24.10.06

A quimera

Os montes traçam o sinal do degredo
um porto balsâmico onde os refúgios se descobrem.
Não é de ouro que partes em demanda
nem de vento apenas bonançoso
ou uma magistral correria atrás da luz quimérica.
A quimera está algures
lugar que não se procura
lugar que te encontra entre veredas virgens
caminhos idos só porque nunca dantes travados.
É a alquimia dos sonhos
que te fornece a bússola.
Deixas-te guiar por ela,
sintas,
ou não,
a navegação por estima,
uma bolina que vai e vem
arqueada nas curvas que o vento tece.

Empenhas o corpo cansado
sabes que o destino oferece a recompensa maior:
o tributo ao que tanto procuravas
um corpo então repousado no desígnio cumprido.
É essa a quimera
desafios com os salpicos do mar tão longínquo
e ainda assim perene,
presente na maresia que acama a ossatura.

Partes
com o fito bem traçado
(mas sem rumo ordenado):
encontrarás a quimera, de tanto porfiar.
Não interessa
quanta parafina queimada
na candeia que espalha a luz na noite escura
ou as feridas que laceram os pés gastos
nem o andar cambaleante ao cabo da busca perseverante;
não interessa
os montes escalados
as colinas travadas
os rios caudalosos atravessados
as cidades que te desconfiavam como mendigo
os choupos onde dormitavas ao relento.
Nada interessa
ao fitares o desafio
que te fez erguer na procissão solitária
ainda que haja uma imagem desfocada
um escurecimento da beleza da paragem tão ansiada.

Quando chegas
os corpos amontoados nas camionetas imundas
as ruas que escorrem esgotos nauseabundos
as paredes sujas das casas escalavradas
as almas indigentes que cobiçam os andrajos que levas
– tudo semeia a dúvida:
para quê ter partido
se o destino é a imagem desfocada
antítese da quimera espiolhada?
Para quê ter partido
se à chegada encontraste
apenas
uma miragem?

17.10.06

Segredos

Nas veias
a seiva que segredamos.
Um sussurro quente
sílabas todas soletradas
a batida seca das teclas compassadas
de um piano a preto e branco.
No esconderijo
é o lugar dos segredos.
Um couraçado blindado
onde nem as andorinhas pousam.
Um lugar sempre escuro
desconhecido do sol.
Não que os segredos
sejam masmorras dilacerantes;
ou uma apneia dos sentidos
o martírio hipnótico que desorienta;
apenas um refúgio
que só os amantes sabem,
onde as coisas planam na sua intemporalidade.
É lá que os segredos pertencem à cumplicidade.
Descerram a intimidade
e deixam de ser segredos
– menos para os que deles continuam longe.
As palavras balbuciadas a custo
defenestram os torniquetes da alma,
esconjurados os fantasmas de outrora
malévolos vultos que semeavam flagício.
Dos segredos
pelos segredos,
a emancipação altiva
ou a exorcização do passado desconfortável.
Fantasmas já não fantasmas
através do alívio da partilha dos segredos.
O limbo encerrado
com as janelas abertas na comunhão
dos segredos.

10.10.06

Corpo ausente

Havia um corpo com as velas acesas
um perfume incensado colorindo o ar
uma cascata de sons a ocupar os lugares.
Às vezes diluía os suores nocturnos,
a necessária diálise do espírito acometido.
Outras vezes pegava no corpo
e redesenhava-o
(como gostaria que ele fosse:
um santuário adónico
onde se demorassem ninfas várias
que nele se vinham saciar).
De repente, reparou:
esse era o corpo desenganado
um esboço de desejos inúteis.
Nem músculos
nem quadris esbeltos
olhos azuis
ou um escalpe impecavelmente louro.
Apenas aquele corpo,
banal,
habitual,
o corpo que todos os dias vestia a existência.
Corpo adormecido
Pastor fiel de segredos incontáveis
e mapa dedilhado por dentro e por fora.
Um lugar
que de tanto ser familiar
entrara no roteiro do desconhecido.
Cada poro, cada pêlo, cada gota de suor,
as melenas soltas, as olheiras enegrecidas,
os músculos fatigados, as mãos tão gastas
– cansativos sinais do torpor que exauria as forças
traçava a rota da rotina cansativa.
À noite,
escondia o corpo nos lençóis
(fosse o abafo um vitral de transfiguração).
Rondava os cobertores o esboço do corpo desejado
um fantasma, apenas,
delírio da imaginação sempre pesarosa.
À noite,
despedia-se do corpo
abria os lençóis aos sonhos
que materializavam o corpo escondido nos cantos recônditos.
Naqueles lugares secretos
que só os sonhos podem revelar.

4.9.06

Diz o que a tua alma

Diz o que a tua alma
sangra
chora
transpira
mas diz o que a tua alma.

Sentinela maestra
penhora dos alvores
onde nascem os vapores iluminantes.
Deixa-a falar
enquanto o sol desce
e perfuma o horizonte
com o vulto das andorinhas:
o singelo arquear das asas
que descerra o vulto negro da noite.

Nem assim
calará a tua alma
pedaço que jorra o tudo que és
– do bom e do mau
que a alma não cuida das distinções.
E se a noite teimar
se ela quiser ir onde não ousas
conserva cada grama da tua alma
para que ela possa falar.

Dizendo o que a alma
suspira
anseia
cativa
desespera
o refúgio mais alto da tirana razão.

Tu
e só tu
na companhia da alma que fala
nem que seja
para que só tu a ouças.
Não hão-de fantasmas acometer
quando tudo se resolve na leveza da alma;
livre das amarras pusilânimes
quantas vezes fruto putrefacto
da auto-mutilação dos sentidos.

