28.2.17

Aprendizagem 

O esporão desencavilhado
o eremita sem sono
no derramado copo de cultura
evita o levitar das janelas frágeis. 
Quase todos os dias
um equânime sorriso
efervesce a discreta generosidade
e o eremita sentencia-se à sua anulação
à axial contrafação dos indultos projetados
para fora das suas fronteiras
ao passo que em si usa uma espada
que o trespassa sem verter sangue. 
A rosácea aberta
com o favor do sol que sobre ela se arqueja
desmente as piores modulações das coisas
os arautos das pontiagudas pedras
que esperam pés desprevenidos
numa laceração vicentina. 
Às vezes
o eremita não se contenta com a espada astuta. 
Desembainha as esporas afiadas
para o caso de não ser bastante a penitência.
Inglória aventura:
as lágrimas são fonte seca
e as dores 
imigraram do dicionário dos sentidos. 
Depois
tudo fica com uma clarividência estrelar:
desprendem-se os nós verdugos
os que desembolsaram
o capital social da inquietação
os que tiveram cobertura de demónios sonhados
em perfeita arritmia dos sentidos
como quem atira areia para os olhos
só para mascarar os palcos 
que interessa esconder. 
Não há proveito nas estações desapiedadas. 
Não colhem os frutos podres
nem o amargo veneno em nota de rodapé. 
O eremita não é (eremita). 
Tem andado ao engano
apoderado por um papel que lhe meteram
entre duas distrações cósmicas. 
Agora
o eremita tem de aprender
(a não ser eremita). 

#147

A vertigem derrotada
e tudo 
com as mãos recolhendo
a haste antes do ocaso. 

27.2.17

#146

Os promitentes dos apocalipses
e o seu concubinato com a melancolia 
na exata medida do amor do mundo.  

Naufrágio

Visto do naufrágio
e vistas as ausentes boias de salvação
sobrava mar de mais
e nadar.
Frias as águas
e tempestuosas
sinal da empreitada abruptamente
impossível.

Os braços não capitularam.
Passaram
a meio da tempestade
as frugais imagens em rol de memórias
alguns arrependimentos
um punhado de proezas
orgulho reprimido
a infatigável perseverança na espécie
os rumores das cinzas imprestáveis
o fogo que se emaciava no penhor das forças
e todo o musgo dos sonhos.

Os braços não capitularam.
Sentia o estrépito das ondas no rosto
constantemente esbofeteado
como quem se desforra do pretérito
em havendo contas por saldar.

Uma centelha esbracejava
no que parecia ser ao longe
entre as bofetadas de mar
e os levantamentos do vento indomável.
Podia ser um farol.
Um navio em socorro.

Não era
(ainda)
tempo para capitular.

26.2.17

Margem

De que adianta a epistolar vénia
se o chão é todo pútrido
se as margens escondidas
escondem sempre o mesmo
assim que são franqueadas?
Deixem o vernáculo no estábulo
os amofinamentos em seus perecimentos
as colheitas sem suas maleitas.
Olhar hirto
em frente
sem decair, nunca,
pois ajuramentámos a nossa, a maior,
dignidade.
Os dedos delgados não esfriam
enquanto escrevem epitáfios perenes.
Das raízes da água
em momento de tonitruante inspiração
agasalhos que não temem a imersão.
Venham as águas
por mais frias que sejam
que já temos descrédito talhado à medida.

25.2.17

Manutenção

O invisível lírio
estabelecido
hasteia o frémito sentido
na flor quente da carne
a fórmula reinventada do desejo
contra as crisálidas apodrecidas
sentadas às janelas sem cortinas.

24.2.17

Vade-mécum 

O abraço da maré alta
em convulsões dionisíacas
mostra o pulsar da manhã. 
Nestes preparos
volto ao lugar eminente
onde as safras enjeitadas vão a jogo
e perfumes diametrais se cruzam nos corpos
e os pés molhados se entaramelam na areia. 

Sempre quis indagar
o que escondiam as rochas submersas
sem ter de esperar pela maré baixa. 

Quis só poder perguntar
que danos viriam em meu pleito
e não tanto
como podia terçar armas em contrário. 

Não pude esperar pelo anoitecer. 
O abraço da maré era convidativo. 
E eu depunha os pés algozes
na fria água que rompia a areia
onde o mar frutuoso tinha embocadura. 
Desaguei num cais vazio
o mar parado por companhia
e o grasnar irado das gaivotas em redor. 
Parecia um lugar sombrio
desolador
a bruma da decadência
que não julgava por penhor. 

Em vez de fugir
demorei-me
a apreciar o lugar. 
Acendi um cigarro amarrotado
à procura de sinais de fumo. 

Só parei 
quando as ruas
deixaram de estar desertas
e a noite foi removida pela manhã fresca. 

#145

Esta babugem
estorvo larvar em sentida costa
não será paredão
nem braço impossível de torcer.

