25.1.17

Céu limpo

O sorriso maresia
destapou-se do baú empoeirado
na cintilação própria dos predestinados. 
Não queria saber dos dizeres alheios
nem das lotas onde se mercavam rumores. 
Não queria nuvens ácidas
nem bastiões de certezas impagáveis 
nem teclados adivinhados
nem adivinhas sem paredes.
O sorriso desfraldado
(discreto, porém)
era o trono vívido
nas Mecas inventadas ao redor do luar. 
O património inteiro
guardado a sete chaves
dos azougados discípulos das árvores citadas
por cima dos sussurros
na esteira fundeada ao mais fértil chão. 

24.1.17

Fio de prumo

Em tempos
fui arquiteto das estrelas.
Depunha as mãos numa mina seca
e conseguia trazê-las molhadas
deixando água aos vindouros.
Em tempos
cinzelando as arestas das estrelas
fermentei o sal das dunas
sob o olhar inquisidor do sol superior.

À maresia
ia buscar as lágrimas
enxugadas contra as rugas da fazenda gasta.
E nem que visse crianças em prantos
as bainhas da alma se descompunham:
tal era um estado transitório
pois não há água que chegue no mundo
para prantos imorredoiros.

Os tempos
em que fui arquiteto das estrelas
não findaram.
Só que hoje
na bússola do tempo
por entre as traves encardidas dos bosques
e as ruas estouvadas das cidades
vagueiam almas vadias
almas impertinentes
almas que desajustam o tear dos auxílios.
Não precisam de estrelas para nada.

Ainda bem.
Era oneroso ser arquiteto das estrelas
e ter por esteio os lamentos dos outros.

23.1.17

#125

Não, há crise.
Não há, crise.
Não há crise.
Não à crise.

Cabo frio

Sabia o norte tecido
sem as rugas por ilhas
sem órfãos de ideias por perto
nem nas ilhargas sobressaltos outros. 
Tinha tudo ajuramentado
aos propósitos mais elegantes
(se à alma
alguma elegância pode ser adjunta).
Desembarquei entre os demais anónimos
sem saber deles as diferenças
sem me importar com seus fados. 
Ao primeiro golpe da alvorada
estimei sob meu corpo 
as veias crestadas precisas
para uma ignição. 
Não julgava ter o erro de estima
por companhia. 
Não julgava ter de hastear
a bandeira sem cores
a bandeira surda do tempo finito. 
Depois de passadas em revista
as páginas imerecidas
trouxe nas mãos as pétalas violeta
o sufrágio atilado da lua maior

22.1.17

Aquoso

Não era a chuva fantoche
que me importunasse.
Desci à chuva
o corpo suado por ela
em forma de janela aberta
e a chuva a entrar toda
sem pejo
sem limites.
Os instrumentos agraciados
fugiam das mãos
e um sonho vertido em pesadelo
enxaguava a água excessiva.
Tudo lavado
entretanto
e o peito preparado para outras
intempéries.

21.1.17

Agente secreto

Estouvados
em correria sem parar
como se de trás viesse um demónio.
Com a ambição de um refúgio
as paredes grossas
escondido do mapa
sem lugar no tempo.
A loucura sem marcas
menos as que se sentem por dentro
é a loucura no espelho
que são os outros.
Da loucura sentada sempre
no regaço dos outros,
e nós os únicos assisados.
Um anel sem rosto
e ladainhas incessantes
com uma espada sobre o devir.
Talvez seja a loucura maior:
pretender saber os cambiantes do amanhã.

20.1.17

Identidade

Lanterna apagada
no restolho das sombras
com instruções escondidas
sob as páginas adulteradas da manhã.

Avivada memória
derrama as nuvens céleres
sobre os torpes que cunham marés
com o frio que conserva sentidos.

Drogas esquecidas
ou então nunca sabidas
prometem avenidas largas
com a cidade entorpecida à espera.

Víveres rarefeitos
em deleites sem agenda
depois do acordar estremunhado
elegem o palco superior.

19.1.17

Na sela de um cavalo sem cabeça

Aposto
três dias de soldo
no insaciável magusto das lápides.
Aposto
como os artesãos
não deixam de as talhar. 
Não que venha grande mal ao mundo,
que os lugares atulhados
(e, ainda por cima, de imorredoira gente)
seriam destino inenarrável,
coutada de gente-fantasma
e de fantasmas feitos gente. 
Em má sendo uma hora,
que Ícaro cuide dos vivos
em tratando de encomendar lápides
para os que são tidos na roleta dos sobrantes. 
É costura que ninguém consegue derrotar. 
Os artesãos cuidam
de eternizar os desvividos em lápide:
ao menos por uma vez
um aplauso
mercê do punhado de palavras
cinzeladas em forma de elegia. 
(Ou o derradeiro solfejo de Ícaro
em paradoxal cartel com Tanatos).

18.1.17

Providência

Não se trata de rendição
nem de virar o eu do avesso
ou de esquecer o tempo fugido.