(Em Limerick, Irlanda)

24.7.06

Sinfonia da beleza intemporal

Que interessa?
Se os atacadores
se prendem aos sapatos
as cordas dos violinos em sintonia
o sol,
radioso,
irradia as frondosas fontes de luz
e todos os meridianos se tocam
fossem eles um íman
onde se dobra a humanidade.

Que interessa
vogar em nuvens de utopia
mergulhar nas águas límpidas
ou gritar de peito aberto
todos os afectos,
os amores ou os desamores
experiências férteis?

Que interessa
dar os passos que julgas necessários
palmilhar as pedras sangradas
pelo mar alvar?

Nada interessa
na câmara escura onde as imagens
se diluem no silêncio doído.

Nada interessa
por entre os espinhos cravados
nas mãos calejadas.
Se nem a calejada pele
resiste aos derrotados espinhos que a sangram.

Há-de chegar o momento
do murmúrio
que tudo revela.
Há-de então tudo interessar
até
as insignificâncias pintadas a carmim
as pedras disformes que fermentam o encanto
as paredes de gelo derretidas
escorrendo montanha abaixo.

Tudo,
tudo matéria-prima
do ósculo do universo,
a elegia sacramental
da embriaguez da vida

Tudo interessa.

19.7.06

O que te apetecer

Não te apetece
gritar
com as cores todas
que encontras na algibeira?

Não te apetece
fugir
dar aos remos
sem curar da maré nem da maresia?

Não te apetece
saltar
tecer pantominas circenses
no grito mais alto da alegria?

(Ou) não te apetece
emudecer
apenas emudecer
pela escuridão alojada na alma?

Não te apetece
olhar
de olhos bem esbugalhados
para pormenor nenhum escapar?

Não te apetece
dançar
mesmo as melodias mais estranhas
e as que se entranham nos poros?

Não te apetece
dormir
um pouco que seja
só para sonhares tão belo?

Não te apetece
mentir
cavar bem fundo na concha
que te protege dos açoites do mundo?

Não te apetece
zombar
de tudo e de todos
sem seres excepção à regra?

Não te apetece
procriar
no convencimento que a prole
é a exaltação do sublime que és?

Não te apetece
escrever
as palavras conhecidas e outras inventadas
para nelas te reinventares num ser adorável?

Não te apetece
endeusamento
gratificação pelos feitos
empertigamento de um ego reprimido?

Não te apetece (antes)
anonimato
as pétalas fechadas
de um perfume que te é exclusivo?

Não te apetece
viajar
demandar as quatro partidas do mundo
rejeitar o sedentarismo letal?

E não te apetece
o que não te apetece
tudo e mais alguma coisa
ao sabor dos dedos espontâneos que te batem na face?

18.7.06

Olhos quentes

Fonte de luz frondosa,
a lanterna que indica caminhos
ou a bússola imperdível.
Abraços afectuosos
lugares irrepreensíveis
onde apetece demorar
navegar na calmaria que eles transpõem.
A densidade do olhar
prende a respiração
imersa na sofreguidão dos olhos resplandecentes.
Neles
altar das coisas grandiosas
há um planalto sem fim onde se resguarda
a suprema tranquilidade.
Diria: as arcadas da temperança
o património da quietude
onde a bonança repousa.
Desses olhos quentes
exala o fio condutor da perenidade.
E nem quando a morte vier
hão-de deixar de ser quentes,
os olhos.
Imortalizados na memória
ou perpetuados nas sementeira colhida,
filhos altivos herdaram olhos tão quentes.
Capazes de tingir o gelo em água
nem icebergues gigantescos demovem
a chama acalentadora que neles cavalga.
Curam chagas maiores
com o sopro idílico que vertem,
uns olhos quentes singulares.
Tão singulares
que só apetece
neles demorar
a eternidade que for possível.

17.7.06

Domar a raiva (os perigos)

Acamar a letargia
enquanto o epicentro da raiva
ondeia no limar da demência.

Algures, do escuro,
há-de vir um raio de luz
a candeia acesa para o dilema.

Os lençóis bem dobrados
iludem o lodaçal que a letargia é,
remoinho donde não há arte para fuga.

No entanto, acetinados,
os lençóis onde a letargia aconchega
ali estão, apetecíveis.

Na convidativa forma dos acamados
camisa-de-forças sem retorno
ou cálice com a doce cicuta da prisão demorada.

A salvação, única,
na recusa do convite apetecível:
a impreterível tortura de sono.

É alto o risco:
da demissão do que nos habita
apoderado pela mansidão que nos dilui.

Põe-se a modorra ladainha
e jamais se liberta dos poros
dos tímpanos, da visão amansada.

Quando invadir as células cerebrais
e deitar mão do pensamento
somos apenas criaturas disformes, desapoderadas.

É imperativo declinar o venenoso convite
denunciar o fétido leito feito masmorra
pronunciar o livre arbítrio;

porque

no livre arbítrio
se consome a essência de todos os eu
todos, sem excepção, com direito a sê-lo.

12.7.06

A bondade dos deuses

Sacrificiais ritos,
não os corpos ungidos
com a benevolência divina;
corpos flagelados
corpos dilacerados pelas bombas
que ecoam a voz dos guardiães de um deus.
O sangue que escorre é o grito dos deuses
as metralhadoras e o terror
na voz dos deuses
ou pela voz dos que dizem falar por eles.

A interrogação:
e os deuses não são um imenso oceano de bondade?

As imagens do mundo
desnudam outra verdade,
impiedosa
cruel
martírio inacabado
impensável altar de sacrifícios
o ímpio odor da antítese do que são os deuses.

