19.7.16

Descompromisso

O cobrador de promessas
amanheceu irado.
Tivera maus sonhos:
deixara de haver gente madraça
no respeito das promessas próprias.
Sabia.
de ciência certa,
da impossibilidade das pessoas,
das pessoas todas,
serem diligentes
no deve e haver das promessas.
Mesmo assim
o cobrador de promessas
estava com o coração a mil à hora
um aperto interior
que quase tirava a respiração.
O cobrador de promessas
continuava sem entender o temor:
não era preciso estudos
ou ser cientista com nitidez de análise
para extorquir aos autos da espécie
a mitomania sem remédio.
Pois se os da espécie
eram dignos
da mentira que sobre os próprios se abate,
que abutres julgaria o cobrador de promessas
estarem de atalaia ao seu alpendre?
Confessou
aos seus próprios fantasmas:
receava que a espécie tivesse uma epifania
e de repente,
sem exceção,
perdesse as rédeas da mentira
e acautelasse todas as promessas
com selo notarial;
temia
o cobrador de promessas
que a demissão rimasse
com a redenção da espécie.
O que o cobrador de promessas
não quis ver
é que as promessas só podem ser cobradas
por quem delas é autor.
Afinal
foi ao cobrador de promessas
que se deu um assalto dos vultos interiores,
os máximos julgadores das intenções,
das ações
e das omissões.

18.7.16

Sentinelas

Atravessamos as ruas de mãos dadas
o fardamento contra os atropelos
sem aviso.
Vamos ao encontro da âncora maior
onde deixamos o suor sem pesar
e ganhamos o tempo de volta.
Colhemos na pétala branca
o mapa de onde somos
e sabemos ser matéria que desconhecíamos.
Respiramos no fundo do desfiladeiro
as rochas duras sentidas nas mãos
nas ameias contra anjos fingidos.
Arranjamos as paredes cardadas
onde deitamos os corpos cansados
no ocaso que pratica a penumbra.
Não povoamos contrafações a eito
nem sequer como amostra
por sermos tutores do nosso devir.
Celebramos os esteios fundos
os cálices de onde bebemos
os lençóis cúmplices
os mastros irrefreáveis
o tempo que detemos em contemplação
as lágrimas que dão mote aos corpos 
entrelaçados
as feitorias de onde avistamos calmaria
as paisagens pintadas 
com a cor dos nossos nomes.
E concebemos,
pela plenitude que a nós vem
na avidez dos corpos inquietos,
a casa inteira de onde nos entronizamos
imperadores
com o selo do sol suado em sua solenidade.

16.7.16

Da minha janela

Da minha janela
a aurora que cicia os segredos.
Da minha janela
o vento húmido entrando
nos ossos.
Da minha janela
a paisagem fetiche devolve
o ardor em cadeiras arqueadas
sob o doce jugo do desejo.

Da minha janela
colho as flores balsâmicas
que vêm às mãos sedentas.
Da minha janela
deito o peito ao mundo
num relógio sem arestas
e proclamo a totalidade das coisas.
Da minha janela
deixo o tempo vagaroso
deixo-o ser um lago vistoso
onde o olhar se demora em contemplação
sem notar no desmaiar da luz.

Da minha janela
remoo os víveres maçadores
que memórias sem freio teimam
deitar no palco abraseado.
Da minha janela
povoo o porvir com pedaços de mel
e pinto as paredes com cores lunares.

Da minha janela
abro os braços inteiros.

#42

Não bebo as lágrimas
derramadas em fráguas íngremes
nem o sal transido
em léguas noturnas.

15.7.16

Tutelar

Um imenso poço de petróleo
onde as algas interiores se lavam
na impureza das lavas.
Apóstrofes indignadas levitam no calor
sem se saber se as mãos se apertam
ou se terçam num tear frio e redentor.
Ou, talvez,
tudo o que interessa é o cerzir das luzes
em estando os céus à espera de tempo.
Diziam-se:
ditados só para reforçar ideias
estrofes perdidas entre páginas sem rosto
palavras macias entre os dentes cerrados
preces avulsas entre paredes caiadas.
E então
abrindo as mãos
– como se estivessem prontas
para abraçar rimas sem rumo
e estrelas descidas ao chão
– cintilavam os olhos sequiosos,
as diletas personagens fruindo na imaginação,
e deitavam-se no palco sem pano
as imagens belas
as paisagens extravagantes
os caudais velozes
à espera de domar os impávidos escrutinadores
das almas.
Da lava funda
em fervente jato
o imundo petróleo que tudo purificava.

