20.10.16

Compêndio

Saltei a espuma do tempo
cavalgando na inóspita rua sem fim
que amadurecia na lua sem rosto.
Queria sorrir e consegui.
Sobre a aresta de uma onda domada
juntei os impactos do mundo
numa folha de papel,
sem a amarrotar
sem os desarranjar.
Disse
aos ventos sem rumo que alisavam a onda
que sabia ser marinheiro mesmo sem mar
pois inventei os palcos perenes
onde tudo se transfigura.
E o mundo inteiro
(ou pelo menos o que importa considerar)
veio às mãos minhas
sedentas de o albergar.

19.10.16

Viagem

Uma légua de caminho
a paisagem atarefada desfila pela janela
e o troar do comboio toma lugar
no mapa dos ruídos.
Uma mulher desconchavada cambaleia
contra os solavancos do caminho.
Dir-se-ia,
contrariada
aprisionada no comboio e ao seu destino.

Os olhos cansados procuram refúgio
por dentro das pálpebras.
O maquinal troar do comboio não deixa.
A paisagem é vertiginosa.
Leva consigo o sono vadio.

É como uma viagem pelo tempo
e a roda do tempo que passa,
voraz.
Já diziam os sedentários:
estultas são as viagens
quando um pedaço de paraíso se prende
à bainha das calças.
Discordo.
As calças atadas ponteiam os pés ao chão
o pensamento perde em antiguidade
os olhares ficam em dívida dos seus múltiplos.

O estorvo dos lugares mesmos
pede mapas e viagens e paisagens
numa cornucópia de lugares,
contrariando exíguos, ermos lugares
onde o corpo padece em sua avareza.
Lembrando
para memória futura
que a madurez se entretece
na miríade de lugares.

#81

Não é por acaso
o promontório que alberga sombras
se não no sótão
onde se desperdiçam pensamentos.

18.10.16

O compasso do mundo

Por mais voltas que o mundo dê
atiro-me às searas nascentes
como a água para os sedentos vãos
embelezo-me com tintas puras
corto das árvores as urdiduras infectas
dou folguedo em dias sem calendário
distingo os lugares com moldura
em vez da monotonia de uma hibernação.

Dê as voltas que o mundo der
desaprovo foros da jactância
destrono bestiários vindos das trevas
desalinho estrelas que bebem desordem
dispenso patriarcas conselhos de anciãos
desencomendo vendas para os olhares
desencravo portas enferrujadas
destravo rodas pendidas sobre o abismo
descoloco mapas afinados em parafina.

Em todas as voltas em que o mundo se insinua
venho ao mar receber o sal das divindades
aplaudo trovadores dos mundos anónimos
cozinho músicas no alpendre do luar
apanho comboios sem destino aparente
pergunto às pessoas se me podem sorrir
danço sem saber dançar
e povoo a tela diante do olhar
com petitas apanhadas no restolho das árvores
enquanto sussurro ao ouvido de um cavalo
que as mãos da terra apanham caminhos jurados.

Contando todas as voltas ensaiadas pelo mundo.

17.10.16

#80

(Com ingenuidade)
Não sabia se um hotspot
era uma ilha exótica a meio do inverno
ou outra, de pornografia.

Janela sem rosto

Talvez houvesse pontes meãs
por onde todo o crédito do mundo
viesse.
E das partidas inteiras do mundo,
abraçado a um manto lanífero,
via o que podia
à custa do nevoeiro timorato.
Teria sabido chamar a mim
os gatos sem casa
os mendigos sem medo da noite e da solidão
as mulheres entristecidas
os barcos vazios rio fora:
e teria juntado com as mãos
as pedras preciosas escondidas
na terra lamacenta
para depois as atear ao aleatório céu de nuvens
esperando pela tômbola consequente.

Talvez
o altruísmo seja um ardil da alma.
Uma cegueira absurda
nos deslimites do eu.

E, no entanto,
a pulsão sem freio adestra para a dádiva
metendo outros à frente do eu exaurido.
Dista da ponte aquífera
a equidistância entre o eu razoável
e o eu que transborda dos limites aprazados.