Estarão os deuses excomungados
pelos guardiães da zelosa ortodoxia
que clama em seu nome?
Serão ainda mais miragens
na boca apodrecida dos que usam violência
para vingarem o nome do deus supremo?

Na entrega desassombrada aos destinos divinos
o acto empenhado da ausência de si mesmo
deificação de uma imagem sem substância
e amesquinhamento dos dissidentes.
A morte,
quantas vezes.

Na cartilha do agnóstico
deus
entidade inexistente;
a fazer fé nas crenças alheias
sinónimo de uma benevolência infinita
simulacro de um celestial
prémio Nobel da paz.

Andamos todos enganados
mais os zelosos reitores das religiões
na enérgica demonstração de superioridade
do seu deus.
Ou deus é um embuste
conivente que é com as intolerâncias
as violências diversas
o sangue derramado
as vidas ceifadas em seu nome.

Se deus é a fonte da vida
como pode tolerar que em seu nome
mortos sejam tingidos
com as setas venenosas da sua doutrina?

11.7.06

Ecos perdidos

Do alto de um castelo alvar
o grito a pulmões abertos:
protesto sofrido
pelo desamor que milita
nas avenidas por onde nascem
espinhos que se cravam nos pés.

Ao vento
os ecos diluem-se nas serranias em redor;
lá ficam,
perdidas,
as sílabas gritadas
com a força de pulmões trinados.

Batem nas árvores e nas rochas,
as sílabas exangues de tanto uivarem,
e sabem que no seu repouso
nada fertilizam
– apenas o seu túmulo,
derradeiro,
a ensandecida rouquidão da voz
distante, cansada.
Uma enseada escondida
que só elas conhecem.

Revolvem as folhas húmidas
de uma noite fria.
Buscam um canto seco e quente
para nidificar.
Espera-as o nada
ou o tão elevado altar
onde se resguardam,
eternamente.


onde ninguém visita:
o seu sepulcro
a elegia das palavras perdidas
que podiam embelezar-se,
ganhar vida própria,
ascender ao patamar do património partilhado
pelo séquito de bebedores de palavras inebriantes.

Outro o seu destino:
fadadas para serem,
como milhões e milhões o são,
espúrias sílabas
só importantes para quem as soltou
– e só naquele momento de exaltação.

Sem poderem aspirar à grandeza intemporal
das palavras emolduradas
no lugar onde as coisas são eternas.

5.7.06

Efémera buganvília

Hiberna longo tempo
escondida das armadilhas do clima.
Longos meses só o verde da ramagem
árvore anónima, como tantas,
sem beleza que a distinga.

Entra o Julho.
Das bagas pendentes
irrompem uns tufos vermelhos.
A buganvília desperta da letargia duradoura
desfralda-se em vistosas flores carmim.
Se outrora a árvore permanecia anónima,
uma entre tantas,
agora que das suas ramagens
descem as flores imperiais
reina entra as demais
remete-as a espectadoras da sua beleza incomparável.

Tão bela
que as demais se acantonam em seu redor
num tributo que ela merece
pelos curtos dias em que mostra os tufos avermelhados.
São quinze curtos dias
de fuga da timidez invernal.
Quinze curtos dias
a passear o esplendor
que a faz ascender ao Olimpo do arvoredo.

Impossível passar ao lado dela
e não parar,
por uns instantes sequer,
na contemplação dos tufos garridos.
O sinal da efémera condição floral da buganvília.
Temente pela sua timidez,
ou temente pela morte futura
se por tempo demais desnudar os tufos carmim,
a buganvília rejeita o perene esplendor.

Oferta um curto tempo
para o êxtase da sua pujança colorida.
Depois,
tão depressa como despontaram,
os tufos envelhecem.
As cores engalanadas intimidam-se
e os tufos perdem a febril vivacidade
começam a tombar, subitamente apodrecidos,
jazendo no seu cemitério:
o chão abriga a copa da árvore.

A buganvília despede-se na sua curta aparição.
Promete engalanar-se quando passar um ano.
Refugia-se no seu castelo interior,
egoísta.
Ou então apenas o tempo para recuperar
das energias exangues de tanta cor irradiar
nos dias em que se desnudou.

19.6.06

Nem que fique só a memória das tuas palavras

Na tua boca
nadam as palavras,
esbeltas,
como os gestos inebriantes de uma sereia.
Mágica na articulação das frases
emprestas um brilho impossível
porque impossível para todos
menos para ti.

Mesmo as palavras mais arrepiantes,
ou até as que horrorizam,
todas escapam com a leveza das pétalas
que levitam pelo vento errante.
Podem ser tontas, inconsequentes,
podem ser admiráveis ou fogosas:
lá vêm, em catadupa,
na furiosa incandescência de uma tempestade
cerebral.

Se eu pudesse
arquivava-as, todas.
São como os pequenos grãos de sal
aparentemente dispensáveis
mas todos, sem excepção,
ingredientes sequenciais de uma roda dentada.
Preciosos,
como as palavras quer ecoam da tua boca,
ouro fundente que se prende
no sótão das memórias.

No fim da história
hão-de vingar as palavras que legaste.
No fim da história
hei-de acarinhá-las junto ao meu peito
para sentir o murmúrio que elas entoam
como se fossem a ressonância da tua voz.

14.6.06

Needless to say

Há palavras que ecoam na barreira do silêncio
como se fossem
pedras pontiagudas da barreira de coral.
Palavras que cavalgam na parede da ilusão
merecedoras do mais irrisório silêncio.

Há outras que apraz ouvir murmuradas:
é no suave trinar do murmúrio
que exalam pétalas perfumadas.
Há as palavras sentidas
que se soltam das entranhas do ser
com a pulsão enérgica dos instintos telúricos.

