
indomável,
não mete freios aos impulsos.
Só contam os prazeres.

14.11.14

Dúvida metódica

Não sabia que as velhinhas alojavam sapiência
não as sabia tutoras da erudição.
Talvez seja por envergarem as vestes negras
da perene viuvez que as desvia dos prazeres.
Não sabia que uns eruditos medram nos esgotos
não os sabia arrevesados cultores da inanidade.
Talvez seja por terem tempo de mais na ludoteca
e se distraírem com a imagem magnífica de si mesmos.
Não sabia que há gente que se desonera de cuidados seus
não os sabia tão generosos com os cuidados alheios.
Talvez seja por precisarem de cuidados intensivos
dos cuidados que esbracejam sua frágil condição.
Não sabia da maldade congénita
não a sabia património da espécie.
Talvez seja da ingenuidade que me consome
da ingenuidade que fermenta o incrédulo.
De não saber que tanta coisa existe
das coisas que
(vai-se a ver)
estão à distância de um palmo dos olhos amarrados.

7.11.14

O colo do mundo

Um diamante em riste
as armas que terçar não é preciso
a demiúrgica face descoberta de espinhos
um rosário caleidoscópio
e os braços bem abertos
desejosos de recolher em seu regaço
o legado do mundo
o mundo inteiro
(se preciso for).
E deitado sobre o próprio regaço
admirar o mundo
de que se fez tutor.

6.11.14

Fogueira alada

Sobre a cama de fogo
onde crepitam as pepitas prateadas
dançam as mãos trémulas;
hesitam
dão um passo em frente
acamam sobre a pele acetinada.
Refulgem com a luz que vem da pele
e dançam em círculos
pedindo carne doce
enquanto a lareira afaga seu fogo
e empresta luz à coreografia dos corpos.
Na cama de fogo
os amantes despojam-se de peias.
Intrépidos
cúmplices
na vertigem do desejo
enquanto os sentidos
desenham palavras que não se escrevem.
Enquanto os estorninhos ciciam
o canto dos amantes.
Enquanto a nau toma rumo direito
entre águas enfurecidas.
Enquanto os olhos se fundem
e o gelo todo se consome na chama que crepita.

29.10.14

Penhorados

Vamos partir o mundo por dentro da loucura
vamos pelas ruas fora
as mãos dadas
os olhos fundos derretidos uns nos outros
os passos estugados na firmeza do saber.
Vamos partir o céu em estilhaços
louvar os feixes que de nós a nós vêm
a pele suada das correrias não vãs
derrotar as importunações com o mel da perseverança.
Vamos ensinar a aprender
a ninguém se não nós
pois somos penhor de nós mesmos
e do resto não nos importamos.
Vamos acender a lua
gritar pela madrugada fora
fazer soar as sirenes que desembaciam os ouvidos
jorrar a água das fontes paradas
soerguer o pescoço por cima das cancelas
e devorar os instantes todos,
todos,
sem perda das medidas do tempo.
Vamos deitar flores no chão húmido
verter palavras-sortilégio no musgo do cais
enquanto as mãos entrelaçadas se aquecem do frio
e contemplam o rio que parece vir do mar.
Vamos correr pelas ruas enquanto a cidade dorme
passear as mãos altivas no altar de nós.
Vamos deitar beijos pela janela
consumir o fogo fátuo
despir as lágrimas da sua água
encarnar a doce loucura que vem a nós.
Vamos dizer ao mundo inteiro
o nada que lhe devemos
e, em segredo nosso,
sorvemos um cálice de ouro
no tanto que somos em combustão.

22.10.14

Transparência noturna

Na crina do cavalo
as mãos temerárias metem velocidade.
O animal povoa as pedras do caminho
enquanto no rasto sobeja poeira.
As mãos recebem o suor
da crina do cavalo, que não abranda.
Fecha os olhos
confia no cavalo que vai para um cais.
Quando abriu os olhos era noite.
A humidade do mar,
em comandita com a noite outonal,
disfarçava os vestígios da poeira.
Do cavalo, nem sinal.

10.10.14

Contra a corrente

A lava torrencial
lavra a incandescência da terra.
Não é uma visceral tutela da desvida:
do tempo vindouro
virá a desmorte da lava cristalizada
quando arbustos vicejarem do nada,
da improbabilidade do nada.
Pois a destruição pode ser criadora.