14.2.06

Namorados perenes

A beleza discreta.
Palavras frontais que desarmam.
Dedos quentes que percorrem com prazer
O meu corpo.

Quis-te dar tudo.
O sol de todas as cores.
Pintar os quadros mais belos
Pintar a tua pele macia,
um resplandecente sopro
que trouxe pureza de ar.

No teu altar
percebi como as coisas são:
reais, não imaginadas.
Caí em mim
agraciado pela temperança
de seres tu ao meu lado
namorada, sempre namorada.

À noite,
encamisados nos lençóis que nos recolhem
só um beijo
para a renovação dos sentidos.
Parece pouco;
na idealização do amor impossível, decerto.
não é de impossibilidade que careço.
Apenas palavras curtas e acertadas,
gestos sublimes e tão intensos.

Sentir
que há alguém
que divide uma vida
alguém
que franqueou as portas da sua vida
à minha existência.

Uma partilha.
De mim por ti, em ti por mim.
Um travo adocicado
que dá sentido aos sentidos.
Olhares, pele, carícias, palavras.
Ternura.
Um património que soubemos levantar.
Nosso.

11.2.06

Matéria solúvel: cartilha do agnóstico

As cortinas da metafísica escondem
almas torturadas por divindades estarrecedoras.
Oram verdades inconsubstanciáveis
para o rebanho calar no véu da fé.
A cegueira de quem teima em ver na escuridão.

Os sacerdotes, metidos nos seus trajes,
vomitam a verdade, lava rubra,
como escaldante será à boca do vulcão;
patrulham a vida dos crentes,
uma porta aberta para a candeia dos sacerdotes.

Pregam a virtude a viciosos seguidores:
volúvel prédica, só encher o verbo
tão fátuo como o não foi
todo sangue derramado
em nome de superiores credos.

É a lava fervente que jorra colina abaixo.
Repousa nas ladeiras
Cristaliza convicções
Leva a vida de quem dela espera
terapêuticas virtudes.

Espera-os o remanso da vida prometida
que chega mal os olhos se cerram
definitivamente
numa escuridão relapsa
Torturante nada tão angustiante.

Das fés germinaram sementes de ódio;
pelas fés, espalhadas por todas as terras,
sinais da antítese do que elas reclamam ser:
morte em vez de vida;
ódio em nome de um amor retórico.

10.1.06

Em demanda da ternura

Escolher para ti um trono de ternura.
Regressar aos beijos
repousados na tua pele branca.
Soltar as amarras
que enregelam os afectos.

E depois,
pela noite,
acolher-te nos meus braços
residência dúctil para a tua fragilidade.
Sem aprisionar a leveza escondida.

Lá fora,
enquanto sopra a ventania invernal,
escondem-se os fantasmas de antanho.
Braços férreos empurram-nos
para latitudes distantes.

Os fantasmas,
como o vendaval,
escurecem a gélida distância cultivada.
São a bolorenta lassidão dos dias
que se dobram, repetitivos, esquálidos.

Há lugar a toda a ternura de outrora.
Haja força para derrotar
as vesgas madrastas que não ficaram vergadas.
Rancorosas, teimam em fertilizar
a pantanosa existência.

Haja forças; mas encontrá-las,
mister difícil?
Só nas acabrunhadas facetas
do asceta que vive mergulhado
na escuridão de afectos.

Varram-se as lâminas pedantes
das profecias negras que ondeiam;
Enxotadas sejam
e reentre o excitante hábito
de saborear as pétalas adocicadas da ternura.

Outra aventura será só misericordiosa
do pleito pela comiseração.
Camisa-de-forças anestesiante
que faz passar os dias
como se longos minutos fossem.

Perder o tempo,
ele já tão fugaz?
Tontice de um louco
que não escuta a poeira louca
apoderada dos seus sentidos.

Tudo ou nada
– sem lugar ao intermédio.
Ou a nau que parece parada;
no rebobinador da existência,
a consciência que andava, sorrateira.

Inércia letal,
divã de um comodista apaziguamento.
Recobra a quentura em ti,
espolia essa inércia
nas prateleiras do perdível.

Saberás então
que um sussurro lânguido
preenche todo o espaço
que vai daqui até à lua.
Ela, vigilante, espera pela demanda.

31.12.05

A neve, a ardósia e os lírios

Os lírios dizem-me tudo.
Evocações escritas a giz
numa ardósia.
Lá fora
a neve semeia-se
esbranquiçando o solo.
Lembro-me:
do negro da ardósia
e do alvo manto de neve.

A ambivalência dos opostos.