Palavras que arrebatam
convocam um gesto que se desfaz em afago.
A melodiosa sucessão das estrofes do poema
que se tece,
na sua fragilidade genética,
produto final de cores garridas
um turbilhão voraz de águas fortes:
salgadas, ou doces,
águas que purificam.

Há, porém,
o sortilégio das palavras desnecessárias.
São entoadas nos olhares
nos gestos,
na cumplicidade que não se pode descrever.
Nas palavras que aparecem indizíveis.
Na sua desnecessidade, preciosas estas palavras.
Silêncios de ouro com mensagens codificadas
que apenas os penhores dos sentidos
percebem na sua largueza.

Nos silêncios meticulosos
bebe inspiração o sentimento mais alto.
Vêm alados no esvoaçante trovão
que incendeia, qual candeia dócil,
os querubins doravante.

Na imersão das palavras desnecessárias,
(que não são inúteis)
as dobras de uma lombada debruada a ouro
o ouro tão precioso da matéria incomensurável.
Um banho que refrigera
apazigua demónios
temperança de um bálsamo apenas feito de palavras.

Das palavras que se dizem
das palavras genuínas,
mesmo das palavras fátuas.
Mas sobretudo
das palavras sentidas
e não escutadas
apanhadas nas ondas que desligam
da penumbra do sono letárgico.
Acima de tudo
das palavras
que nem sequer é necessário proferir.

13.6.06

O mendigo, pela manhã

Manhã deserta
poucas almas acordadas.
Sim o mendigo
recostado no granito dos correios
a palitar os dentes
com o pau do algodão doce
algures perdido no chão.

12.6.06

Corpos febris no avatar do desejo

Os lábios sorvem as gotas de suor.
Extasiam-se, na languidez do acto.
Lá de cima
um solfejo ritmado incendeia o compasso.
Há na suave curvatura dos rins
a magia visual que destempera,
povoa o ensandecimento selvagem.

Pelas mãos, braço acima,
repousando no pescoço perfumado.
Às vezes o deleite emparelha-se
com a lentidão premonitória,
uma dança provocação alimenta o rubor.
Pelo meio,
beijos transpirados,
a vontade de selar o corpo que se desvela
a suprema vontade de a emproar imperatriz
do meu desejo.

É este acto animal:
poço de paixão.
Instantâneos irrepetíveis
campo vasto onde todas as rosas se avermelham
todos os ramos se erguem no viço imparável.
Um campo tão quente
altar onde se sagram os corpos entrelaçados
e vinga o desejo vibrante.

Sempre a redescoberta,
em mais um acto de poética luta dos corpos.
Realização pela entrega ao outro
pela entrega do outro.
Recíproca luz, ou não, não interessa:
apenas o império dos corpos
empossando o reinado da paixão
na exaltação carnal das veias que pulsam
à espera do jactante fim.

Por fim
o sossego no restolho da luta
que desarrumou os lençóis
fez tombar o candeeiro
empurrou os corpos para o tapete.
Onde jazem, vitoriosos,
por entre as despojos da batalha.
O olhar que se troca
sanciona o silêncio cúmplice:
os corpos foram senhores do seu desejo
sem espartilhos ou descaminhos
primeiro guiados pelo travo doce da pele
no grito tão alto do espontâneo sentir.

Os corpos, esses,
imperadores do canteiro carnal
onde
por momentos
os amantes se entregam
esquecendo-se
que o demais existe.

5.6.06

Lágrimas de ouro

As lágrimas coalhavam o sal da memória
eram lancis onde bordejava a planura do espírito.
Intemporais.
O sal turvado enriquecido pelo sabor dos poros
entretanto percorridos.
Das lágrimas furtivas, o espelho:
os olhos marejados
lagos imensos das lágrimas retidas.
Do choro entristecido
do choro amargurado
do choro dos desventurados do amor
ou apenas do choro da alegria irreprimível.

Sempre lágrimas
um mar chão que se perde
pele abaixo
na tez enrugada que absorve as lágrimas.
São fugazes, mas sofridas:
a muita dor que as percorre
extingue-se na curta vida em que se consomem.

Os teus olhos são testemunhas
das lágrimas sentidas que se soltam
batem asas
e escorrem uma gota esparsa.
As lágrimas
vertem o turbilhão de estados de alma contraditórios:
a dor de viver
a dor pela dor dos outros
ou apenas a comiseração pela felicidade de quem a tem.
São monumentos
elegias da intensidade do frémito
que as empurra no emolumento das emoções.
São aviltantes?
Jamais.
Telas tecidas
na espontaneidade dos afectos desencontrados
ou no torpor do deserto lancinante
ou na solidão condoída.

As lágrimas têm a cor que lhe queremos dar.
O verde da alegria incontida
moldada nas lágrimas altivas;
o negro de um luto sentido
a saudade da pessoa querida ora partida;
o amarelo doentio
dor que consome a pacatez do corpo
expele as lágrimas como expoentes da dor tão forte;
o vermelho das efervescências
mergulhos em desavenças que ferem
ou o pranto da humilhação que verga em derrota.

Mas as lágrimas juntam-se
no fermento de um só sentido:
salgadas são
sentidas saem
e lavam o espírito.

4.6.06

Emanharado enigmático

No emaranhado
tecem-se os caminhos.
Gelificam-se os dedos dos pés
de tanto errarem nas artérias escuras.
Algures
de onde os raios luminosos se desprendem
há-de estar a resposta.
Por agora
apenas o desconcerto das ruas erradas
o mistério por desbravar
escondido no enigma celeste.
As teias desdobram-se no escarlate gotejante.
As teias tecem-se em si
e dobram-se sobre os incautos que passam.
Eles
palmilhando o emaranhado,
apanhados no alçapão da translúcida teia
e na anestesia que os exaure.
Quem sabe
a teia que manieta,
a resposta para o emaranhado enigmático.

