31.10.18

Ecossistema

Estamos à espera
que seja a chuva
o ato dissolvente da verbena,
a chave enferrujada
que desarruma o vertical critério?

Partimos.

Pelo caminho
agilizamos a conversa.
“Não sei do método capaz
sem a ajuda dos compêndios
sem estar sitiado
no remoto pensamento alheio”,
protestas.

“É o leito atapetado por pedras,
a contingência do pensamento.
Não dês importância:
verás em sonhos
a ousadia que não reconheces
ao teu pensar.
Deixar-se-á de colocar
o problema da originalidade”,
respondes
com alguma condescendência.

“Duvido.
Duvido muito.
É a minha via sacrificial.
Gostava de duvidar menos.
Gostava de não duvidar”,
acrescentas,
uma lágrima assomando ao canto do olho.

“Dir-te-ia
ser um erro
se não me convencesse
que não há certezas válidas.
(Talvez,
talvez a única certeza que admito.)
Toma como medida
as linhas em que a pele se entretece.
Enverga o epistolar sargaço
onde se desenovelam as dúvidas,
umas atrás das outras.
Sossega:
as dúvidas são a tua riqueza.
As certezas,
o teu penhor,
hipoteca irremediável”,
contrapões,
enquanto faz perder o olhar
no horizonte baço 
que é a parede por diante.

#784

O céu desigual.
Outra vez
as nuvens desimpedidas.

#783

Abracemos a lua inteira,
que se oferece, 
generosa,
panegírico da vida que é colheita incessante.

30.10.18

Contra comendas

Desenho
só com sílabas não forçadas
a enseada
onde tenho refúgio. 
Esconjuro
o diadema furtado ao vitral
de onde se tinha a luz por nome. 
Continuo imóvel
convencido que o tempo também;
a resenha de tudo
desfaz-se num nada. 
Corteja-se a paciência assinalável
o bodo sem medo das consequências
e, estimável função,
a curadoria de todas as compreensões. 
Não é pretensioso:
os troféus alçados
são uma vírgula a destempo
o modo sem medo do verbo
fantasia em vez de lugar. 
Se fartasse a bonomia
diriam
ser um esteta com direito a medalha
(não fosse apoucar o regime das comendas).

#782

Que não se exprobre o ópio dos outros
se a ninguém é dado atestar
não ter ópio próprio.

29.10.18

Carta de recomendação

Rasguei o desbotado
            convés enferrujado,
                        pesaroso.

Dentro da enseada
            convoquei anjos
                        destemidos.

Sem chuva diletante
            abracei luas
                        fecundas.

Oxalá sereias agitadas
            abrissem alçapões
                        tumulares.

Daria do húmus
            em ferida
                        proverbial.

A sempre possível
            arte presumida,
                        aquartelada.

Desmatado o medo,
            conservo rigor
                        matinal.

Servo a meio
            da profecia
                        irrisória.

Sirvo em latitudes
            desenhando fronteiras
                        implodidas.

Desobedeço ao oligarca
            que bolça
                        despautérios.

A vassoura gasta
            tem serventia
                        futura.

Do amanhã contumaz
            arrefecido oráculo
                        infecundo.

Arrisco os dados
            demencial empreitada,
                        vertigem.

Abrigo a meia-noite
            em agasalho
                        promitente.

Dou de mim
       a moeda
                        ajuramentada.

#781

Oh,
desjuízo não forasteiro
que em meu sangue tens viveiro.

28.10.18

Lei do mais forte

O homem veste a máscara.
Toma suas as lamas imundas
no ultraje máximo
de si mesmo. 
O destrate não é ufano. 
A humilhação
é um espelho que se refrata 
no estilhaçado nevoeiro
em que se açoita. 
Os ossos liquefeitos
são do predador
imersa no obnóxio pesar de si mesmo. 
O tabuleiro
onde se movem as peças
(como se, meras, assim fossem),
num plano invertido:
os poderosos
armados com os obuses da força,
abutres das carcaças próprias;
os torturados,
despidos de vida
intérpretes maiores da lição da dignidade. 
Na sobra de uma dúvida
fica por alcançar
se a demência se esconde numa máscara
ou se é demência em estado puro
a maldade acintosa em requintes perfídia. 