De frente para a janela embaciada
as gotas de humidade abrem estradas no vidro;
talvez,
por esses interstícios,
consiga saber por onde anda a alma.

16.10.16

Filial

Vamos comer gelados
à praia das baleias.
Vamos correr nas ruas
contra o vento que afeia o tempo.
Vamos apanhar amoras
no parque onde se deita a preguiça.
Vamos dançar sem jeito
pela mão tresloucada da música louca.
Vamos fazer rimas pueris
pois somos infantes de mão dada.
Vamos passear na cidade
enquanto não entardece a fome.
Vamos desatar numa correria furiosa
entrar no mar com as roupas vestidas
lançar água ao rosto um do outro
sem depois querermos saber
que a areia adere aos pés e à roupa.
Pois olhamos ao céu
e sabemos
que os cabimentos filiais se intuem.
Sabemos
que não morremos
enquanto estivermos nas mãos recíprocas.

15.10.16

Casario

Estas casas todas
vidros encardidos
postigos decadentes
pintura enrugada
janelas que escondem lares
casas coabitando
com tantas histórias de vida.
Gente
toda esta gente no metro
nas ruas apinhadas
gente triste
gente aperaltada
gente faminta
desalinhavando esperanças pretéritas
metendo as mãos frias nos bolsos
espreitando a lúgubre publicidade
fazendo contas de cabeça
expiando o bolçar quotidiano
metendo as pás do pensamento
no alfaiate do amanhã
deixando no tempo esgotado
promessas que a seu tempo
foram promissoras.
Estas casas todas
desta gente toda
e uma cidade com as veias à mostra
à espera dos feitos do futuro
enquanto aguarda
em desencanto resignado
que amanhã não demore.

14.10.16

Puro

Temos a fome da lua grande.
Apanhamos os frutos maduros.
Bebemos o vinho altivo em cálices finos.
Devemos ao mapa viagens mútuas.
Retiramos das árvores folhas caducas.
Olhamos para o mar sem fim.
Dançamos em singelos passos uníssonos.
Gravitamos nas nuvens brancas.
Espalhamos a ternura que é genética.
Somos outono em prefácio da primavera.
Deciframos os idiomas sombrios.
Cozinhamos com os dedos ungidos.
Amanhecemos no pináculo do sono sem sono.
Dizemos as estrofes diamante.
Suplantamos os estorvos do tempo.
Sonhamos o chão despido sem pés.
Chamamos os sussurros cantantes.
Vestimos os olhos com a equação de um poema.
Juntamos as mãos numa sentença leal.
Despimos os medos em contos singulares.
Assinamos o livro de ouro em linhas vazias.
Deitamos o corpo cansado no corpo vizinho.
Exaurimos a frágil agonia.
Dessabemos os pretendentes a algoz.
Cantamos a pura melodia apurada a dedo.
Somos.
Um amor sem medida.
Um amor levitando na aurora clara.
Um amor saltando sobre o tempo.
Um amor sem peias.
Um amor.
Somos.

13.10.16

Na medida do impossível

No esquadro das possibilidades,
sonhador de cais desembalsados
porfio entre as nuvens de chumbo.

Não desisto
nem que se abatam as paredes sombrias
ou um tira-teimas se jogue contra
ou abutres famintos espreitem sobre o ombro.
Congeminam-se
os palcos atípicos num inverno mendaz
com os mendigos exasperadamente inertes
(como se estivessem de espada embainhada
capitulando a norte).

Não quero saber
das cores desembaciadas
nem das pontes altivas que enlaçam diferentes
nem as terrinas de ouro tão cobiçadas.
Não me importam
estorvos contumazes
médicos sobranceiros
narcísicos com apoplexia dos holofotes
ou eruditos eivados de invencibilidade.

Ambiciono
o doce travo do impossível
ter um oráculo de impossibilidades
e vê-las transfiguradas no possível.
Sem cair à cama doente
se elas não forem fogueira incensada
nem dormir na perenidade do tempo
no acaso de as impossibilidades se confirmarem.