30.5.06

O labirinto sem saída

Os caminhos do labirinto
adocicam o desafio que é ser.
Na combustão lenta
o pavio consome-se em marcha repousada,
indelével.

São as intermitências que contam
não a lhaneza que irrompe, feérica.
Pode vir o fósforo, aceso,
acendalha da fogueira que se há-de consumir.
Pode vir, espevitado,
que as impurezas lhe não dão guarida:
as faúlhas tardam
escondidas no véu escuro
que demora na combustão.
Emparedado no vácuo latejante
nem com sopros alongados desperta.
Se, por instantes,
umas fagulhas esboçam espreitar
entre o negrume da lenha
assoma a humidade imperatriz a cercear a fonte.

O labirinto, insondável.
Nas encruzilhadas que se sucedem
nem o fogo altivo se distingue.
Houvera ele de aparecer a escurecer o horizonte
e uma pista teria para a saída.

Dorme ainda a fogueira
manietada pela humidade malsã.
Lá fora
na colina vizinha do labirinto
as cinzas não se libertam da letargia.
E enquanto o fogo não levitar a candeia do fumo
o labirinto permanece
prisão sem saída.

25.5.06

Afecto ausente

Desconhecia os encantos escondidos
mesmo ali, ao lado das ruelas por onde passava.
Absorto na modorra existencial
na atracção pelo precipício que as coisas contêm,
desmembrado de corpo e mente.

Aliás
por vezes
desconfiava que tudo em si
era desmembramento
– como se as pernas andassem para lados diferentes,
a cabeça ao contrário do tronco
a mão direita acima do cotovelo
as orelhas no fundo das costas.
Achava-se a pessoa mais ridícula do mundo.
E definhava
na lentidão dos assomos de esquizofrenia
por entre os passos trocados de uma dança ignóbil
nos abraços que nunca dera.
Esboçava esgares de cinismo
ao ver afectos trocados entre anónimos transeuntes.
Por andar distante de si a necessidade dos afectos.

Aliás
por vezes
desconfiava que a chacota dos afectos
era mais uma doença que o visitara:
a inveja por viver fora da casa dos afectos.
Desdenhava-os
ria-se para dentro,
gargalhadas que só ele ouvia,
ao testemunhar
uma mãe acariciando o filho
os namorados abraçados com ímanes
o padeiro e a familiaridade com o cliente
o velhinho entregando afectos a um cão vadio
o simples “boa dia” cortês do jornaleiro.
Mortificava-se
por sempre ter fugido dos afectos
encerrado nas masmorras onde se refugiou.
Delas não se conseguia libertar
como se um pêndulo pairasse, sem parar,
sobre a sua cabeça
no hipnotismo da perene ausência dos afectos.
No isolamento propositado
sabia-se consumido por desconhecer os afectos
as sensações não experimentadas
mas que ele augurava boas,
a julgar pela entrega das pessoas aos afectos.

Aliás
por vezes
queria-se emancipar das altas ameias
de onde a vista nada alcançava.
Em momentos de lucidez
– que confundia com ensandecimento precoce –
só desejava sair à rua,
sorver o odor das pedras da calçada
das flores acabadas de romper dos seus botões juvenis
e olhar nos olhos dos desconhecidos
entregar-se em beijos retemperadores
abraços apertados
presentes às crianças que as fariam mais felizes.

As masmorras acabam sempre por vencer,
a sua tenebrosa escuridão
que esconde os afectos
embrutece o esquálido desiludido da vida.
Resta-lhe esconder-se,
dormir muito;
que nos sonhos, ao menos,
pressente o toque mágico dos afectos com os outros.

Aliás
por vezes
Apetece-lhe jamais acordar
daqueles sonhos frondosos que,
no púlpito da alvorada,
trazem o amargo sabor da vereda espinhosa do resto do dia.

Velho adormecido

Descansa na esplanada
enquanto o tempo de esvai
como as águas do rio, lânguidas, para a foz.

Contempla a ponte
feita das pedras gastas
tão gastas como a sua pele tomada pelas rugas.

Os cabelos brancos que esvoaçam
dizem-lhe que houve tempo
em que a juventude foi rainha.

Agora, enquanto o tempo se demora,
bate-lhe à porta a nostalgia
povoada pelas recordações que ungem o presente.

Entrelaça os dedos das mãos
e sente a pele rugosa
a batuta das adversidades semeadas vida fora.

Refugia-se nos claustros da nostalgia
o impulso para a solidão em si
olhando a constelação de coisas pequenas de tanto dizer.

Por entre as memórias
as mais recentes, funerais de amigos que partiram,
o tremor que se apodera ao pressentir que a porta se fecha.

Apela à memória mais longínqua
iludindo o que o espera – e atormenta;
descerra imagens frondosas, sem rugas ou cabelos brancos.

Nesses tempos
o coração palpitava com força
e tragava com vigor todos os segundos do dia.

Uma gaivota com silvo estridente
desperta o velho para o dia de hoje
e vê, com os olhos cansados, as crianças que rejubilam.

Erro fatal invejá-las
que cada coisa tem a sua idade
e o tempo é o reduto do que já foi gasto, irrecuperável.

Por todo o lado
a brisa fresca arrefece as ilusões.
Sabe o velho que lhe resta esperar.