Pelo meio
o amarelo dos lírios
estende uma mão
entre os desavindos contrastes.
Que se purificam
através do amarelo dos refrescantes lírios.
A ardósia serve de tábua
onde vertidas são as memórias
da gélida neve repousada ao acaso.

A mesma neve que refugiou os lírios
na invernal hibernação.

17.12.05

Ilusões de óptica

Como se acordasse,
agitado,
na interrupção de um pesadelo.
Temia o túnel exíguo e escuro
por onde só conseguia rastejar
num sufoco claustrofóbico
a parte nenhuma vai dar.

Ver
que na desembocadura do túnel
lá na porta que o cerra
não está uma enxurrada de água
que me empurra na torrente.
Cabeça mergulhada na água borbulhante
pulmões a sorverem água
que tira a respiração.

Ver
que é um pesadelo,
apenas.

Já consigo ver,
como se fosse o periscópio que rompe a água
e traz a ofegante respiração de volta,
só um pesadelo.
Agora vejo o céu azul, ´
que nunca pareceu tão azul,
tão brilhante.

Vejo
os pássaros que voam
na onda da brisa marinha.

Vejo
um par de namorados,
na solidão refugiada do farol,
que se beija longamente.

Vejo
o areal dourado
que recebe os lampejos do sol.

E vejo
Tudo o que os olhos captam
na convocação dos sentidos.

Vejo
excitações perenes que trazem sentido
à vida.

Vejo
com os olhos
sinal que a vista testemunha
uma vida bem presente.

Não me canso de ver,
tudo a toda à volta,
curioso de mim mesmo,
fosse viandante num cosmos
preso nas minhas mãos.

E, enfim,
vejo.
Ou quero apenas
ver aquilo que vejo.

25.11.05

Folhas outonais

O solo é o leito das enrugadas folhas.
Um eco outonal,
o desprendimento das folhas caducas.
Dantes embelezavam árvores
tingiam-nas de um acobreado mágico.
As árvores despedem-se da folhagem inerte,
paradoxal desnudamento para a intempérie invernal.

Ficam os galhos
a coragem de levitar ao vento agreste
de acolher as pesadas gotículas que sedimentam com o frio.
As folhas hibernam
refugiam-se da inclemência dos elementos.
Folhas inanes de coragem
primeiro perdem o verde reluzente
ganham um vermelho que, carcomido,
se vulgariza num castanho fúnebre.

Caem, enfim, na leveza da brisa imperceptível,
ou fustigadas pela ventania
que anuncia a estação severa.
Jorram das árvores com abundância.
Chegadas ao chão,
são calçada para os pés
viscosa matéria quando nelas repousaram
as caídas gotas de chuva.
Até que zelosos lixeiros as recolhem
deixando à mostra um tristinho cenário
– um nada, árvores despidas, o chão friamente vazio,
o vento que sopra com amargura,
o frio pedindo uma bebida quente.

As folhas vieram até ao solo.
Convidam ao refúgio no crepitar da lareira.
E tal como as árvores se escondem das folhas
– ou as folhas fogem das árvores –
os corpos tiritantes de frio exilam-se
na retemperadora chama da lareira.
Um Inverno
clamor ao deserto das ruas.

11.11.05

O que podes dizer (tanatologia da razão)

Podes dizer
que já nem as cores do Outono interessam
as aves ladinas perderam a graça
ou o riso das crianças que entoa a alegria só um rumor
perdido na bruma espessa que mumifica o frio.

Podes até dizer
que o azul do céu perdeu a beleza
as ondas do mar perecem em indistinta monocromia
as vozes inspiradoras gelaram o seu canto.

Num estremecimento apetece-te clamar
que a injustiça é injusta
a escuridão um breu aterrorizador
a insidiosa hipocrisia criminalizada seria.

Mas para além da deriva niilista
algo, poderoso, cativa sentidos.
Misteriosa dimensão
como se fé obscura fosse,
inconfessável, impenetrável
varre negras nuvens de um horizonte que queres
amanhecido em todo o tempo.

Então dás conta da contradição:
prisioneiro do agnosticismo
a esperança que fervilhas sufoca
na mão pesada da razão que se abate.

Achado a meio de uma encruzilhada,
sem saber por onde ir,
vacilas:
ora acertar o caminho por onde as ondas da razão apontam,
ora cegar a ditatorial racionalidade
e partir,
partir rumo ao nada que te espicaça.

És déspota da tua certeza
nos muros pedregosos e escorregadios
que não podes escalar.

8.11.05

Roda dentada

Numa manhã rumorosa
acordaste
da desaparecida penumbra.

Lá fora
o barulho industrial da grande cidade
deixou de martelar a dor de cabeça matinal.

