31.1.18

Fresco noturno

Morde-me esta intuição
prisão dilacerante
uma terrina estilhaçada como palco
e os pés feridos nos despojos lançados.
Arranjo coragem para o longo estio
e nem a sombra contumaz
chega a ser sombra
desmentindo os argonautas pueris
e o mar precoce.
No vetusto banco do jardim
calcinado pela ferrugem do tempo
sentamo-nos lado a lado.
Olhamos
olhamos em redor
e para as copas das árvores
à espera de perderem a vergonha da nudez.
Somos a alvenaria constante
os azulejos cintados numa constelação de cores
a palavra-viva contra a matéria-morte
a palavra que dispensa contratos
o contrato de cimento armado na pele ávida.
Nas mãos amplamente abertas
guardamos em segredo o estirador,
nosso salvo-conduto.
Somos:
sem a desmedida função
de não sermos o que não queremos.
A noite invadiu tudo
mas ainda vamos a tempo
da sessão da meia-noite.

#458

O velho
demoradamente olhando as mãos abertas,
o oráculo das rugas seladas.

30.1.18

Irmandade

Embebidos espíritos de pertença
na proteção dos da casta
– oh! louvável sacrifício
generosidade desarmante
desde os primórdios da gesta
em meneios arcanos
o círculo restrito em ciclo vicioso
– e aos de fora,
o cilício
ou uma cápsula de cianeto
com o selo da exclusão.

Arautos da identidade
areópagos da coletiva pertença
emulsionam as probidades da casta:
pois pertencemos sempre a algo
e o algo que é titular nosso
é nossa garantia de réditos fartos.
Proclamam as figuras venerandas,
mostruários da gesta assim protegida
num enredo não só semântico,
que as prebendas provam o fático suco
da pertença assim assinalada.

Ai de quem invetivar a irmandade,
ó canhestra ousadia,
que logo os mastins se soltam em iracunda caça
para devolverem os predatórios ao ultraje
de onde não deviam ter permissão para sair:
o dedo apontado,
o supremo opróbrio
caindo sobre seus humilhados dorsos
e o isolamento sem remissão.
Não sem findar a questiúncula
com pejorativo rótulo pespegado aos dissidentes
aos que o topete tiveram
de blasfemar contra a irmandade:
“sociopatas”.
Juntando,
se a preceito vier,
julgamento sem pronúncia em oposição
sobre
os maus hábitos
as más companhias
as más palavras
as más decisões
a má estética
mas sobretudo
sobre o infortúnio da sociopatia.

Rematam com a comiseração 
que têm por própria dos generosos
abrindo a porta da irmandade
(com a condição prévia da desculpa humilhante)
aos tidos por tresmalhados.
Ah!
prendada longanimidade dos confrades
auto estetas da irmandade
assertivamente adivinhando
o interesse dos proscritos 
em deixarem de o ser.

Escapa-se-lhes a irremediável condição
autistas eles,
irremediáveis também,
não sabendo
que a sociopatia é imorredoira.

#457

Heurístico, contínuo juramento:
deixar à solta as palavras,
sejam elas a falar sem freios.

#456

A torre mais alta
desejo deitado ao logro
em mendaz transfiguração do devir.

29.1.18

Manual de navegação

Os nós desatados
a medula cheia
no vago quintal das roseiras.

Combina a lua com o mar
na esgrima sem espadas
a devoradora bênção dos poetas.

Meios-irmãos enlaçados
no oxigénio das palavras
contra as profecias gastas.

O aneurisma das ideias arcaicas
sem lapela por ostentar
na desautorizada mentira das lápides.

Os nós por desatar
um ainda por dissipar
e uma medula por cumprir.

#455

Um esboço de sombras;
pois é um logro
tanta claridade (baça).

(A Mark E. Smith)

28.1.18

Por conta

Por conta das contas de cor
declamando de cor
a cor descontada da contagem às avessas:
conto por contos
as contas do entretanto andado
e não tenho em conta as contas anotadas.
Por conta dos contos reditos
a conta certa das palavras estremunhadas
em contagem descendente no conto final.
Tudo será coutada
miríade anotada em vulcões contados
e as lavas por conta de fábulas
no esgrimir das contas sem cálculo.