20.5.06

Fragmentos

As coisas na sua contradição interna.
A criança pontapeia a bola
que se perde do outro lado do muro.
A velhinha arqueada
atravessa a rua desamparada,
pára o trânsito.
As folhas outrora esverdeadas
estatelam-se no solo, agora acobreado.
Um cão vadio erra sem norte
conduzido por onde o faro o leva.
Há pessoas na rua
destinos inverosímeis
caras sorridentes
caras carrancudas
umas destilam desconfiança congénita
antipatia defensiva a rodos.
Há quem olhe para o céu
enquanto deixa escapar um suspiro.
Acaso anseiam que o avião que traceja o céu
as levasse para bem longe
onde pudessem achar outro destino.
O mendigo vasculha o lixo
sabe-se lá em busca do quê
empesta as mãos desnudadas
carcomidas pela desventura dos anos.
Nos seus olhos baços
petrifica-se a muda existência.
Tem o cão como companhia fiel
com ele partilha os seus parcos víveres.
É para ele que esboça o seu único sorriso
que outras almas humanas outrora
o deixaram em solidão cortante.
O mendigo cruza-se com a criança
levada pela mão da mãe pressurosa
que a aperta ainda mais com o mendigo próximo.
A criança olha, surpresa,
para os andrajos do mendigo
vê a sua barba avantajada e deslavada
o cão bem tratado no paradoxo do quadro.
A criança
desconhece a miséria
não lha foi contada nas histórias de embalar
quando o dia se despede no sono.
A mãe esconde-lhe a pobreza
só consegue adiar a curiosidade.
Há-de crescer
deixará de ser criança
entregue à aprendizagem de si
e do mundo lá fora
tão habilmente sonegado pela mãe diligente.
A criança, já crescida,
perderá aviões na azáfama da jorna preenchida;
olhará para o lado quando a velhinha caduca clama,
na sua muda voz,
pela ajuda para atravessar a rua;
terá o incómodo de partilhar o passeio
com o cão vadio que vagueia, errante;
ficará insensível ao mendigo
estendido no chão
estômago ferido pela ausência de alimento,
de mão estendida pela piedade alheia.
A criancinha
já adulta,
terá apanhado o avião do fausto
cortinas cerradas para o lado fétido da vida.
A mãe zelosa,
culpada da encenação do mundo,
deita-se todas as noites
na ilusão de uma consciência aquietada.

Fragmentos

As coisas na sua contradição interna.
A criança pontapeia a bola
que se perde do outro lado do muro.
A velhinha arqueada
atravessa a rua desamparada,
pára o trânsito.
As folhas outrora esverdeadas
estatelam-se no solo, agora acobreado.
Um cão vadio erra sem norte
conduzido por onde o faro o leva.
Há pessoas na rua
destinos inverosímeis
caras sorridentes
caras carrancudas
umas destilam desconfiança congénita
antipatia defensiva a rodos.
Há quem olhe para o céu
enquanto deixa escapar um suspiro.
Acaso anseiam que o avião que traceja o céu
as levasse para bem longe
onde pudessem achar outro destino.
O mendigo vasculha o lixo
sabe-se lá em busca do quê
empesta as mãos desnudadas
carcomidas pela desventura dos anos.
Nos seus olhos baços
petrifica-se a muda existência.
Tem o cão como companhia fiel
com ele partilha os seus parcos víveres.
É para ele que esboça o seu único sorriso
que outras almas humanas outrora
o deixaram em solidão cortante.
O mendigo cruza-se com a criança
levada pela mão da mãe pressurosa
que a aperta ainda mais com o mendigo próximo.
A criança olha, surpresa,
para os andrajos do mendigo
vê a sua barba avantajada e deslavada
o cão bem tratado no paradoxo do quadro.
A criança
desconhece a miséria
não lha foi contada nas histórias de embalar
quando o dia se despede no sono.
A mãe esconde-lhe a pobreza
só consegue adiar a curiosidade.
Há-de crescer
deixará de ser criança
entregue à aprendizagem de si
e do mundo lá fora
tão habilmente sonegado pela mãe diligente.
A criança, já crescida,
perderá aviões na azáfama da jorna preenchida;
olhará para o lado quando a velhinha caduca clama,
na sua muda voz,
pela ajuda para atravessar a rua;
terá o incómodo de partilhar o passeio
com o cão vadio que vagueia, errante;
ficará insensível ao mendigo
estendido no chão
estômago ferido pela ausência de alimento,
de mão estendida pela piedade alheia.
A criancinha
já adulta,
terá apanhado o avião do fausto
cortinas cerradas para o lado fétido da vida.
A mãe zelosa,
culpada da encenação do mundo,
deita-se todas as noites
na ilusão de uma consciência aquietada.

Manifesto da rebeldia militante

Amotinados
rebelam-se no ardor das causas.
Entregam-se às faíscantes lutas
desenfreadas bebedeiras
ideia emproada em razão só,
sem contestação.
Rebeldes
feridas por cicatrizar
pela relutante caminhada
por janelas com vidros quebrados
cravados na pele rija das palmas dos pés.
Ensandecidos parecem
ao puxar o lustro à razão das ideias.
Cegados por uma vara lancinante
andam aquém do discernimento,
fugazes entre as constelações do ser.
Emparedados no rigor da doutrina
agrilhoados a estreitos túneis escuros
onde a luz não ousa penetrar
tão pesados os muros
tão densa e fétida a atmosfera.
Amotinados
no suave apascentar da modorra
protestam,
a voz alta,
contra a acalmia anestesiante.
Tudo o que querem
é romper com as águas paradas
que se abeiram da estagnação letal;
outro quadro sem dóceis consentimentos
pessoas falantes sem o estigma do rebanho
que segue,
ordeiro,
pastores aviltantes.
Domina-os o método:
não o admitem,
acaso a pardacenta existência mudasse
e almas recobrassem o hélice enérgico,
eles iriam em busca de outro paradigma
outro furioso desencontro com a normalidade.
Eternamente insatisfeitos
neles
(e por eles)
fermenta o desprazer.