Nada me tira o prazer incontestável
de desenhar impossibilidades.
Sim
podem dizer
sou um iconoclasta das impossibilidades.

12.10.16

Monólogo

Diz
com o tracejado de um lápis
onde fruem os beijos faiança.
Diz
as coisas simples
à mercê do raiar da manhã.
Diz
como se fosse preciso dizer
os fundamentos do sol poente.
Diz
em memória com raiz
que árvores trazem sentido.
Diz
sem o torpor do tempo baço
que cordas se desamarram em altivez.
Diz
sem ter medo das palavras
que vozes se compõem na lua.
Diz
se te ocorrer dizer
os minutos sem peias no irrefreável rio.
Diz
às vozes que sussurram
que guardas na mão o segredo do sono.
Diz
qual é a fonte frondosa
de onde rebenta o manancial constante.
Diz
já sem dúvida
o lugar dessa fonte.

#79

A folha caduca
sonda o chão túrgido
selando a outonal deposição
do mosto do verão.

11.10.16

Perguntas de retórica

E se as palavras doces
só fossem escritas em ardósia?
E se os sorrisos abertos
só fossem provimento do outono?
E se as mortes serenas
só fossem caução noturna?
E se as moedas com trato
só fossem tradição fiduciária?
E se a confiança esteio
só fosse raiz sem impurezas?
E se os dias contados
só fossem um rol de alvoradas frias?
E se os cães não vadios
só fossem vadios por falta de alimento?
E se as armas letais
só fossem arqueologia?
E se os abraços de ternura
só fossem rotina?
E se os rios pujantes
só fossem bênção na aridez algures?
E se deitar no sono
só fosse a comiseração dos sonhos?
E se as teclas de um piano
só fossem o lastro de um poema?
E se as gavetas arrumadas
só fossem ruas por onde se arruma a desordem?
E se a ausência de um algures
só fosse irrelevante lugar num mapa?
E se a letargia contagiante
só fosse o adiamento do tempo?
E se as medas que se juntam num museu
só fossem um testamento?
E se a estatura meã
só fosse a mentira das médias?
E se porfiar um amanhã
só fosse a mais pura das inutilidades?

10.10.16

#78

Tirando as impertinências
e o jeito ocasionalmente iracundo
não eram regateados predicados
que sogras proclamam em genros.

Carne e osso

Um casaco vestido num busto sem gente
entre cotovias grafando danças pueris
e sete pedras sentadas na cumeada
à espera de gente cansada de estar em pé.
Um casaco vestido
e um busto sem braços seu possuidor:
as antenas de outrora
(as que afeavam as cidades)
povoam as cumeadas à espera do vento
para serem gente.
Um casaco afinal despido
e um busto inanimado por companhia.
Não é peça bastante.
Casaco estéril sem valimento
não encontra cais em gente.
A carne e osso fazem diferença.

9.10.16

Canto do cisne

Epílogo.
A última gota do mar
a desmaiar na areia molhada.
O último gole de ar
antes de a água sem freio
engolir a respiração.
A última prestidigitação
antes de cair a máscara
ao farsante.
A última coisa que se é
antes de um vendaval intempestivo
tudo deixar sem serventia.

Ou apenas um cisne a cantar
sem causalidade que haja
com os pretéritos exemplos.
E o cisne vagueia,
leve e livre,
sobre as águas seu domínio
garganteando um canto nada lírico.
Sendo cisne.

A julgar
pela sabedoria ajustada pelas convenções
o canto do cisne é o seu epílogo.
Pois não cantem os cisnes
em segredo não revelado da perenidade.
Ou então
desfaça-se em despojos sem utilidade
o que sobrar da convencionada sabedoria.

E deixem os cisnes cantar
na sua leveza e liberdade
que eles amestram a paisagem bucólica.
E deixem todos os fins de histórias
desacorrentados de estultas imagens,
apenas sê-lo
fins de histórias.