#454

Ao longe
um rio, largo caudal
a sofreguidão dos dias incompletos.

27.1.18

Silvestre

Este desajustado passo,
insubmisso desencontro
com o fado determinado,
dança na ténue linha
no desembaraço de um trapezista
desfeitos os medos no desfreio do desassombro.
Não sejam chamadas as cautelas
nem a anjos sejam reservados lugares:
o oxigénio corre sem embaraços
e o calçado gasto tutela as cordas deslaçadas
que se arpoam ao cais
de onde se avista o sol posto.

#453

Fogo que se alimenta do fogo
estilhaços depostos
no que dantes fora desordem.

26.1.18

Vozes

Ouço vozes:
pedem água sem espinhos
árvores sentadas nos braços
um garfo estendido no dorso do gato.

Ouço vozes:
às vezes, apenas um rumor
outras, trovões que esventram a manhã
em conspirações sem tutor.

Ouço vozes:
as palavras indiferenciadas
as palavras cuidadosamente detidas
o amontoado que se refaz numa frase.

Ouço as vozes:
as doces melodias balbuciadas
as dos contramestres em terra
as de cuidadosos assaltantes da angústia.

Ouço as vozes:
às vezes, um latido ao longe
que faz da noite sua refém
no desembaraço do sono estilhaçado.

Ouço às vozes:
um encanto
um porventura
um porém.

Ouço às vozes:
deslamento
desalinhar
dissidir.

Ouço com as vozes:
o triunvirato das páginas entre mãos
a espera da madrugada vindoura
o sorriso farto sem peias.

Ouço uma voz:
telúrica
demiúrgica
ecoante.

#452

De leito
que é meu corpo despojado
métrica do teu irrenunciável desejo.

25.1.18

Marasmo

À entrada da torre
ninguém discerne ser de Babel
onde as forquilhas levitam
sobre o transido,
fatigado dorso
e não há água que chegue
para a sede de todos.

Outros afivelam
(todavia sem saberem)
suas caixas de Pandora
uma bigorna mastodôntica
arqueando-se nas vértebras sacrificiais
dos seus próprios fautores.

O véu confunde-se com a sombra
adulterando o imoderado cabaz
onde frui uma miríade de saber.
Não de saber-ciência
mas de saber-saber
a candeia sem embaraços na rarefeita noite.
Oxalá pudessem os olhos
prevenir contaminações
as alavancas enferrujadas que esbarram no chão
e ditam o retrocesso nos tempos
aos meãos tempos possivelmente olvidados
ou possivelmente apenas fermentando.

Maldita dicotomia
entre o querer e o não poder
amaldiçoados sejam
os impreparos da desrazão.

Que importam
as caixas de Pandora
ou as torres de Babel?
Incineradoras implacáveis
reveses fadados à dor
insentidas elucubrações,
estéreis
Condenadas a malograr o ser.
As espadas desembainhadas
deviam estar no ponto de mira
das caixas de Pandora e das torres de Babel
as mais autênticas masmorras
onde, prisioneira, morre à sede
a vontade.

Não possam as torres de marfim
tornar-se caixas de Pandora.

#451

Defeitos da opinião democratizada:
hoje, todos acham qualquer coisa
sem terem encontrado algo.

24.1.18

#450

À semelhança
do pecado original de Desdémona:
como ajuizar a transparência do sufrágio
se as urnas são negras caixas?

Às coisas simples

Um tributo loquaz
sem conceitos pelo meio
apenas um ato singelo. 
Pois da singeleza das coisas
se batizam atributos ímpares. 
Pode não sobrar mais nada,
a não ser um ósculo denso
que devolve aos lábios a combustão de outrora;
ou as variegadas páginas
que trazem à tona as águas subterrâneas
de um rio dantes raso de caudal;
ou as palavras sem marca registada
as mais simples de todas
as mais difíceis de terçar
tão difícil como segurar a nuvem nas mãos
ou deitar as ondas do mar
com a ajuda de um braço;
ou abotoar o sobretudo para fingir o frio;
ou falar bem alto
a meio de anónima multidão
em hora de ponta
a imparável maré de um amor sem peias. 
Sobejam os arbustos à mercê da erosão
o sistema complexo reduzido a uma equação
a miríade de rostos indiferenciados
os braços sequiosos de corpo
um copo a vazar-se depressa
a multidão que,
somada,
corporiza milhares de anos
a constelação de nadas em ebulição
a afanosa sobranceria dos eruditos
e a correspondente obnubilar de pergaminhos:
um espelho retrovisor estilhaçado
no arfar genesíaco do meio dia
as espadas enferrujadas
o cinismo sem maldade
os choros precisos
as juras que fazem sentido
no meio do lugarejo desassisado
que terá deixado de fazer sentido. 
Que as odes sejam a antítese
dos personagens que ocupam o palco,
que selem a indiferença dos muros açambarcados,
a que escapa a prova dos nove,
seladas pelos vingadores das coisas simples.