14.7.16

#41

Sabia de fonte segura
que gritos emudecidos ecoavam
na trovoada seca
enquanto dentro das casas
choravam de medo as paredes suadas.

13.7.16

Pé de dança

A dança sinuosa
no atapetado chão vítreo
levanta o ventre ao promontório.
Desengonçado
sem remédio
a não ser
mergulhar na negação
até convencido estar dos dotes
de dançarino.
Mas é tudo no seu contrário,
como a vergonha apascentada adverte
em contramão das gargalhadas de usura
no asfalto liquefeito do vexame.
O que importa?
Deite-se o corpo à música
deixe-se a música ser musa sua
remetam-se as injúrias à estética
para os pardais irrelevantes que adornam
os beirais do tempo:
que a dança
por sinuosa que seja
chama dançarinos
– e dançarinos só –
sem cuidar de saber se são
diligentes
capazes
e audazes.
O que conta
é o pé de dança
com o frescor do rio em contrafação.

12.7.16

Redenção

Mandavam confettis tardios
sobre as costuras da manhã
os homens bravios
repousando na luz temporã.
Não queriam domar baldios
de gente barrosã
hipotecando seus lados gentios
atirando dados à gente vã.
Tiraram medidas a ventos sadios
para terem em mão prebenda sã
perdendo o visto dos olhos vadios
em oferenda que basta ser meã.

11.7.16

Sinais de fumo


(The Durutti Column, "Duet With Piano", in https://www.youtube.com/watch?v=6vfJf_SzthA)

Sazonais pássaros deixam
cantos rasantes nas paredes alvas.
Os ombros pesam
como se a neblina matinal
tivesse o peso do chumbo.
Dizia-se que os portões de ferro
eram o logro de onde se punha vista
no estuário de prata.

Mas depois
uma curva apertada
interrompia os pés descalços.

Uma curva apertada.

Depressa as mãos tomaram cama no piano
e arpejaram cores ciciadas
nas gotas frias da chuva a destempo.
Tomara que as retas não se juntassem
em planícies sem fim
em planícies à espera de searas fartas.
E se os corpos se dão ao medo
ao medo de curvas apertadas,
curvas sem aviso
(curvas ao acaso),
um murmúrio quente depõe ao ouvido
da mulher amada:
como o mundo inteiro sobra
quando as mãos se aconchegam
num castelo de reis.

O piano devolve a tapeçaria que terça
o templo onde o tempo se demora
enquanto as mãos se beijam em auroras doces
e os amantes entram nos olhos recíprocos.
Ditando palavras cheias
palavras rios
e palavras açambarcadas
o ouro arregaçado em mangas rotas
e a janela desembaraçada à espera do mar,
onde o sentido maior segreda:

somos nós
e nós apenas
os curadores dos campos
onde se colhe o amor.

8.7.16

#40

Convertido o sal do mar
(inteiro)
sobra o regaço das minhas
mãos.

7.7.16

Sem rédeas

Estrutural
o grito aberto
que sangra nas pedras alvas
ao cimo da escadaria dos pastores.
Passam os turistas
indiferentes.
Congemina-se a lua
nas imediações do entardecer
e os carros apressam-se
para o decesso do dia.
Dizia-se
que os sacerdotes rezam
noite e dia
pela jubilação das gentes
a matança das guerras
a fortuna das almas.
Indiferentes
os gritos sem rosto
esbracejam no forte mais alto
e deixam as migalhas da sabedoria
aos aprendizes meãos.
Não querem provações castas
nem boémias destravadas;
querem apenas beber a água da lua
quando ela se monta na sua roda grande
e o sol se some atrás do ocaso.
Para depois
treparem a escadaria alcantilada
e do promontório clamarem:
“e tu, ainda estás aí? Ainda estás aí?”
Sentam-se nas esquinas envidraçadas
trocam o ouro por pétalas frescas
juntam as páginas arrancadas
e tocam com os dedos no chão da lua.
E perguntam
outra vez
sem que a voz murche:
“e tu, ainda estás aí?”