(Museu dos Terrores, Berlim)

27.10.18

Sermão

Prolegómeno:
o suor expatriado
pelas rugas cansadas
verter-se sobre o pano flácido
e os cantos das janelas
descerram a paisagem que se desenha,
no ágil conforto do silêncio devolvido.
Não parece que seja critério,
o silêncio.
Amanhecem as tulipas pujantes
os bolsos abarrotando de versos estimados
entre ensaios e ensaios
sucessivos ensaios
que não desgastam o tempo.
A armadura cresce
com o pólen vívido.
Sabiam-se escorados os braços fluentes
eram o estibordo das marés apátridas
e não sabíamos da costura das palavras
não sabíamos
da feitoria que esbracejava as juras aladas.
Todavia
as mãos não desistiam.
Elas liam nos olhos das paredes
o palco escorreito
os druidas acalmando tempestades.
Já não era o prolegómeno.
Avançada a rede
éramos intrusos sem remédio.
Corremos no avesso da noite;
corremos, incansáveis,
no dorso de mitos hasteados
em vultos sem fartura:
domámos os medos enfim com freio
e a beleza atribuída,
em vários penhores resgatados,
cuidou da fortuna dos sonos.
Na sobra das marés
os pés nus aconchegavam
os seixos deixados para trás.
Na dobra das marés
jogavam-se os temerários pescadores
contra a volúpia das ondas em barda.
Logo seria possível a prova dos nove:
se os pescadores viessem ao cais
provada seria a generosidade como dom.
Ao menos para os pescadores
as portas insubmissas das divindades
ficariam povoadas.
Muitos outros há
privados do farol da metafísica.

26.10.18

#780

Puxar o filme atrás,
nem que houvesse marcha-atrás
como nos automóveis madraços.

#779

Desde o cedo volátil
passando pelo medo sensível
um levantamento de sonhos plúmbeos.

25.10.18

Bandeiras esconjuradas

O que falam as bandeiras
conservam em segredo
os mastros.

O resto
não importa.

As esfinges simbólicas
idolatradas deusas com pés de barro
a história grávida de proezas
o idioma messiânico
a gutural presença dos vultos
(como se não tivessem sepultura)
a desconstrução do porvir
justificada pela inércia do passado
as mitologias sem preço
(por não terem valor)
o adiamento das luas prometidas.

Hasteadas em seus mastros
as bandeiras falam
um silêncio tangível.
E nem o vento que as esbraceja
contém idioma que se preze.

#778

A maré ancestral
o sal cristalizado
na fonte etérea.

24.10.18

#777

Compêndio do narcísico:
“tive uma epifania:
vi-me ao espelho.”

O eremita

Arremete o espigão contra o escorpião
o maneta destemido
convolado sobre o dorso estreito da manhã.
O caudal do rio inunda o arroio
já não enxuto como no estio
uma torrente de destroços avulsos
tomando conta da correnteza.
Ao alto do promontório
o eremita
refugiado das dores do mundo
observa na pacatez do apoderado do mundo
a posição de quem o domina
por se ter elevado à cumeada.
Podia ensaiar uns versos alusivos
mas estava sem papel
(e a memória já não é como outrora).
Convence-se
que o miradouro
é a janela-sortilégio que o apodera.
Considera muito o poder.
Convence-se
que os desvalidos
os que sofrem com a inundação
e estão à mercê do caudal sôfrego
são os pajens do mundo.
O eremita sente-se no papel do escorpião.
E não se percebe porquê:
o poder é atributo inconsequente 
para um tresmalho subproduto
alguém que se refugia dos outros
(pois o poder exerce-se
e é sobre os demais).
Desafiado pelo seu alter ego
(a consciência funda)
o eremita foi apanhado na curva libidinosa
no ardil do pensamento pretensioso
no foguetório inverosímil 
do poder que se ostenta.
Não lhe era dado saber
como podia descalçar a bota.
Era mais cauteloso 
não empreender a função:
a enxurrada podia trepar a montanha
e precisava das botas
para acautelar, secos, os pés juntos.

#776

De um salto só
do precipício, o avesso,
até ao cais arreigado.