Não se trata
de adornar o fermento incapaz
nem de embuçar as palavras imerecidas
ou de emulsionar uma hibernação qualquer.

Não se trata
de separar os braços metidos num amplexo
nem de protestar contra marés embestadas
ou de ousar milagres como desfecho.

É só uma modesta proposta:
juntar nas mãos a natureza viva
aspergindo-a em redor
até que uma profusão de confettis
chova sobre o chão inesperado
e o seque das lágrimas vetustas.

#124

Uma viagem
sem esporas nem mapa
as mãos desatadas
e os olhos sem sono
desembaciados. 

17.1.17

Desordem

A desordem
é a ordem dentro da ordem
o buço mestiçado em ária incapaz
dentro de uma tina de vinho tardio. 
Pelas costuras da desordem
sobe a pulso um oxigénio remoçado
duro como carbono em fibra
na atalaia constante dos operativos mastins. 
Se na desordem houver fronteira
abracem-se as virgens enquanto for tempo
mergulhem cabeças intempestivas
nos licores salgados
dancem os velhos trôpegos.
E, nos interstícios do teatro hasteado,
num intervalo das pontes fruídas,
todas as arengas dissolvidas
no libreto da desordem. 

Noite sobre noite
sem tempo que chegue para a luz diurna
em promessa
com a desordem por notária. 

#123

Se eu te contar um segredo
prometes
que só mo contas a mim?

16.1.17

Dormente

Dou o ouro que há em mim
sem a água rasa das minas
com as lágrimas engolidas de fiada
com o pé largo do mundo sem rasuras.

Grito.
Grito surdamente
como se o grito deslaçasse o fio negro
e as botas aprumadas no caudal
se revezassem na orla estimada dos céus.
Mergulho a cabeça na água
como se isso fosse predicado
como se fosse segredo em danças sem sal
em provectas imagens de uma claridade rara.
Dou as mãos às algibeiras
pois parece que,
tementes,
precisam de se abrigar do frio madraço.

Não acabo sem perguntar
às lombadas alinhadas
desde o sofá solitário
se os arranjos do tempo explicam os acidentes
as cósmicas congeminações à margem de deuses
as árvores nuas no inverno sem luz
os rios aparatosos no coice da chuva imparável
a noite anestesiada
o rombo nas páginas enrugadas
a contrassenha dos segredos sem segredo
a tiragem contínua de uma ideia gasta
a romagem ao cemitério das rotinas
o fausto de caudilhos de si mesmos
o ar pesado nas imediações das fábricas.

Grito
outra vez
sem me ouvir.
Grito às ruas por onde arrasto o corpo
mesmo sem saber se as ruas se importam
se os deuses que guardam o tempo
se importam.

Se ao menos
não tivesse dado
o ouro que se guarda em mim
hoje seria a misericórdia da miséria.

#122

Tirei uma dúvida
e às dúvidas devolvi
eu sei lá quantas interrogações. 

15.1.17

Skydiver

Dizem as palavras insinceras
entorses ao que interessa saber?
Talvez não
se das mentiras se guardarem segredos
e a palidez do quadro se resolver
em esquadria aceitável.

Name and shame the winners.

Empresta-se a cortesia aos ábacos
usados nos cálculos despidos de erro.
E depois
antes que o derrame das lágrimas
se pressinta
antes que o chão se empape em lama
e as viúvas entreteçam suas lamúrias
veste-se a couraça
e voa-se para o céu despojado de nuvens
o céu de onde está montado
o miradouro sublime.

14.1.17

Repentino

Feita a angariação do futuro
no convés suado do navio
sobram para jornadas distintas
os olhos teimosos do viandante.
Nos frutos acidulados
pendidos de árvores vistosas
sente-se o troar das divindades.
Dizem
(as divindades)
para terçarem os mantos enxutos
contra os sequazes oráculos
deitados ao deus-dará por feiticeiros.
Dizem
(os simples mortais)
que apenas interessam
a esquadria dos dias planos
o desembaraço dos rios caudalosos
o bolçar remissivo de aves varonis
os lençóis impecavelmente brunidos
a fogueira que derrota a invernia
os óculos que são caução do olhar;
sem reter os brasonados alvores
nem os amanhãs sem fundo.

13.1.17

Duas léguas

Duas léguas
consideráveis
demoradas
em rima esforçada
em desafio
ao frio
no estio
com todo o brio.
Duas léguas
bastantes
para um poema nidificar
no bolbo jugular
das léguas outras
as demandadas e das por visitar.
Consideráveis as léguas duas
em demanda das demandas
sem comenda nem águas brandas
em verso ou prosa
ciciando ou no mais puro grito
no fevereiro sombrio
no abraço outonal
à espreita no singelo umbral.

12.1.17

Perecível

Soberano querer
mais alto
do que as mais altas montanhas
orgulhosamente mostrado
sem peias
aos trovadores das algemas
sem medos nem freios.