6.7.16

Bandeiras gastas

As bandeiras sem vento
despojam-se do seu ser.
Murchas
arqueiam-se sob o jugo farto
de uma hibernação sombria.
Mortiças
cansam-se de serem nada.
Não se alimentam da ferrugem
dos mastros que as albergam:
morrem por si mesmas
domadas pelo marasmo dos tempos
que correm depressa na inversa proporção
da inércia do vento.
Só estão à espera de alguém
(piedoso)
que as liberte do peso morto que são
e as devolva
ao baluarte das simples memórias,
contra a conspiração do vento poltrão.

5.7.16

#39

Os laços retorcidos
distinguem a estátua do estadista.
Menos mau:
fossem dejetos das pombas
e na estátua, a estatura do retratado.

4.7.16

Carmim

No sangue sereno
que se sacia no seio abastado
a singular serenata
sibila uma sátira emparedada,
um sortido de sábados suados
segredando o que satãs sovinas
não sabem ousar.
E depois
depois de sindicar os súbditos
surgem dionísias sereias
as que soerguem seios abastados
e o sol serve aos soldados desarmados
a sua saliva.

3.7.16

Diagonal

Uma gota líquida de ouro
vertida dos olhos sem sono
à medida do tamanho das montanhas.
Dizem que uma aura lúcida
penhora os descaminhos causados
pelos neófitos artistas sem rosto.
Ganha-se a veia reta
jurada em pratos rombos;
projeta-se a veia
até se aquietar num fluxo contínuo
deixando um tear liso e limpo
a servir de avenida.
Frondosa,
a avenida,
com suas árvores de fruto generosas
e os ramos abertos
como se fossem braços amplos
a convidar ao resgate das almas.

1.7.16

Os cães e o veleiro

O veleiro adormeceu nas dunas
talvez
imagem de provecta idade
talvez
em sinal de falta de destreza
de marinheiros amadores
talvez
por ação de um mar adulterado.
O mastro caído no areal,
à mercê de uma matilha de cães
farejando o objeto estranho,
simula-se objeto inanimado.
A lídima inutilidade
à mercê da maresia sem misericórdia.
Os cães afastam-se do mastro
(assustados)
com um pulo para trás,
esboçam pose desconfiada.
Não
não é um objeto desconhecido
ou vestígio extraterrestre;
talvez o seja
(uma coisa ou a outra
ou as duas por junto)
para os cães que passeiam sua
vadiagem.
Para o que conta
o veleiro,
outrora miragem da ostentação,
sonho impossível dos remediados,
é tão vadio
como os vadios cães.
Prova-o a mija sobranceira
atestada no casco
por um dos da matilha.
O que prova
também
a inutilidade dos cemitérios.

30.6.16

#38

O dia com figura perfeita:
juntamos as mãos
(dantes vazias)
e da carne viva
tiramos a mais profícua semente.

Coroa sem espinhos 

Os poros da solidão
enfraquecem-se no rebordo do cálice,
enquanto um arrebatamento sobe
ao céu da boca.
Podem os raios do sol
planear um embuste dos sentidos,
o olhar anestesiado no torpor da luz.
Não interessa.
No planisfério reinventado,
onde apenas contam os contos
devolvidos pelo labirinto do pensamento,
águas frescamente verdes possuem o trono.
As folhas vicejantes de um ulmeiro,
resgatadas à raiz,
são o chão aveludado onde se entretecem
palavras que arredondam uma quimera.
As temíveis montanhas
onde a solidão tinha porto franco
perderam os pergaminhos de embaraço.
Uma mortalha em forma de coroa real
ascendeu ao corpo transido.
Não importava que invocassem
ardis ou ilusões ou fantasias.
O chão inteiro pertencia-me,
na paciente empreitada.
Juntei por todo os parcos haveres
e troquei-os
por um lago que se perdia de vista.
Um lago onde as águas lavadas
eram o propósito da transfiguração.