Revivias os lanços dos tempos idos,
revisitação dolente
a que o marasmo te enredava.

Libertação do torpor maquinal
sorvendo um refrescante sumo de toranjas
enquanto fitas o horizonte perdido.

Remexes numa gaveta
sem saber o que buscas;
os dedos tacteiam objectos inanimados.

Da gaveta tiras uma fotografia gasta;
incensas memórias
por ousadia do porvir.

Tempo de mergulhar
pelos nódulos que te atam
à parasitária forma de viver em ti mesmo.

E de procurar a porta da saída,
uma apertada clarabóia que seja
um novo fôlego.

Um novo fôlego
ou a árvore eloquente
que te dá a vereda necessária.

Sabes, com a certeza das coisas férreas,
que espalhas as sementes
do reencontro ao mais alto de ti.

Da harmonia que buscas, sedento,
um esteio de tranquilidade
destino cumprido, enfim.

12.10.05

As asas e o vento

As asas e o vento
desassombradas miragens
viagem em contratempo.
Sangram, as asas
de tanto vento que as traga.
Persistem,
remam na impertinência
da natureza contrariada.
Nem se perturbam
com os pingos de sangue
esvaídos do esforço irrelevante.

O vento nas asas
fosse a favor
e nada seria uma pletora
de contrariedades.

As asas pelo vento
esquadrias de espíritos retorcidos
flúem com a intensidade do vento.
Que se sente, não se vê:
paisagem insolente
tertúlia da homérica tarefa
de encontrar o rumo almejado.

Asas e vento
diálogo de surdos.
Asas que teimam na rota
não pressagiada pelo vento furibundo.

Nem asas, só vento.
O rescaldo de um desigual jogo
braço de ferro que nunca o foi.
Asas,
condenadas à nascença
dobradas nas forças exangues
extintas no vento obstinado.

Resta
o vento;
as asas, pousadas
na recriação das forças
consumidas na batalha feérica
– e inútil? –
contra o vento.

29.9.05

Projectos desencontrados

Descobres
nas trevas
o odor macilento
das coisas escondidas.

Tecendo o emaranhado
de uma teia sedosa
descobres quem és
e mais ainda
– um canto invulgar
remoído na parte esquecida
da existência.

Olhas em redor:
nem o vento que sopra
e te leva o cabelo em desordem;
ou a palidez da luz lunar
tragada por uma tímida
unha de lua que escapa ao negrume;
ou essas nuvens
que viajam,
apressadas,
rumo ao nada;
nem a alvorada que se acerca;
nada
traz o bonançoso ritmo
dos antípodas
de hábitos enraizados.

Querer,
sem poder,
diferir.
Na indiferença da rotina
por entre os caminhos
– tresmalhados –
de uma odisseia ímpar.

Sussurra-te uma voz
de insatisfação.
Varrida da memória que dominas,
ata as mãos ao futuro.
O futuro,
errante roteiro que te hesita,
certeza de um passado
que ousarias renegar
– coragem houvesse
para limpar a cómoda,
instalada,
maneira de viver.

21.9.05

Queria

Queria:
um punhal cravado
tragando o fel que se contorce nas veias;
um doce lábio
pousando na face,
aspergindo a magia de uma ternura incandescente;
uma mão sedosa
navegando nos poros da minha pele
na ciente, poderosa aura de um momento mágico;
um sopro exalando todo o teu eu,
transe interminável,
beco de onde temos saída
– de mão dada.

Queria:
perpetuar o que tem fim;
caminhar por onde andas
na leveza da tua alma;
tecer as teias de uma fantasia sem fim,
leito de uma desgovernada, descompassada
– e, porém, docemente louca –
lava onde cavalga a palavra que nos guia;
e queria,
sempre acesa a centelha
que derrete o gelo teimoso
que vem com a traição do frio
que se apodera.

Sabes?
queria,
muito,
estender a mão do outro lado do mundo
e ter-te ali, mesmo à mão,
como se o mundo fosse um pequeno quarto
onde só nós dois habitamos.

Queria:
desentediar-me das vulgares almas que passam,
olhar-te bem fundo,
demoradamente,
e balbuciar palavras sem sentido,
apenas palavras instantâneas,
frutos de uma torrente imparável.
E não interessa dizer
“não quero que tenha fim”:
pensar num fim com data incerta
tolda o todo belo dos momentos
que deixamos fugir entre os dedos.

Sim, queria
saber que somos imortais almas gémeas
tecendo-se nos seus caminhos pares.
Das profundezas do nada,
para nós exultam os pequenos demónios
de que nos rimos.
Para que no final da estrada sinuosa,
só haja mel,
nozes,
framboesas,
o que quisermos para
cultivar a nossa uníssona sementeira.