23.1.18

A casa

A casa sem pejo
no sobressalto das vinhas
preparada para arrefecer a ira
grita contra as sombras do entardecer
enquanto os estorninhos regressam ao ninho.

Os vassalos sem guarda
não sabem do paradeiro da noite
tropeçam nos socalcos sem eira
perdidas as candeias a preceito
em seu olhar transfigurado em melancolia.

A curva do rio
deixa à mostra a quimera
um romance em forma de paisagem
nos versos destemidos do orvalho matinal
à espera do sol complacente.

Na casa há poejo
e o perfume incendia o ar
nas labaredas que desenham as paredes.

Na casa há uma solidão
e o silêncio que se ouve
nas muralhas longínquas onde se vê o mar.

Na casa sentem-se as mãos atadas
à medida que o solstício canta às raposas
odes de vazias estrofes.

Na casa vivem os mananciais
a merenda sumptuosa
estendida em toalha senhorial.

#449

E da noite
madressilva em infusão
e o corpo em poema ebulição.

22.1.18

#448

As redes caiadas
decantam o suor do mar
na mão saturada do pescador.

Os não escrúpulos

O homem dos polvos
tossia para dentro das artes
todo o escárnio
como se os polvos residentes
fossem vítimas a dedo. 
Não queria saber,
o homem dos polvos,
não queria saber
que os polvos fossem apenas
fáceis vítimas. 
Os polvos
em inviável tentativa de sublevação
protestavam
contra o inescrupuloso comportamento
do homem dos polvos. 
Os venais protestos
não chegavam aos ouvidos do homem. 
Tudo o que queria
era mercar os cefalópodes
em jornada de boa colheita
para os maus vícios custear. 
O homem dos polvos
não vinha para o regaço das insónias
ao admitir tão maus privados vícios. 
Os polvos também não queriam disso saber. 
A tais horas, aliás,
as horrendas criaturas fariam as delícias
dos que amesendavam as iguarias servidas
à base da sua matéria-prima. 
Entre arrozes,
vinagretas 
e polmes para acamar os tentáculos dos polvos
o homem seu captor 
já se esquecera do morticínio:
assim como assim,
ele nem apreciava polvo. 
Os hoje, pescados polvos, souberam atestar.
O homem do polvo,
esse,
esbracejava numa refrega virulenta
contra outros polvos que o amordaçavam.

21.1.18

#447

Nas mãos despojadas
um crepúsculo notado
moderado ocaso de nada.

Ciência

Falo pela minha alma
em nome de um inventário
bebendo do cálice singular
os versos abrigados
que um nome intruso compõe. 

Acerto com a janela
o repasto angariado
e procuro na lua garrida
os nomes esquecidos. 
Oxalá
sejam as cores atiçadas pela manhã
como juras seladas em notário:
um aparatoso desfiladeiro
as palavras untuosas como desafio
ínfima lente ocular
curva sinuosa a meio de um rosto. 

A minha alma fala por mim
entoando lentamente todas as sílabas
no frutado sabor da boca
que ensina os nomes que importam. 
Contra os presságios do mar
desmentindo as catedrais mitómanas
no verbo farto
no leito dos carnudos lábios.

20.1.18

Má língua

Radiografia dos tempos:
vírgulas em falta
vírgulas a destempo
desacentuação de palavras
idioma como espinha espetada na garganta
a má gramática entronizada.
A linguagem truncada
em novos acordos ortográficos fora de lei.
Poemas em forma de SMS
abreviaturas de abreviaturas
e abreviaturas sobre abreviaturas
o reino da linguagem estenográfica.
Comunicação postiça
sub-idioma dentro do idioma
em forma de fratricídio.
Uma má língua
ou a língua de trapos
plenipotenciária de um idioma.