16.5.06

Gato atropelado

O gato morto
preto
a ser retirado da estrada.
Um homem
papel na mão
pega o gato pela cauda.
Sepulta-o na relva imunda
de beira de estrada.
Desfaz-se do papel
cospe para o chão
o ritual no nojo do acto.
O cadáver
ao menos
descansa do esquartejamento
por apressados automóveis.
Não será um enojado e indiferenciado
amontoado de carne triturada
a esvanecer-se com os rodados
que martirizam o que já nem cadáver seria.
O destino fatal do gato:
mais honroso
na coragem daquele homem
que dignou o apodrecimento final
do cadáver do infeliz gato.
A desdita tem momentos de sorte.
E vale alguma sorte
quando
cadáver já feito
ao bicho
a indiferença dos despojos?

14.5.06

Violinos dançantes

Canta-me a tua voz
o som melodioso
das cordas de um violino
debruado a ouro.
Os sussurros que entoam no ouvido
a mágica melodia da voz convicta
voz cálida que aquece os sentidos.
Vale a voz por mil instrumentos
como se orquestra fosse.
Uma afinada orquestra
que povoa o imaginário
com paisagens verdejantes
o céu pontuado por nuvens arquitectónicas
os montes que anunciam
férteis vales onde se descobre o rio
que retempera os sentidos.
Lá, onde as rãs coaxam
e os pintassilgos vivificam melodias piadas
onde a tua voz
me conta as coisas que quero ouvir.
Os acordes soltam-se
na finura das palavras selvagens.
Escoam-se com o tempo;
pudessem emoldurar o tempo
quando elas faziam acreditar
que vivíamos numa fotografia do tempo.
As ilusões são isso mesmo:
enganos dos afectos
emoção que deslumbra os sentidos.
A musicalidade da voz,
na entoação sublime das cordas dos violinos,
apenas uma dança imaginada
no tempo em que as ilusões eram reais.
Guardo na memória
a melodiosa voz que pertencia às ilusões.
Retenho comigo
o violino de onde essa voz se soltava.
E se a frieza de um coração empedernido
repôs a ilusão no quarto das recordações
tenho em mim o violino harmonioso;
não vá dele necessitar
por as ilusões reclamarem espaço
algures
num destes dias.

9.5.06

Sagração da alvorada

Os primeiros raios de sol
anunciam a luz clara.
Tonifica-se a alma
tinge-se o espírito com a frescura matinal.
Há na alvorada uma magia incomensurável.
Quando chega, discreta,
rouba a noite escura.
As cores e os odores renovam-se no que são.
Ganham vida
e emprestam-se ao ambiente
sequiosos da simplicidade da luz solar.

Primavera.
Amanhece mais cedo.
Os olhos estremunhados acordam
bebem a renovada luz do dia
pespegando o sol que,
breve,
alto vai cintilar.
Quando a alvorada gentil cedo se levanta
há um canto do dia escondido
na penumbra nocturna que ficou atrás,
derrotada na luz triunfante.
Vaga imparável
esquadrinha os cadinhos do céu.
Pinta-o de azul.
Antes há-de tingi-lo,
por instantes,
no alaranjado rubor do sol
que trespassou o breu nocturno.

Os pássaros acordam primeiro.
Deliciam-se com a mágica alvorada
no chilrear exuberante nas copas das árvores.
Pressentindo a luz caridosa
as flores soltam-se do resguardo nocturno.
Pássaros e flores
mão dada com a alvorada,
hospedam os transeuntes
(ainda a sair da letargia do sono)
para o dia frenético na cidade desassossegada.

Quando o sol se põe alto
já adolescente,
a alvorada despede-se na manhã.
Sem o encanto da alvorada branca
nem o sossego das ruas desertas.
Fina-se a alvorada
quando as ocupadas almas
batem a porta de casa e saem.
Vigorosas ou contrariadas,
apressadas ou lânguidas ainda,
para a rua já fremente.

Outra alvorada à espera
ciosa da luz
primeiro trémula, depois refulgente.
A saciar o apetite dos fogosos e indomáveis
amantes do bodo da vida.

8.5.06

Sapiência dolorosa

Unges a tua erudição,
pérolas agraciadas aos incultos permanentes.
Colocas-te no Olimpo dos sapientes
tradutor da instrução dos asnos impenitentes.

Deambulas nas danças insondáveis
pequenos os passos incompreensíveis.
É na erudição tão elevada que te refugias.
Até de ti mesmo.

Um dia,
tão inebriado
com assanhado conhecimento
esqueces-te de pôr o olhar em ti mesmo.

Ao despertares das incuráveis tarefas
da sapiência que espalhas,
vês ao espelho quem não reconheces.
Já não és tu, apoderado pela criatura em que te tornaste.

Virá o tempo da redenção.
Livros, enciclopédias,
mais os dicionários,
estulta matéria-prima de um desassossego.

Virás a tempo de recuperar o tempo?
Emancipação do castelo onde te aprisionaste
tocar nas pessoas, ora de caras belas
ora horrendas faces com verrugas e tudo mais.

Falar, sair do altar, caminhar
andar por sítios escondidos da tua torre de Babel
e saber que a ignorância que foi teu combate
é a aura de um povo tão feliz.

Só não saberás:
se renascido estarás
ou endemoninhado pela cruz que te crava
chaga ardente bem fundo.