E queria,
ainda,
abraçar-te
quando os ossos do corpo
sentem a estranheza da largura
de quem não é abraçado
há tanto tempo.
Abraço extasiado,
prolongado,
feitor da cumplicidade
que soube trazer de volta
o outrora desencontrado ânimo.

Queria:
deixar que o tempo que foge
se emoldurasse no frémito de um instante.
Ou de uma sucessão infindável
de pequenos instantes,
feitos imortalidade,
na voracidade de um sentimento que repousa
sem espumar as cinzas da intranquilidade.

Queria:
um mundo nosso
altivo,
fervente,
uma planura com montanhas ao longe,
para visitar;
nuvens acasteladas, sopradas por um vento
ora frio, ora quente;
árvores de fruto por descerrar,
o mistério das flores a desabotoar
o odor colorido dos frutos nascentes;
e um rio
onde vogam as águas do invernal degelo
aí, onde nos haveríamos de banhar nus.

Queria:
que a teimosia da razão
se intimidasse,
refugiada num canto esconso de mim.
Para poder soletrar a palavra ausente,
soltar as amarras que agrilhoam o calor
que me transcende
ao ver-te.

20.9.05

Dúvida metódica

Sitiado
bem no alto das dúvidas;
no encanto
de as haver.

Em bolandas
de negação em negação
na certeza de que as dúvidas
apimentam a vida.

Tergiversar,
na doce lógica
que empanturra o espírito
dos desafios que se empenham.

Cansar-se-á
da mortificação existencial?
Saberá espaventar fantasmas
que ensombram certezas?

Diluído o suor da exegese
a cicuta é expelida;
revigora-se a sempre jovem cabeça
- a que entroniza juízos espinhosos.

Pudesse esmurrar a teimosia
de duvidar em compasso
com os ponteiros do relógio;
e perderia o encantador fusco que norteia.

Bússola, encandeias caminhos,
quando afinal é deles que foge.
Sempre, sempre
evitar as certezas – o nutriente maior.

Que interessa explicar,
se compensadoras são as interrogações?
Bater as asas para bem longe
da perene, asfixiante convicção.

Labirinto mental
que se tece por entre as esquinas
da vida.
Da complexa desrazão imperadora.

22.8.05

Pós-industrial

A poeira do cimento
revolve-se no indiscreto olhar
do nada.
As convulsões interiores passeiam
a angústia repousante.
Nem a estranheza do silêncio sepulcral;
ou as asas do pássaro ocasional;
chegam para tingir o espasmo
que extenua
paralisa de medo.
Nas cavernas profundas,
longe de tudo resguardados do nada,
trânsfugas do medo contorcem-se
no seu ilusório contentamento.
Simulam-se
novas vidas disfarçadas.
Fogem da poeira mortífera.
Adiam o seu,
inevitável,
sofrido,
ocaso.

23.7.05

Um fado errante

Peito sangrado pelo estrépito das balas.
Não sofre:
a dor sobrepõe-se, altiva,
na maneira de ser estóica.
Reclama de si a bravura
que vem servida numa fantasiosa inocência.
A ingénua covardia de se entregar
às dores de parto do mundo
- uma leitura oblíqua das coisas e dos seres,
como se houvesse nascido para as chagas
de todos os males que nele repousam.

Teimoso
punha-se a jeito para as obscuras, lautas
conspirações dos espíritos malignos.
Condoía-se de si
no desejo de outros penarem por ele,
alma perdida
errante
desamparada
nas desventuras dos males maiores.
Desconhecia
que renegava os outros,
eles,
cansados da dor de si mesmo.
Mas insistia,
uma e mais vezes,
na aclamação da dor que o fustigava.

Vivia
dependente da comiseração alheia.
Tortuosas as veredas calcorreadas,
ignorância de vivências diferentes
- a alegria de celebrar a vida,
roteiro para renegar a taciturna forma
de ver as coisas e os seres.
Aos caídos,
entregue nas mãos de um destino infortunado,
ou palmilhando os pequenos passos
de um fundo abismo
- um abismo cravejado de facas afiadas
que o esventram, já ferido de morte.

Cada alvorada
um sacrifício indolor.
Não:
nem a luz alaranjada no horizonte,
ou o azul celeste que vem pintar o céu,
nem as pessoas que trajam um sorriso esperançoso,
ou a simples brisa que refresca a manhã
- nada, nada retempera a doentia forma de ser.
Entregue nos calabouços da aridez,
por ele mesmo edificados,
um circulo vicioso que embala uma vida
cinzenta
triste
enfadonha
carente.