#446

A absolvição tardia
nos subúrbios do perdão
tirando a máscara do esquecimento.

19.1.18

#445

Um lumaréu de primavera
na distração do inverno.

Sine qua non

O estilo tempestuoso
vitral esmerado
conceção desalmada. 
Cais desapalavrado
tempestade prometida
acácias desfolhadas. 
Despojos protegidos
fome retroativa
oratória infecunda. 
Jogo sem regras
viagem sem mapa
noites sem sono. 
Escada íngreme
poço medonho
mar intrujão. 
Papel amarrotado
contrato rasgado
palavra caução. 
Intempéries vorazes
elementos contumazes
mão guardiã. 
Caminho reparado
olhar recuperado
amanhã valioso.

18.1.18

Tartaruga veloz

Pareceu-me ver um unicórnio.
Não tenho certeza.
Quem sabe
não seria um minotauro
ou uma sereia fora do habitat.
De uma coisa estou certo:
por mim passou uma carrinha
e na porta de trás estava escrito
“tartaruga veloz”.
Agora tenho a certeza.
Era um unicórnio
arraçado de minotauro
com escamas de sereia.
Valha-nos
um mundo assim surrealista.

#444

Eurípides
ao saber do rapto de Zeus
não terá dito a Europa:
alemanhizem-se.

17.1.18

#443

Ó sociedade anónima das multidões
e eu, pária.

Gravidade zero

Um silêncio avassalador
na planície branca e tortuosa.
As vozes anciãs
incessantemente trémulas
incessantemente estremunhadas
um lugar onde tudo se liquefaz
nos sonhos insubordinados.
As frases
vêm despidas do sentido das palavras.
As pernas querem caminhar
e não se movem
não se conseguem mover.
A boca insinua um esgar
à procura de uma palavra
uma palavra que seja
na colheita necessária ao malogro do silêncio.
Mas só há silêncio
e a boca intempestivamente contrafeita
e o corpo inteiro a transbordar
e, todavia, anestesiado.
Operários ungidos de alvura
mexem no corpo.
A leveza toma conta das veias
e um sono sem noite
candidata-se a pesadelo tonitruante
a pesadelo que rasga as baias do silêncio.
A brancura
(dormente como é a brancura)
empresta o palco lívido,
devora a vontade
– desfaz a vontade a um zero absoluto.
Na forma de autómato
à mercê
do volúvel encadeamento de estados
e de palavras de outros
e de coisas alheias
e de lágrimas-veneno.
Até a paisagem caiada se estilhaçar
numa tempestade de cores.

#442

Dizer-se de alguém
que é amigo da onça
é cominar à onça uma injustiça.

16.1.18

#441

Dei ao oráculo
o trespasse das terras idas
e adivinhei o eclipse do oráculo.

Pacto

Padeço destes azimutes
o azevinho com casta malvasia
e a maldade outra que é insónia.

Estes que são comezinhos anteparos
onde ocultos murmuram vilões disfarçados
na madrugada sem avistamento.

Deitam-se as cores ímpares
e os nomes sem árvores-bastião
na fogueira onde colhidas as rosas se avivam.

Digam-me os nomes das cores
e as cores dos nomes
enquanto espero pelo comboio melífluo.

Digam-me
que não encontro enganos nas avenidas
e uma rosa-dos-ventos gasta é razoável.

Padeço do sintomático azevinho
no desencontro dos azimutes afeiçoados
e em véspera entrego-me ao sono desimpedido.

#440

No labirinto da memória
perdidos os reféns
como peixes emalhados.

15.1.18

#439

O acrobata
diligente na cambalhota das ideias
sem o rosto perder a bússola.

Métrica

No meio de um nada
as mãos estruturadas desviam as cortinas
uma fileira de árvores varridas pelo vento
e a penumbra dos girassóis deitada no chão.

O costume açambarcado
contra os estouvados feitores da insubmissão:
protestam:
não se cuida dos rostos despojados
nem se tira o sal às palavras
nem sequer às malditas.

