15.2.16

Mansão

Às traves da casa
de madeira velha e estacada
pede conselho de anciã sapiência.
Mete as mãos na fuligem
andam à procura das fundações
desdizendo os agoiros maus
que lhe deitam.
Não é fácil a empreitada:
nem dos relógios das igrejas
soam compassos que aligeiram os pesares.
Apesar dos contratempos prometidos
as garças grasnam gargalhadas
e a proveta dos sentidos ensaia um sorriso.
Não são malditas as profecias
e ainda que fossem
mereciam solícito degredo.
Pois as mãos untadas pela fuligem
e o aconchego das traves centrípetas
segredam o lugar da água torrencial,
onde os desamparos se dissolvem
a melancolia se esvai na neve fresca
e o vento desenfreado
conta os segredos que despojam

o tempo do tempo.

12.2.16

Desarmado

Arrumei as lanças afiadas
numa cova funda junto ao rio.
Deitei uns alqueires de terra húmida
e calquei-a em jeito de certificação.
Agora
devem estar enferrujadas
e essa ferrugem condiz
com as manhãs claras que,
desde então,
se tornaram imperatrizes.
Agora
tenho armas nas mãos
as mãos que moldam os rostos
com o perfume do afeto.
Os olhos são ogivas
que irradiam bondade.
Já não empenho vernáculo.
Não quero saber
dos magnatas da estultícia
dos falsos querubins que fraquejam
em sórdidas profecias
dos cultores da ignomínia
dos ilustres mitómanos
ilusionistas de um universo só deles.
Nada disso importa.
Só importam as palavras de ouro
os abraços apertados
o laço colorido
que faz o amplexo dos amantes
o leite que desazedou.
O desarmamento 
abonou a indiferença.
É a melhor prova de indulgência
e a alma
(já desabituada da angústia)
agradece em penhor.

11.2.16

Bússola

O peito encharcado
do vinho que deitamos em nós.
As mãos treinadas
no pulsar do teu corpo.
Os olhos fundidos
em êxtase matinal.
Os percursos abonados
pela batuta eterna.
O sol poente
sem deixar vestígios atrás.
Chegamos à demanda
enquanto sopramos pétalas de rosas.
Divagamos
cantamos
dançamos
(sim, dançamos, se preciso for)
contemplamos.
Ajuramentamos o fiel do tempo
à medida do nosso olhar.
Sabemos de cor
a cor dos poros das peles nossas
a música das nossas veias.
Sabemos como subir
aos bosques frondosos só nossos
como adestrar os ramos orvalhados
e sentir o palpitar incorporado num só.
Às noites por serem noite
aos dias por serem sua antítese;
quando quisermos que a noite seja
e quando fizermos os esteios do dia.

10.2.16

Pontuação náutica

A bombordo
as pedras puídas
encarceram a noite.
Por mais voltas que dê
os escombros do corpo
desmaiam na música em murmúrios.
O mar soado na funda memória
desaprova as incontinências
que ocupam o sono.
A estibordo
rostos grandes e alvos
apaziguam o mar rombo.
Deslaçam as planícies feitas
no mar aveludado
enquanto tiros de pólvora seca
escorraçam abutres esfaimados.
Já sabia
que devia ter escolhido estibordo.

9.2.16

Colóquio

Tirando
as cordas vivas
o mar rasante
os nenúfares amarelos
as nuvens caiadas no céu
o cão vadio que mendiga mimos
os botões de punho aristocratas
as resmas de papel que armazenam nada
os beijos arrebatados
as facas quietas
as canetas à espera
a pele sentada
e o gelo quente
nada se revolve na impureza das cicatrizes.
Nada agarra
o vento quente
o mestre experiente
a bola furada
a traineira ousada
a neve tardia
a bala retida
a palavra acertada
a raiz profunda da alquimia.
E eu sou
juiz de todas as medidas
e a mim chamo
as fazendas que servem de agasalho.

Terra molhada

A terra molhada
acalma.
Transpira pelos poros
todos os poros.
Ou serão lágrimas
que fogem da escura terra
por quererem beber
na luz desmaiada do dia chuvoso.
A terra molhada
acama
os tremores que sussurram
à boca da noite.
Feitos amálgama
futuro fermento dos tempos ávidos.
Sem a terra molhada
não há suor
não há lágrimas
não há tremores
nem sussurros:
não há a feição nobre
aprisionada no lado oculto
do suor
das lágrimas
dos tremores
e dos sussurros.

8.2.16

A cadeira

A cadeira de três pernas
aguenta-se,
impecável,
sem tergiversar.
Exemplo de um equilíbrio magistral
não vacila com o vento
nem hesita quando sopram terramotos.
A cadeira está manca
mas não manca.
Não precisa de muleta
e recusou,
até,
ajuda diligente de um carpinteiro.
Teimosamente
mantém-se escorada
em cima das suas três pernas.
Não se importuna com intempéries
ou com os alvoroços que chegam
amiúde.
Um dia perguntaram-lhe
onde tinha perdido a perna (em falta).
E ela,
impassível (como sempre),
perguntou ao perguntante
se tinha certeza do que a pergunta continha.
Disse,
em bom idioma
para ser percebida aos ventos todos,
que tinha as pernas todas
e bem aparafusadas.

5.2.16

O novo inverno

Dá-me o sol
a centelha que derrota a penumbra.
E sabendo da luz que retalha
assobio ao alto
para ver se a invernia se eclipsa.
Lá fora
tímidas flores vicejam nos arbustos
não sei
se em sinal de primavera apressada
ou porque também querem beber do sol.
Na passagem de um tempo configurado,
à memória vêm fragmentos ao acaso.
Os mais velhos dizem deste inverno
(contristados, mas às avessas)
que se enamorou da primavera,
de tão soalheiro e ameno.
Talvez estejam errados,
os velhos:
as rosáceas vítreas
os campos floridos
as pessoas que se entristecem
com os rigores do inverno
– todos protestam a nostalgia dos velhos.
Na luz da mudança
pontos cerzidos na andadura do tempo.