O oxigénio das causas,
só uma ilusão.
Anestesiante fictício
que o acorrenta à acrimónia de outrora.
Prossegue
inane nas motivações do descaminho.
Entristecido e desconfiado do mundo:
Porque o mundo
(que ele edificou)
nunca
o recompensou com a sorte que
nunca
quis encontrar.

13.7.05

Maré baixa

Um imenso areal molhado,
despojos da água recolhida
na timidez da maré baixa.
Os seixos espalham-se, inertes.
Esperam nova viagem
na cólera das vagas alteradas
aprazadas para a praia mar.
Aqui e ali
restos do oceano vazadouro
de coisas muitas:
um pedaço de pau
uma garrafa desbotada
um brinquedo amputado
milhentas conchas minúsculas
outrora refúgios de crustáceos vivos.

No templo da maré baixa
a calmaria emproa-se.
Não há vento
nem ondas
apenas uma suave maresia
que entra na respiração
e limpa as angústias povoadas.
Na maré baixa
o sinédrio do espírito reanimado
que embolsa a quietude.

3.7.05

Frenéticas andorinhas

Andarilhos, sem parar,
voos que espalmam a vertigem
do espaço que consomem.
Cruzam-se no pontilhado
de voos desordenados.
Numa coreografia caótica,
regressam ao ninho
quando o cansaço beija a noite.
Nidificam no sossego da luz escura
que se apoderou.

Lá fora
os foliões da noite
entretêm-se entre lufadas de álcool
que anestesiam o espírito.
Não perturbam o sossego das andorinhas,
que se preparam para outro dia
de voos que são correrias desalmadas.
Quando a alvorada toma conta do horizonte
despertam para o dia renascido.
Como renascido está o piar
que se solta com o fulgor do dia.
É a vingança sobre os noctívagos
que salgam os vapores do álcool
no sono para a próxima noite destemperada.

Cá fora
as andorinhas fazem-se à vida:
incompreensível, frenética,
com o doce e rápido bater de asas,
um mergulho no abismo
que, de repente,
renova a harmonia do voo rasante.

18.6.05

As mãos

Nas mãos
o cordão umbilical da decência de ser.

Nas mãos
vultos que se eternizam,
sal que perfuma os gestos que somos.

As mãos
não deixam mentir:
pelas mãos
os gestos desnudam a alma.

E as mãos,
nós que apertam outras mãos,
acalorada sapiência da enrugada pele
envelhecida com o uso dos dias.

Sem as mãos,
decepadas criaturas
na diluição das marcas que identificam.

São as mãos
olhos de quem somos;
o mapa engelhado que descobre
as linhas que se tecem, por magia,
numa cartografia irrepetível.

As mãos,
oráculos.

2.6.05

Lusco-fusco

O alpendre acolhe o fim da tarde.
No ar o odor dos frutos
esvoaça em compita com pássaros
endiabrados.

Hora do espírito beber as águas
da tranquilidade.
Aquela hora, do torpor à preguiça,
tonifica.

Vai a luz escasseando.
O sol mirra detrás da copa das árvores.
Cresce a empatia com a noite
desconhecida.

Bucólica paisagem
que se eterniza no o tempo.
Na bondade das luzes que tingem o céu,
avermelhadas.

Solta-se um suspiro profundo.
Traga os cheiros e as cores
que saltam na surda gritaria
aleatória.

O caos ordenado
sentir o indizível
como dizer o insensível:
tresmalham-se os minutos
numa viagem ímpar ao mais recôndito
da alma.