23.10.18

Antítese

Lição número um.
Esquecida.
Talvez não haja
lição número dois.
Que três sejam os esteios
onde as sereias desmatam
as marés.
Regresso à véspera,
ao zero antes do um.
Desnato as sombras altivas
chego ao planalto 
onde medram as interrogações
o conforto das interrogações
sem o mórbido sopesar das certezas. 
Se houvesse lições
certezas haveria
a perfurar o teto obstinado
onde convivem os cátedras. 
Não havia lugar
a lições
como não havia lugar
a certezas 
– a poluição transcendental
o poroso infortúnio
dos sedentos de conhecimento. 
Não sejam encomendadas lições
ou o logro da coerência
será ardil sem fuga.

#775

Desde o epicentro
sou o magma
combustível em ebulição.
(Redundância, ou levitação?)

22.10.18

Hino

Traz 
o suor nas lágrimas
nas lágrimas retidas
sem serventia.
Pois no peito murado
sobressaem as grilhetas avençadas
os murros sem estômago
as trevas sem sombra
no opúsculo da fartura,
o miradouro.
Traz
um pregão do avesso
no avesso das palavras retenidas
no que seria 
a heresia de um guru do marketing,
o pagão.
Traz-te
quimera de ti mesmo
profuso aluvião em leito suave
propositada função aritmética
na mímica lacustre encimando os dedos
e na véspera de um dia qualquer
justaposição de todas as coisa contrárias.
Traz ao caudal
o fortuito
o banal
o beijo untado a mel
as unhas que desenham nas costas
o lucro da alma sem peias.

#774

O reboliço superlativo
o realejo sumarento
o restolho supranumerário.

21.10.18

#773

O medo de não existir
cavalga nos freios
da desmemória.

Sonoplastia

Alguma coisa não acontece
e o perdão mastigado
perdura no dia,
que perece,
efémero.

Diz 
o verbo compressor,
sem medo da matilha diuturna.
Diz
sem a coragem epistolar
a rasura no vocabulário
a ponte abraçada ao eflúvio.

Há de ser altura de ser
depois de desencomendado 
o retrógrado respirar.

A fotografia sobrante
é tudo.

20.10.18

#772

Provocação.
Por vocação.

19.10.18

Sabático

Forasteiro imperfeito
perdido no labirinto da identidade;
pois da identidade
desconhece o paradeiro
e inquieta-se por se sentir perdido
no lugar sem segredos. 
Não espera aninhar o conforto
nem se confina às ruas atapetadas
com as flores que sempre respirou. 
Não se importa com a orfandade. 
Prontamente
levanta as velas
e arroteia os mares necessários
e a linha de terra que o sossega 
– a distante, 
quase indivisível,
fímbria do horizonte
tão longínqua
que parece fundir-se com o mar. 
Não se considera fugitivo. 
Às vezes
o lugar dominante
parece uma estrebaria
infrequentável
um enorme estábulo
onde convivem as bestas desembainhadas.
Algumas madrugadas depois
o chamamento da terra desancorada
ecoa fundo,
irrecusável. 
A sabática maresia
aplaca os maus humores.

#771

É o caos.
Mas funciona.
(Existencialismo fora da caixa)

#770

A sombra
sob a língua,
as palavras castradas.

18.10.18

#769

Diz-me a madrugada,
em metáfora assisada,
antes seja artesão do dia colhido.

Autêntico

Mais que um sítio
um corpo catedral
um beijo frutado
o pânico sitiado pela volúpia 
– o adiamento dos adiamentos.
Arrumam-se as gavetas.
O tirocínio exaurido
(entre as paredes tingidas
e os olhos cansados)
no involúvel segredo sem janelas
nas folhas onde se depõe o ouro,
o ouro que somos 
– e já não somos tirocínio.
Tomo entre mãos
o caudal voraz
sei-me capitão sem comenda
poeta sem instrução
comendador sem capitania
instruído no dorso de um poema 
– imperador dos impérios sem limites,
dos impérios que não têm mapa,
desenhando as vírgulas em seu lugar
anotando memórias para lugar futuro
perseverando.
Não sei o que está nas gavetas.
Tenho a agenda completa
com a maresia que me extasia
a suave simetria do mar
desenhada no alabastro do céu
o teu rosto que me conforta
o teu peito em espera
o sentido cais em que somos prazer.

#768

Nos desenhos animados
(ao menos)
não há choros.

17.10.18

Materialização

Jogo
no rebordo da silhueta
todo o meu espólio.