7.10.16

Tinta invisível

No arco delgado da porta velha
os turistas apreciam o vagar.
Não interessam
os maltrapilhos nas proximidades
devolvidos ao desvalor
que dizem ser seu merecer.
Não interessam
as águas lodosas do rio que acama a paisagem.
Entrecortado o silêncio
no pesar do palavreado sem sentido
matraqueado sobre o dorso das pedras milenares
e descarregado o arsenal de fotografias
os forasteiros bebem de uma garrafa sem fundo.
Cambaleiam
ruidosos
no entardecer confuso do pensamento embaciado.
Aterram na terra-mãe.
Sobram memórias tinta invisível.
(Valem os retratos guardados
para avivar a tinta 
que deixou de ser invisível).

6.10.16

Águas furtadas

As mãos na terra
senti-la respirar entre os poros.
As mãos por dentro da terra
desenhando as figuras geométricas da manhã.
Por dentro da terra
sem medo de saírem imersas em negrume
das mãos nascem as veias rejuvenescidas
as veias que aprenderam com a alma da terra.
E as mãos não desistem do aroma da terra
remexem-na alarvemente
como se de uma hibernação viessem devolvidas
e famintas porfiassem.
As mãos insistem na terra
antes que a chuva tenha império
e desfaça os desenhos sem fronteira
lavando o pecúlio de um gesto.
Tiro as mãos da terra.
As mãos negras
as mãos reaprendidas
as mãos adultas.
As mãos.
E escrevo
em pauta de argila
as estrofes crepusculares
de uma espada cintada com a lua 
bordada a prata.

5.10.16

Dual

Peça ilha
três dias
tiro meia
tiro tudo
coço dedo
ligo baia
olho baço
bala erma
cura eito
dito meio
alvo mero
dedo alto
ceia toda
fria vaca
fera bela
toca alva
tôla tola.

30.9.16

A cidade nua

A cidade nua
desfolha-se através da escotilha entreaberta.

Não se sabem se as costas cansadas
dão cais aos sonhos angariados
ou se são apenas a porta transversal
de uma cidade antípoda
os raios vidrados da cidade sonhada.

A cidade nua
respira o odor da chuva na terra ressequida.
Respira
demoradamente
enquanto se embebe nos taninos singulares
de um vinho imaginado
embarcado em navios sabiamente desenhados
sulcando o rio sem o magoar.

Na cidade nua
desaprovam-se os preconceitos a eito
povoam-se os hábitos com desábitos a preceito
à mercê do vinho a rodos
que por todos é bebido
em noviço festim.

Até que tudo fique nu
impurezas que deixam de o ser
segredos sem cortinas
tratados assinados a tinta da china.

Sem supor
que há ardis por desnudar
sobressaltando a altiva nudez da cidade.

29.9.16

Archote

Um archote de pavio lacónico
todavia aceso
por perto.
A penumbra açoita o olhar
e o archote aceso
arranja lugar.
Saber-se-iam as febres tantas
houvesse carência de luz
e o corpo medrasse no limbo.
Saber-se-iam dores tumulares
e a penumbra seria endemoninhada.
Saber-se-iam sabores ácidos a turvar a boca.
O archote do pavio lacónico
convoca de uma vontade
efémera e frágil que seja,
desmaiado seja o pavio.
Só uma centelha frugal
um módico clarão
travando o pé à penumbra.
A servidão maior
procede dos olhos voluntariamente vendados
acostumados à luz apartada.
Um archote
mesmo de lacónico estatuto
opera milagres de que deus nenhum é capaz.

28.9.16

#77

A calçada gasta e orvalhada
covil de todos os logros
esconde os segredos
de quem por ela mete os pés.

Slow motion

O inverno insinua-se,
letárgico.
Os corpos cobrem-se,
frios.
O vagar dos relógios,
catártico.
Um espelho de neves,
contemplativo.
Os gatos impassíveis,
ociosos.
A penumbra opulenta,
anestesiante.
O tempo arrastado,
ciciando.
Chaminés fragmentos,
convocatória.
O calendário cautelar,
amarrotado.
As pressas adiadas,
lentamente.
Os operários enregelados,
consumidos.
As árvores despidas,
esperando.
E gente enfraquecida,
doente.
Um inverno lazarento,
algoz.
E a pressa sem pressa,
enfim.