1.6.05

Na sombra do eu desconhecido

Não somos mais senhores de nós.
Na aventura do que pensamos ser já conhecido
a surpresa
- do outro lado do espelho
uma imagem distorcida do que sempre acreditámos
ser o nosso eu.
Quase nunca admitimos
o que retrata o espelho.
A culpa sempre do espelho
invariável teimosia
de manter o que nos habituámos a ser.
Decerto o espelho terá anomalia;
embaciado, esconde a verdadeira imagem
do que julgamos ser.
E lá volta, a teimosia,
a toldar a vista numa esparsa miopia.
Os vapores diante da vista emudecem os sentidos,
esquadrinham as teias mentais que desfocam
a essência do outro que nos habita.
É como se andássemos todo o tempo enganados
no equívoco que semeamos sem dar conta
- ou possuídos por uma força indomável,
das entranhas,
comandada pelo espírito apoderado
que se recusa a deixar-nos ser algo diferente
na sua espontaneidade.
Enganados,
vista turvada pelo espartilho
do atilado ser que se entranha no seu conformismo.
É como se existissem vidas paralelas
que se separam pelo fio espesso
que impede de assumir o eu reprimido.
De tanto tempo amarrados ao estigma
nem damos conta que um caminho paralelo
anda ao nosso lado.
A vista,
ocupada em mirar a linha do horizonte
que se esboça.
A vista
ignora uma vida subterrânea que se cultiva,
sabe-se lá,
diferente, genuína, intensa, preenchida.
A fuligem acumulada reprime
a vontade de descobrir o desconhecido que somos.
Mas quando a perseverança vinga,
e saboreamos as pisadas do caminho paralelo,
preparados para a revelação do outro eu
que habita dentro de nós?
Habilitados a conviver com a alteridade?
Não será o temor do abismo
a mola para a dúvida na cristalina imagem do espelho,
encanando de defeitos o espelho maldito
que povoa tantas dúvidas?
Irrompe uma angústia assustadora:
sabemos que podemos ser algo de diferente
e o medo do precipício
trava o desejo de provar a pessoa diferente que podemos ser.
Aquietam-se os espíritos:
convencidos que devem preservar
a mediocridade que os invade,
melhor do que descobrir uma diabólica personagem
aprisionada no gume de um engenho manietado.

26.5.05

Algum sentido (no umbral da amargura)

Ao que vens?
Nas tonitruantes voltas da vida
a descoberta do degredo.
Às voltas com os desatinos dos dias
as lamúrias dos desejos adiados.
Nascemos
fadados ao obituário.
Percorridos os dias
à espera que a espada desça a lâmina inclemente,
ruminada a modorra dos ponteiros do relógio
na sua vertigem ensurdecedora.
Sem olhar ao belo da vida
sabendo que algum dia
a beleza se consome no negrume da ceifa final.

Ao que vens?
Andar por esta vida,
vegetando num torpor sem sentido?
Haverá laivo de justiça divina
no sofrimento que destapa a almofada da dor?
No desnorte dos trilhos esboçados
restará seguir, como beduíno ordeiro,
na peugada de um horizonte incerto?
Ao sabor do vento
empurrado como frágil folha
que ondeia na incerteza do rumo ventado.

Esperando,
esperando que chegue a hora
de acertar as contas
com os passos perdidos na poeira do tempo
com os projectos adiados
com as frustrações da alma.
Pedindo
escusa da dor,
ao saber a dor o legado iníquo
dos deuses sem rosto.

Ao nascer,
traçado um destino que tece a formatura da vida.
Demore o tempo que demorar
apenas um sentido único,
sem desvios
- ou com desvios que semeiam a ilusão de nos ludibriarmos –
resguardando a seiva da vida que se esvairá
no suspiro final.
É a palavra que amedronta,
impronunciável,
o azedume que afugenta a alegria interior.
Na recusa de um destino irrecusável
o agreste sabor ao fel
que acorrenta à amargura definhante.

Ao que vens?
Vale a pena combater?
É merecedor o tempo do engano de nós mesmos?
Se tudo se consome na avidez do perpetuo momento
que lança a âncora para a definitividade
do que somos…
Essa,
a palavra impronunciável,
séquito de todos os medos
exército não derrotável
tingido das cores mais pútridas.

22.5.05

Instante

Apenas um instante
para tudo recomeçar.
Apenas um instante
saber tudo perder.
E apenas num instante
se glosa a tempera da vida.
Os instantes,
efémeros, imortalizados, prolongados,
a inspiração dos destinos jogados
na roleta vadia.

Apenas um instante,
um instante só,
para tudo mudar.
Basta o instante
encontrar-se na linha certa
ou falhar o instante
e borda fora tragar as águas revoltas.