Soberano querer
sem limites
sem vidros estilhaçados
sem portelas embuçadas
sem vozes caladas
sem embaraços por perto
sem o nó górdio de esbulhos ao acaso.

Pois ao querer soberano só importam
os deslimites
as cores anátema
os uivos esfuziantes
as pedras colhidas entre o musgo fresco.
Enquanto o nada for perecível
e a tudo vier a impressão
do imorredoiro.

#121

À boca túrgida do pesar
sem caução para visita
os dedos emproados em desafio. 

11.1.17

Jogo clandestino

As cartas gastas
as luvas embotadas
os olhos marejados
o coração fraco
o dorso arquejado
os sentidos desmaiados
as esperanças desvalidas
e o jogo clandestino;
lampejo fátuo
preces sem deus
sentindo as veias incandescentes
e a rigidez da honra esquecida
um coração acelerado
os olhos vertidos no jogo
as mãos aquecidas
e as cartas ligadas pelo húmus dos dedos.

10.1.17

Atestado

Da escola perdida
entre os estorvos do tempo
parecem braços atados ao vento
perecem as ardósias gastas
e há luzes efémeras beijadas no estendal.
Os vidros partidos
selam a perda de outrora
de um tempo junto nas mãos
agora áridas.
Ao fundo
a vila anestesiada
um velho dormindo sobre o cajado
enquanto arrefece o banco do jardim.
A bússola diurna levanta os ecos
desarmando os rituais inertes
devolvendo às pedras brancas
a chuva eterna.
Sobram as vinhas douradas
e o peito inteiro nelas deitado
ao fundo
o rio maior
em rima de amor
(em rima com o amor)
varrendo as margens que o não interrompem.
Uma alma angariada
entre montes íngremes e cascalhudos
sem medo dos lacraus
sem medo do relógio transido
sem medo da gente meã
ecoando no rumorejo do rio distante
como se o ouvisse em sussurro junto ao ouvido.

9.1.17

Farol promontório

De um farol promontório
as luvas macias da relva-musgo
e vultos inesperados em coreografias
levantando as ondas do mar.

De um farol promontório
a noite clara na embocadura do cabo
desassisando prometidos fantasmas
em voos sem rosto.

De um farol promontório
em vez de cortinas rasgadas
em vez das profundezas da penumbra
uma centelha de ouro lídimo.

De um farol promontório
cinco minutos de cada vez
sem a espera mutilante
em relógios vazados e sem ponteiros.

De um farol promontório
às voltas com demandas excruciantes
em pelejas indemonstráveis
pedras leves nos mastros ao longe.

De um farol promontório
sinais de fumo orquestrados por um solitário
e os marinheiros penhorados
inclinam-se na rota serenada.

8.1.17

Pensamento

O chapéu de aba riscada
fermenta no lugar do pensamento.
Levanta o vento mortiço,
torna-o impertinente.
Esse é o lugar do pensamento:
um sobressalto contínuo
que se desembacia do torpor
um abalo telúrico
à procura de chapéu em ideal combinação.

7.1.17

Temporário

Ocasionalmente chuva
(penumbra)
ocasionalmente o mar
(sargaço)
ocasionalmente medo
(pesadelo)
ocasionalmente as dúvidas 
(penhor)
ocasionalmente o saber
(adestrado). 

6.1.17

Depois de amanhã

A tela refém
à medida dos estroinas
que despojam as páginas
enfim alvas,
enfim nuas.
O amontoado de ruas iguais
estreita-se na severidade de uma avenida
e os mendigos limpam o suor
mostrando as rugas como feição.
Não se descobre o ouro vadio
nem promessas de deleites:
o tempo veloz amotina-se
contra
os lingotes cerrados
as mãos duras e contrariadas
as luas esquecidas
o tónico servido em copo de fino pé.
Das impressões restantes
uma talvez luva aveludada
rimando com o rio assoreado.

5.1.17

Cálculo

Jogo o jasmim
na boca do fogo
onde a rendição espera
na letargia da noite.

Abraço as abas
na lenticular nuvem
onde a radiação se coalha
no embaraço das sombras.

Reparo os rogos
na diurna água fresca
onde os rudimentos se albergam
na vertigem dos animais sem freio.

4.1.17

Moço de recados

É a chuva intermitente
a barcaça a apodrecer no lodo
sem um ocaso que se veja
sem um pressentimento estimado. 
No fojo longínquo
fugindo de um falcão destemido
esgueira-se entre os arbustos rasteiros
fazendo lembrar argumentos repetidos
(eles também rasteiros). 
O moço de recados,
intermitente como a chuva,
mostra a torpe coluna vertebral:
fala com a voz do dono
a voz que mais pagar os favores desejados. 
Afirma as desafirmações de outrora
com a desmemória que entontece
os lençóis retorcidos sua vitualha. 
A chuva continua intermitente. 
O mundo segue por todo o lado.