6.5.06

Sonho, loucura

O sol de rompante tingido de vermelho.
A ruborizada cara da tímida desmascarada.
Máscara dos foliões do Carnaval das ilusões.
O desengano acometido aos passionais militantes.
A crença cega: ideias, pessoas, superstições.
O gato preto escondido dos que o esconjuram.
A ignorância que fermenta com a bonomia dos incautos.
Olhos fechados ao mundo, acríticos seres que vegetam.
Anomia interior que desagua num árido deserto.
Pisam areais escaldantes,
as areias que espalham miragens encantadoras.
Ensaiam sonhos do que não são.
Em miragens mais se revolvem
como se as areias crepitantes fossem
os lençóis que os aquecem.
Contemplam estátuas grandiosas
que só aparecem diante dos seus olhos.
Estátuas que enobrecem feitos impossíveis.
Quando acordam
assustam-se com a exiguidade do quarto que os aprisiona.
Amordaçados,
sem acesso à palavra que chama por socorro,
das amarras da camisa-de-forças já não se libertam.
Quando beijam a acalmia
percebem a ilusão dos sonhos que os mantêm ligados à vida.
Apetece cerrar os olhos
mergulhar no profundo sono,
sorver os sonhos idílicos,
paisagens brancas,
onde tudo é alvura
(o céu, as estrelas, o mar, a relva).
Como branca é a nuvem onde levita a liberdade esquizofrénica,
apenas uma liberdade onírica
fantasiosa
nua
na crueza do nada que bafeja bem alto
quando os sonhos já estão a pedir para serem sonhados
outra vez.
Aí sabem que levitam
na leveza que jamais os visitara,
passos lentos que pousam em nuvens almofadas.
Lá, onde as pessoas têm faces límpidas
olhos encantados pela luz pura;
onde os dedos se entrelaçam no afecto irreprimível.
Com o tempo
aprendem a viver espoliados do discernimento,
a droga vital e adorável
lenitivo da aquietação compulsiva.
A tranquilidade exasperante que nunca incomoda,
trajecto sem curvas nem encruzilhadas,
cumprido a eito, sem esgares,
ou um mar nunca encapelado
nem quando o vento fresco se deita
no mar que teima em ser chão.

Fogem,
fogem das coisas que são
das pessoas que existem
fogem deles mesmos quando fantoches alheios se tornam.
Ou apenas fantasmas propositados que se ensimesmam.

2.5.06

Ode à vida

Há almas que encontram paz na morte.

Sei que virás.
E sei que preparado não estarei
para te receber.
Pintam-te de negro.
Esconjuram-te, ensandecida és,
por desapertares os nós da vida.
Doentia e fatal
chegas um dia e ceifas a respiração.
Saltitas entre a penumbra,
para que ninguém te veja quando,
traiçoeira,
sorves ingénua alma para o alçapão.

Tu chegas a todos os mortais
que o são,
terrena e frágil condição,
por tu seres o que és.
Vestes de negro
quem chora a perda de quem levaste,
antecipando o choro invisível
da sua própria partida,
quando decidirdes que o indómito dia chegou.

Por tua culpa
vilipendiam o preto,
tu que cobres com manto de tristeza
os que sofrem com a despedida de quem levas
contigo.
Desapiedada,
dizes-te fiel da balança,
penhoras o equilíbrio da espécie.
Dizes-te
cultora da demografia aceitável.
E contudo
és cega quando tomas em teus braços
os mortais que o deixam de ser
quando se despedem dessa condição.
Será por isso que te dizem traiçoeira?

Por mim podes vir quando quiseres.
Convenço-me que sim,
que podes vir quando quiseres.
De preferência,
sem hora nem dia marcados.
Cá estarei,
não de braços abertos,
na jactante luta contra ti.
Há vida tanta por viver
que um sopro resoluto te afastará
Para algures,
um sítio que nem sei onde.

Virás,
as vezes que vieres,
e terás um obstinado amante da vida
insaciável no apego das coisas,
das pessoas, dos afectos.
Insaciado ainda por tanta vida haver.
Esse é o bolor que te incomoda,
ó morte tenebrosa:
para longe,
longe do horizonte.

30.4.06

O quarto gelado

Num losango iluminado
rangem os dentes,
tiritam com o frio não aquecido
pelo losango.
Lá pertencem
os ossos dobrados
pelo ressequido, gélido ar que dói.
Nem agasalhos
nem uma bebida quente
para resgatar os corpos do torpor.

A noite longa promete saga interminável.
Os corpos abandonados ao gelo
olham para a fumarola soltada
pela respiração resignada.
Na janela depositam-se os cristais de gelo.
O ar límpido
desnuda a lua cintilante,
empresta a nitidez ao ar cortante.

Naquele quarto
apenas o silêncio quebrado
pelos corpos incomodados
– que se movem no encalço do calor
no ensaio da ilusão do frio translúcido.
Ou o silêncio violado
pelo gemido dos dentes,
pelo frio tão letal.
Os corpos aninham-se
fossem adivinhar que o ninho
descobre uma réstia de calor.

O gélido chão entra pela carne
apodera-se dos músculos
enraíza-se,
toma conta dos ossos.
Algures a meio da noite
a dormência latejante anestesia os sentidos.
Dedos que não se sentem
o frio que deixou de ser uma dor
ou os sentidos que se ofuscam.
Alucinam os sentidos
enganando os corpos já entorpecidos.

Ou se apressa a aurora
ou o fantasma da despedida acena,
sorrateiro e indesejado,
cruzando as paredes de madeira.
Ou se apressa a aurora
semeando a luz que afugenta
as armadilhas dos precipícios,
ou o maior dos cadafalsos,
ali encerrados,
no refúgio derradeiro.

A luz aguada do losango
mantém os olhos acordados.
Impede que os olhos se recolham,
quem sabe?,
no derradeiro adormecimento.
Tomara
que luz tão tímida
franqueie o portão ao majestoso sol.
A alforria daquele cárcere necessário.