11.5.05

Pela alvorada, o cansaço dos dias que se repetem

O dia irrompeu
trouxe a energia volátil que anda ao acaso,
dobrada pelos ponteiros do relógio.
Lá fora
as formigas humanas debatem-se
na atarefada rotina dos dias que se renovam.
Como se fugissem de casa
afogueados pelo tempo que escasseia
aturdidos pelo atraso instalado mal o dia começa.
Atropelam-se rua fora:
crianças levadas ao colo
outras palmilhando o caminho de mão dada
ainda sonâmbulas do sono despertado
por pais sufocados pela azáfama.
Curvadas pelas mochilas recheadas de pesados tijolos
- dizem-lhes, carregas às costas a sabedoria aos pedaços.
O asfalto abrasivo recolhe as rodas dos carros
na correria de quem tem pressa de chegar algures.
Silvos frenéticos
insultos esporádicos
a ensandecida escalada que devora a distância
que os separa das masmorras materiais.
Uns atrás dos outros
maquinalmente
ao ganha-pão que alimenta,
sacia vícios,
mostra ostentações reprimidas.
As caras ainda estremunhadas demoram a recompor-se
do sono pouco dormido.
As pessoas cruzam-se
sem darem conta que se entrelaçam em linhas descontínuas.
Fazem-se autómatos que seguem em fila
rebanho mal amanhado num torpor pelo vórtice
de um desconhecido destino que julgam conhecer
como o chão que pisam dias a fio.
Os trabalhadores da construção civil já laboram,
subindo o sol no firmamento;
testemunham passos acelerados dos apessoados.
Já envergam o suor do dia quente que se anuncia.
Suor misturado com a sujidade que enegrece a pele rugosa
nas dobras vincadas que entoam a aspereza física.
Testemunham, alheados de quem passa.
Como alheados andam os que, lá em baixo,
ignoram os anónimos empoeirados que se equilibram nos andaimes.
Respiram o mesmo ar,
o mesmo ar fétido,
um cocktail
de gases expelidos pelos automóveis
do ar abafado vindo do sul
das frustrações dilaceradas pelos caminhantes erráticos.
Na indiscrição do próximo
os apressados passeantes distraem-se
no tempo que passa, célere;
demoram-se no relógio que não se deixa atraiçoar.
Mais tarde ou mais cedo
a turba chega ao destino.
Sem lugar ao repouso
que outras tarefas, urgentes, esperam
- como tudo é urgente na lufa-lufa diária
de quem se aprisiona na hedionda rotina.
A rotina que faz de cada dia
uma indiferenciada imagem
uma nebulosa penumbra
obnubilada sombra
das aspirações que somos
e deixamos escapar no lento-demorado correr
dos dias que não se cansam de repetir.

Nuvens de Juno

Na densidade das nuvens acasteladas
o sonho do impossível.
Aprisionadas no ar gélido
as faces ressequidas deliciam-se
com os castelos que se amontoam.
São belos
levitam com a leveza dócil
dos rebanhos tresmalhados.

5.5.05

Despojos da primavera

Cinzas de um Outono tardio
destapam a lucidez dos elementos.
Voltam
com a luz renovada.
Campos que se extasiam na embriaguez do sol.
Repetitivo
o mesmo ciclo.
E contudo os sentidos ainda inebriados
com os odores que dançam no ar
as cores que semeiam a paisagem
a vida libertada da hibernação.
Almas revigoradas
testemunham a cadência primaveril.
Novo fôlego que desperta
a vida escondida pela letargia invernal.
Só à espera
que o estio se consuma no seu cansaço.
Só à espera
que a indolência dos elementos
se recolha na saudade de outras estações.
No débito da memória
retido fica o sabor ácido do tempo
que se repete.
Fuga da rotineira passada
que tomou conta dos bancos do jardim,
sabendo que depois hão-de regressar os ventos
que outrora já passaram.
No desassossego que os ventos de agora
sejam varridos por nuvens sopradas
de outros meridianos.

1.5.05

Dia da mãe

No mistério da gestação nasce um amor intemporal.
No embalo no teu regaço os nove meses que partilhamos:
o teu nutrir, o teu oxigénio, um amor maior
- a vida que se forma.
Hospedeiros do teu corpo aprendemos a sentir o amor
que inspiras numa torrente infinita.

Nascemos:
és a água onde saciamos a busca de carinho.
Nos pequenos gestos, pequenos afagos
que ensinam a densidade de um laço
- já não umbilical
agora revelado na magia do olhar
e da ternura que traz a recompensa do dia.

Crescemos:
sabendo que em ti encontramos lugar onde lançar âncora.
És porto de abrigo que acolhe as nossas ansiedades
com uma palavra que alenta.
Como se fosses um íman que nos atrai,
ao sabermos que há sempre o conforto maior
que nos recolhe na pequenez do nosso ser.

Não é a maternidade condição vã:
fonte da vida, mãe senhora da imortalidade;
pela vida que geras
pelo nutriente que levas ao filho no ventre
pelo carinho sem medida numa vida inteira
- mãe, milagre da vida, oráculo intemporal
dos vestígios que não se apagam com a bruma do tempo.

Há poeira que se acumula nos livros.
Lá dentro, emolduradas, as imagens não se eclipsam:
todos os beijos
os doces minutos de colo
os murmúrios que soam na véspera do sono
embalados pelo calor dos teus braços
a ternura com o cheiro maternal
que nenhuma flor consegue imitar.

Em ti, um santuário
onde expiamos a fragilidade que somos.
Num regresso ao passado
quando em ti havia o nosso sustento:
traços umbilicais que se eternizam.
Por magia de seres mãe..