4.2.16

Da arte malsã

Os bichos
ao menos não tresleem.
Não se incomodam
com políticas coisas
que adulteram o autêntico.
Não falseiam nem mentem.
Não navegam em desleais águas.
O mesmo
mutatis mutandis
vale para as pedras amontoadas nas serranias
as árvores que esperam o tempo
os paus perdidos
o ar que povoa o ar
os demais elementos da natureza
as telhas de uma casa
todo o metal fundente nas siderurgias.

Já certa gente,
que por gente ser
se apruma antropocêntrica,
bolça metal fundido em oxidados sentidos
abriga telhas de vidro no compasso das lições
torce o braço à natureza
polui o ar que lhe é dado
e dos paus
o mais que se afigura
é ser seu dorso merecedor de açoites.
Certa gente
tão sequiosa do centrípeto trono
que suga as árvores por dentro
dissolve as pedras à volta
mata as águas onde se banha.
Mente e falseia
com os dentes todos
que divindades compassivas ainda lhe conservam.
No dicionário que habita
lobriga na falsidade
na ludibriosa hermenêutica
ou não fosse gente assim política personagem
habituada a desdizer sem corar
nem que lhe caiam os dentes que ainda tem.

Não admira
que gente assim
não goste de animais.

3.2.16

Marco geodésico

A boca prova as nozes noturnas
devolve em dobro os prazeres possíveis.
Os animais contorcem-se
mas não é de dor,
é do amplexo de ternura
do contágio dos suores benignos
das ramagens das árvores perfumadas
em que eles se aninham.
Vão felizes,
os animais,
senhores da sua ciência.
Vejo tudo isto
com os olhos sequiosos
com o dorso curvado sobre o terraço
que é sobranceiro ao mundo.
As mãos sentem o calor da terra
sobem à fronte
limpam as gotas de suor que lacrimejam,
selando o cansaço.
Não há queixumes
não há pesares
pelos idos que se reverberam
nem um pulsar tóxico a derrotar a pele;
há,
apenas,
o sentimento maior
ondas que se agigantam
o desenho belo das silhuetas
o ciciar que adormece
dedos entrelaçados
que emprestam febre aos corpos.
Visto de fora
o quadro sublime
espraia-se no estirador
onde se afinam as palavras:
apetece beber na terra
beber nos sortilégios ditados pelas palavras
domar o cavalo furioso que seja impedimento
travar os alvoroços que esvoejem.
Aportamos
onde a madrugada alisa os suores frios
à espera que a alvorada solte seu freio
e depois tudo seja
claridade a desobstruir estorvos.
Até que nas mãos repouse
o ouro puro
o esteio calculado
os olhos desalfandegados.
E o amor inteiro.

2.2.16

Bons rapazes

Intrépidos
os rapazes fugiam do sossego.
Desassossegavam as campainhas dos vizinhos
e deitavam-se a fugir, em louco corre-corre.
Amarravam os cornos das vacas ao cercado
gastando gargalhadas diante
do gado desembestado.
Bebiam vinho por copos de leite
pagavam à cidade com altercações
quando a cidade perseguia a noite tranquila.
As fisgas cuspiam pedras afiadas.
Do alto do prédio
disparavam sacos de água
zelosamente ao lado de quem passasse.
Passavam o tempo a arranjar partidas
nem que fosse para matar o tempo
(que o tempo desocupado era fértil).
Não era por mal
se acaso causassem dano
– e, assim como assim,
o dano não era um rasgão doloroso
na carne das vítimas.
Um dia,
já espigadotes,
caíram no engodo de umas raparigas.
Achavam que iam ter deleites,
não desconfiaram das facilidades.
Acharam-se prisioneiros
numa fábrica sem serventia
reféns de uma armadilha.
Não tinham saída
e a noite teve de ser ao relento
assaltados por um frio invernal.
Dois dias depois
a polícia veio em resgate.
Famintos e cheios de frio,
as mãos trémulas nem conseguindo segurar
os mantimentos de emergência,
quase juravam que não voltariam
a ser estarolas.
Mas apenas quase foi a jura:
depressa o sangue ferveu nas veias
e as promessas da aflição
nem subiram à boca de cena.
Estava-lhes no sangue
serem doidivanas sem freio
madraços sem remédio
rasgar roupas puídas nas aventuras demenciais
insultar agentes da autoridade
pregar sustos a senhores bem-apessoados
e rir,
rir tudo o que vinha da barriga
sem travarem a função.
Suspeita-se
que eram tutores da felicidade
inteira.
Deles não há notícia
tempo bastante depois
para serem adultos e bem-postos
(ou adultos e em perdição).
Do seu paradeiro não há menção
nem os vizinhos sabem onde se dissolveram.
Os bons rapazes
em segredo
à distância e sem se verem
cultivam ainda
a frenética passagem pela juventude.
E conservam comendas que o atestam.
Call me
in the storm.
Calm me
in the storm.

1.2.16

Estrelas cadentes

Estrelas cadentes
não se aguentam no parapeito da janela.
Exibem lustro
muito lustro
sem deixarem de ser pólvora seca.
Estrelas que cadentes se ensaiam
em simulando sua própria incandescência
fadadas estão ao sepulcro sem remédio.
Por cadente condição,
estrelas não chegam a ser.
A não ser
no pequeno quarto escuro
onde lobrigam,
pequenas luzes fundidas
que são coorte de si mesmas.
Decadentes:
é o que são.