29.6.16

Matricial

Ao fundo
a árvore matricial.
Parada
na ausência de vento
(como se nem sequer houvesse ar).
Sem rejeição das folhas
que nos seus ramos caducas
não se transfiguraram.
Matricial,
no contrapeso da planície extensa.
Contra as vozes roucas
que proclamam feitos vorazes
que se batizam imperatrizes do nada
na planície árida.
A árvore matricial
sopeso dinâmico antes do precipício.
Para quando
em autofagia sem freio
preciso for uma báscula
onde se decifram
as luzes abertas e as sombras madraças.
As sombras madraças
afundo.

28.6.16

Do estirador, uma janela

Uma bagatela
três doses de chuva no alpendre
e os cães lá fora, tresloucados.
O ministro enfatuado
mais o deputado da oposição
contorcendo-se com intolerância.
O sol sem dó
limpando os vestígios da chuva extemporânea.
Uma liceal a mastigar pastilha elástica
em ofensa à estética.
As sumidades catedráticas
ostentam o garbo e o pundonor
à espera de genuflexão a condizer.
O escritor desespera
no fulgor da desinspiração
tomado pela apoplexia da hibernação.
Da sua toca
alcoviteiros avarentos
(na avareza do seu iletrismo)
farejam os dejetos da sociedade bem-posta.
No altar engalanado
o sacerdote persigna-se como prefácio
da confissão dos desvarios carnais.
O rio aborda o cais
pressente o musgo húmido, que não toca.
As mãos suadas beijam o trono arruinado
sem saberem
que de ruínas se trata.
Da janela do elétrico
ao passo do rio que desliza com vagar
a velha cansada mete memórias em dia.
O pescador nota
e anota em caderno de pensamentos avulsos.
O rio não se cansa
nem quando o entardecer insinua o repouso
e a noite madraça rompe com a intrepidez
dos sentidos.
Há horas
que o pardal espera por migalhas
sem saber que a esplanada está para obras.
Há horas
que o mendigo amputado espera
espera que alguém o venha visitar
com esmola para uma sopa diária.
Uma bagatela que seja
no soporífero dançar dos olhos amestrados
só para a caridade não ser vã
e ele não dormitar com o estômago encostado
às costas.
Oxalá os quadros do tempo
não fossem hinos realistas
que desassossegam o sono inteiro.
Oxalá não houvesse melancolia
e solidão
e guerras espúrias
e pobreza
e ingratidão
e desonestidade
e mentira
e dissimulação
e tudo o resto que não quadra
com a idílica paisagem de um mundo
(ideal).
Oxalá.
Mas não somos feitos de oxalás.
Não somos tutores da fina faiança
que entroniza o amanhã com ouro puro.
Bebemos o cálice com o que há
e damos a beber na inexpressiva maré
de onde aprouver fruto a recolher.

27.6.16

#37

Tenho-te
olhos entre as mãos
e bebo em lágrimas avulsas
o coalho de onde me soergo.

Periscópio

Os segredos mordem com dentadura de sal
em passando doidivanas crianças na praia.
Segue-se um hiato temperado
o caldo fervente com as letras amputadas.
De hoje para amanhã,
quando soluçarem as viúvas eternas
e os desamparados da rua recolherem víveres,
os segredos possam evocar grandezas fátuas
memórias abrilhantadas
com a inutilidade da história
e histriónicos penhores da dita
que nunca dela se esquecem
e juram que o oráculo dourado está na história.
Dando de barato as futilidades dos presunçosos
e os frutos sem polpa recolhidos das árvores
dê-se-lhes um periscópio com lente límpida;
pode ser que tirem partido do tempo que há
e parem de defumar o pretérito
em ladainhas insulsas.
O periscópio:
ferramenta que deslaça as traves dos segredos
em levitações perfunctórias.

24.6.16

#36

Dardos floridos
aterram no lago de crisálidas
onde as apostas se congeminam
num sortilégio avulso:
apostam muitos
que o lago é de nenúfares.