Os violinos ensinam o canto
no ensaio deliberado da noite
entre arbustos e pedras estremunhadas
e o mel órfão.
Possíveis ecos
de palavras esquecidas
entrelaçam-se na pauta articulada
em rumorejos excruciantes sobre a pele.

Jogo tudo.

Posso tudo perder
mas confio nas fichas arrematadas
confio
no estuário que oferece o conforto
nas páginas que esperam os versos válidos.
É no rebordo da silhueta
que me arquiteto
inconfessável artesão do desejo 
(ou será
artesão dos inconfessáveis desejos?)
no incenso obtido com a corrupção da alma.

Todavia
não capitulo:
não mexo um braço a favor da comiseração
em achando a comiseração 
presente envenenado
o invólucro de uma bondade do avesso
(a que se faz em benefício próprio
sob disfarce da bondade exterior).
Sob a tutela da silhueta delimitada
angario o vinho perene
levanto as persianas persistentes
desocupo o céu das inválidas nuvens 
– chamo a noite
chamo a silhueta
que demanda as minhas mãos
seu escultor;
para que a silhueta ganhe forma
e seja matéria oferecida ao desejo
(inconfessável).

#767

Não cuido do que saibo
ou não sei do que cuido?

#766

Com as mãos frias
o vulto prostrado,
decaindo,
à espera da misericórdia.

16.10.18

O covil dos eruditos de bolsos esvaziados

Belos
os ares sem purulência
os habitados pelos versados
de artes várias
penhores da recomendável moral
artistas jagunços do oblívio
obnóxios enceradores da esbelta paisagem,
gurus.

Atenciosos
os palcos acetinados
pelos sapatos sapientes das sumidades
os velejadores de mares sem maré
os pimpões descamisados,
artesãos.

Elogiável
a facúndia coloquial
o palavrar gongórico
emulsionado na complexa receita do vazio
dos moradores dos altares pagãos,
paradigmas.

Prefiro:
o pretérito tão imperfeito
a humilde necedade
a verossímil simplicidade
a desostentação
a desfiliação
a sabedoria desossada
a mão aberta em sua mapa imperfeito
a infecunda palavra
os atropelos à gramática
os atentados às sombras que escondem ditames
a escassa excitação com o excitável
a formidável escassez de ideias.

Prefiro.
Em vez da ganância
dos ilustres letrados
os mais não democratas entre os democratas
pusilânimes estafetas da verborreia pueril
embebida no abastado pensar,
ascetas da estultícia reprimida.

Prefiro-os
de bolsos vazios
envergonhados de sua própria nudez.
(Não é caso para menos.)

#765

A cisma que se instala,
forasteira;
escrivã de sombras meãs.

15.10.18

#764

O crepúsculo 
é a caução dos segredos. 
O lugar alcançado pelo olhar 
oferece uma centelha fulgurante.

Astronauta

Como no corpo de um astronauta:
o peso sem peso
as veias levitando no porão da magia
e o olhar guloso
abraçando o planeta inteiro
por dentro da sua pequenez. 
Da varanda singular
as trovoadas formando-se
contra os medos menores
os mares que saqueiam a terra firme
(assim dissolvida)
os mares ora escondidos nas nuvens
ora na sua imensa massa descoberta
o feitiço do equilíbrio
de um tão frágil equilíbrio
o contraste com o colossal planeta
visto anão ao olhar do astronauta. 

Como no olhar de um astronauta:
a pequena mão
capaz de abarcar o planeta inteiro
da sua nudez expondo a fraqueza
à mercê do astronauta emudecido
uma miríade de estrelas por testemunhas
e a sua cobertura
no diametral jogo de sombras
que é inesgotável conhecimento. 

Não são
as trémulas mãos do astronauta
juízes embebidos na figura cautelar de Témis
nem são
as mãos de um distante ator
a comandar as vontades das marionetas
depostas sob seu olhar. 
Diga-se:
o astronauta foi ao espaço sideral
aprender como são os sonhos.

Não fosse ter data marcada para o regresso
o astronauta 
podia passar todo o seu tempo
na contemplação da paisagem 
que se abre sobre si.
Agora que não adeja em órbitra
o astronauta
apascenta os sonhos contínuos
aquelas imagens irrepetíveis
guardadas no fundo da memória.