Um maestro deambula
sozinho.
O olhar perdido
desembainhando a melancolia dir-se-ia perene
vendo o cabisbaixo maestro
como se fosse ao chão
atirar as cinzas em que se consome.
No frugal encontro do dia
à mercê do majestoso quadro à janela
a falésia bordejada pela maresia
enquanto espera pelo luar jurado.

Não esperem pelo espartano coalhar das violetas
não esperem que a alegria venha a tiracolo
de personagens datadas:
antes esperar pelas esperas sem passagem
turvadas pelo avesso das veias
cotejadas com as musas sem rosto
capazes de estrofes sem fim,
de esperas sem fim.

No cabo com varanda para o largo mar
de onde apenas o mar se tem por paisagem
respira-se um ar infinito:
dir-se-ia
a caução para a entronização nunca esperada.
Como se o sítio fosse o marco geodésico
onde exorcizados se dissipam assombrações.

Tiro do lúgubre passeio dos desapossados
o paradigma do tempo desnatado.
Cobro, por isso,
o dobro às extremidades ciciadas pelo vindouro
desmentindo-o no suor do corpo.

#438

Until further notice:
unlock your hands
as a bequest to the blossom moon.

14.1.18

Espelho partido

Em sabendo,
em modesto predicamento,
da poda a metade
(e talvez em arredondamento por excesso)
não quis soltar o freio à língua. 
Manda a prudência
(e a honestidade intelectual)
que não sejam labirínticos
os meandros da voz não tutelada
na não parcimoniosa verve sem estribo. 
Bom conselheiro
é o silêncio,
em preparos destes.
Não fica enodoada a figura
por indecoroso espaventar 
de uma ciência que por esteios não ter
não é ciência,
apenas a facúndia proverbial
de presunçosos que dormem
no ninho das mal afiveladas almas.

#437

Paradeiro demandado
de apeadeiro em apeadeiro
na sombra das avenidas sem nome.

13.1.18

#436

A voz,
estremecimento
em véspera dos sonhos.

12.1.18

#435

Desta praia sem vento
uma concha estilhaçada
e ao longe, a falésia.

Tirania

Desde apóstolos a visionários
a simples peregrinos
de asas abertas ao prefácio do futuro
cozinhando em lume brando
o inefável dizer
na presença de um exército de seguidores. 
Assim são as almas
empenhadas na febre sem medida
levitando numa nuvem de Juno
onde as mãos nada tocam. 
Também não precisam:
“a fé move montanhas”,
terçam a seu favor
e, sem demora do precipício que foge à lucidez,
juntam-se numa impecável organização,
diligente nas regras e na hierarquia,
e empurram,
com a força toda
(mais a ditada para a ata do sobrenatural),
à espera de verem a montanha mover-se. 
(Só não se sabe
se é a montanha que sobre eles desaba.)

11.1.18

Inteiro

A casa ordenada
pela ordem que quisermos:
as flores arqueadas sobre a janela
os copos pendidos no alpendre
o mar vertido pelas mãos nossas
as paredes aquecidas por beijos
um mapa-mundo
– o meu corpo-lugar
espelho do desejo
onde proibidos são os freios;
e as páginas não esquecidas
as palavras que não ditam adiamentos
as juras não sufragadas
a claridade estendida no vagar do céu
onde tomamos lugar,
suas exclusivas estrelas.
Apertamos os corpos
contra as tábuas maduras do tempo
e as mãos
como se percutissem nas teclas de um piano
desenham os versos tirados ao fundo da alma.
Os versos que devolvem a nada o ouro.

E somos de uma altura magnífica
– se quisermos: deuses de nós mesmos –
na improvável paleta de cores
no murmúrio encantador
na música que costura os violinos
na macia pele que há em nós.

Já sabemos o que é o nada
por sermos arquitetos do tudo.

Na enseada alisada pelo sol poente
deixamos uma nesga do olhar.
Os lençóis sem rumo
identificam os corpos trespassados
na combustão etérea.
Resgatamos as nossas assinaturas
como se precisa fosse a voz altiva
um pedaço do peito franco,
entreaberto,
como as janelas se abrem,
ímpares,
ao delicodoce desassossego que trava o torpor.