28.4.05

Minho no seu pior

Os dentes do burro são a foice da tenra erva
que cobre o pasto.
A populaça zombe do burro
não sabendo que não é o burro
que pede meças à inteligência.

No folclore garrido
tijolos de ouro vergam o dorso
das mulheres que calcam chancas dançantes.
Gritam, na voz estridente;
são o esteio do que não é a estética.

Às voltas com sinais de pertença:
verde Minho, verde vinho
bebedeiras tingem de vermelho
as faces esponjosas de varonis seres
- de um vermelho que desdiz o Minho verde.

Arrotem, brutamontes,
império à flatulência
que adora o troar do foguetório risível.
Liberta-te Minho, traz o campesinato
para as praças
e mostra como o povo se diverte.

Aos outros:
escondam-se da gargalhada colectiva da boçalidade.

27.4.05

Pudesse o desejo vingar

Outro dia
e jamais o que antes aconteceu
dobra a esquina invisível

Decepções gélidas
apenas rumores que esventram
as pálidas cores da vida

Agora, como ontem,
suores retidos desprendem-se
tutelam as bandeiras que ficaram por hastear

Oxalá
os remorsos tivessem uma janela sem vidros
um panorama espraiado para dentro

Oxalá
os silvos das aves fossem cantorias de embalar
e mostruário do verde refulgente dos vales.

Daqueles vales
que se adivinham para além da montanha
Escondida

21.4.05

As pétalas emancipadas

Desfalecem as pétalas de uma flor moribunda.
Não tarda, tombam com a leveza do nada
que as consumiu.
Nem assim a chuva de pétalas
(que esvoaça numa dança terna)
perde a lucidez das coisas belas.
Tocam no chão;
e fazem-se férteis no solo que as recebe.
Não perderam o branco vivo que as reveste.
Ainda no chão tingem-no com uma capa
que cintila na perfulgência dos raios do sol.
À espera do definhamento
no acobrear que traz a despedida.


20.4.05

O que dirás

Dirás que uma nova espuma
veio com a ternura caiada a branco.

Dirás que o enternecimento
foi a fogueira que te aprisionou os sentidos.

Dirás que o voo rasante das aves
traz à memória a intensidade dos corpos.

E dirás que amanhã
te cumpres,plena, no tanto que te quis ofertar.

19.4.05

O espalhafato dos circenses

Odes ao ridículo
e os seus fautores acham-se nos píncaros.
Não é coisa que a vista alcance.
Tombam no ridículo
tanto se expõem às luzes feéricas
aos néons abrilhantados.
Trepam uns nos outros
enquanto desfilam a covardia
de se dizerem amigos.

Cambalhotam.
Troçam
e depois vem a penúria
dos que desferem a facada fatal.
São a fatiota excelsa
palavras arquitectadas
(ou, diria, engenhadas)
e bazófia militante.
Esquadrinham poses que desbravam escola.

Exemplos de que muitos querem ser
e a negação da imagem que exalam.
Aventuram-se em tarefas espartanas
das que vão além das parcas capacidades suas.
Arrastam-se
num penoso calvário
aplaudido por uma trupe de medíocres
- como eles, por aqueles venerada.

Ah! pessoas bonitas
das nossas bandas,
fátuo circo de vaidades ocas
chapéus engalanados com o mundo ilusório
que vendem a uma horda de seguidores,
tão sofríveis como os idolatrados.
Pobre circo, o que nos cerca.

Haja força para cegar:
só nos instantes das luzes da ribalta
que se espraiam nas altezas que temos.
É a míngua de uma realeza decente,
uma realeza que faz sonhos idílicos
dos consumidores de papel cor-de-rosa.
Um prémio ao divino espalhafato da inconsequência:
solta-se o troféu
e, nas andanças pelo ar,
aprendizes de ilusões vácuas debatem-se
em saltinhos cândidos para ficar com o prémio.

É a glória do momento para o escolhido.
Tantos os olhos que repousam na sua tez
passada a pente fino pelos ditadores da cosmética.
Milhões de olhos não desgastam a pele dourada e desenrugada.
Encantam o ego do artista de variedades sociais
para delícia dos seguidores
incansáveis
insaciáveis do glamour
imperturbáveis no aplauso contínuo.

As palmas das mãos também não se gastam
na populaça arruaceira que anseia pelo estrelato.
Que hoje está mais democrático!
O ruído das palmas não cessa
perfurando os tímpanos
quase até ao limiar da loucura
de quem não desviar a atenção.

Somos isto:
um tanto que promete tudo
que se resume a um tristonho nada
deserto tão cheio de fealdade
refém da inanidade.