23.2.17

Cidade nua

As asas de um noitibó
descidas
nas ramagens agitadas
onde um ancião se esconde do caçador.
Uma serpente persevera entre os arbustos
e na Nova Zelândia o curador de artes
rompe os sacos do lixo
desenganado com o capitalismo.
Muitos porventuras depois
em estilo obnóxio
com um certo desdém típico dos lordes
o cantor de ópera escorrega na chuva
esbarra no rosto enrugado de uma peixeira.
Na praia oblíqua
sem remar contra os pesares do mundo
apenas adestrando sua madraça condição
a esguia manequim
mete-se num parêntesis do pensamento.
Talvez esteja certa.
As explosões sem critério
desfazem a muralha propedêutica
e os financeiros atinados ficam sem verniz.
Muitos porventuras depois
nas gargântuas viradas do avesso
entre três colheres de flor de sal
e igual medida de um unguento secreto
os meninos ímpares sorriem nas esquinas do dia.
Não sabem sequer saber a dor
a menos que um sacerdote episcopal murmure
desejos inconfessáveis.
Os gatos vadios sentados no telhado
apreciam o resto.
E as rugas anciãs
sem ramagens onde aportar
são peregrinas na imagem sentada
coalhando os néctares precisos.
Amanhã tudo seria um igual singular.
Amanhã
as mãos seriam operárias
no amassar da massa indiferente
e os placards resplandecentes apagar-se-iam
por um minuto que fosse
para deslaçar o silêncio jurado.

22.2.17

#144

Como posso ter deus,
a não ser por vagante,
se deus nunca quis ser eu?

Mar sem chão

Arrancar dos dédalos vociferantes
dos distintos nós que esperam desembaraço
com os pés leves que se embebem na manhã
sem o medo dos vultos que açambarcam o céu
nem das fábulas com selo das gentes lhanas
pondo nas mãos
o prodigioso planar sobre o mapa aberto
sem esquecer
o rumorejar do mar a desfazer-se na areia
numa luta desigual
e, todavia, teimosa
para vingar no pleito 
contra musculadas divindades 
feitas para dispor as contrariedades
no tabuleiro do jogo. 
Sopesam-se
os ventos que não correm de feição
os remoinhos que tomam conta do corpo
a ossatura que dói
o entardecer que levanta a poeira 
dos espantalhos insistentes
e sobra
um pequeno grão de um cereal sem pertença
a idílica fonte onde o corpo assustado
vai saciar a sede do porvir,
retomando a soberania de si mesmo. 
Pois nada se contempla
no equinócio bastardo das funções apoquentadas
sem que,
em dobro,
ouro aquecido queira de mim um regaço. 

21.2.17

Máscara

Uma máscara
descida sobre as mãos nuas
uma reticência
rasto assombrado dos vãos desditos
sem supor o viés de tudo.
Tirando os dementes
que cursam a apoplexia dos dias
talvez sejamos o pasto verdejante
dos poderosos
– e sabemos.
Não se reclamam os impropérios
na endemoninhada inércia dos membros
como se uma anestesia geral tivesse chovido.
E, porém,
somos apenas de nós mesmos
(em pertença falando)
no jogo que se joga nas balizas da vontade
sem o jugo exterior
sem a paráfrase dos poderosos
que se deita sobre a nossa vontade.
Máscaras
usam-nas os que se escondem
nos ardis do poder.
Nós,
tutores do despoder
não carregamos máscaras
a não ser o rosto nas rugas transientes.

#143

A bombordo
no bom bordo
o bom bardo
aborda a boda
e a barba à borda.

20.2.17

Entronização

Sem saber nadar
atiro-me para dentro dos teus olhos
o poço de águas leves
a carne quente onde repouso
no beijo macio que traz tempo de volta
e os olhos que marejam no cais sentinela
algures numa lua sem freio
onde somos despojados por decreto nosso
sem as vestes por defeito
apenas corpos em entrega
e o mergulho nos olhos recíprocos
com o sal quimérico
o suor doce
as camas desfeitas
as roupas perdidas
as montanhas transfiguradas em planície
os navios dos nossos olhos quentes
onde selamos o baluarte de nós
desatando os nós túrgidos
as alfândegas a destempo
as flores metidas no seu avesso
os lençóis frios à espera de fogo
em tempo sem tempo de que somos reis
num palácio sem mapa de que somos tutores
sem mais nada lá fora
a não ser o que os nossos dedos desenharem
num dote ímpar.

#142

Ouvir as folhas que estrelejam,
andarilhas no fogo fingido,
e beber os vinhos próximos do rosto.

Medir o pulso

É este o teu pulso
a moldura sem freios
penhor de todas as coisas
em compasso com as flores campestres?

O quebrar das ondas
sussurra aos destemidos arrais
sobre o dorso cansado dos mercadores
que vêm ao mercado de vazias mãos.
Julgo saber
(das horas escritas em finas pérolas
dos contrapesos em orações derramadas
com a grave servidão das lágrimas)
que a multidão se inclina às solenidades.

Que interessa a grandiloquência
se continuarmos sitiados pela gravidade da pose
sem a pose quadrar com o avesso das costuras?

Não sei
se hei de convocar os súbditos distraídos
ou proclamar versos sem forma
ou apenas jurar aos ventos futuros
que o pulso imaleável é venal.

19.2.17

Desdeus

“(...) because God won’t do it and we are going to play God here.”
Tennessee Williams, The Night of the Iguana.

Não faças as perguntas venais
as que enxugam suas próprias lágrimas
sem o remédio dos patronos verificados.
Não dependas de juras largas
nem de oxalás penhorados
em lençóis de fino linho.
Não julgues que a bússola se avariou
na temente exaltação das respostas a tudo
sob a pena do arquiteto mor
do dom da omnipresença.
As empreitadas por fazer
e a gente toda à espera de um sinal
de um milagre
e da empreitada que se resolve por si.
Desenganam-se.
Descobrem que elas estão no papel
que esperam da divindade.
Não podia haver
maior demissão de deus.

18.2.17

Ábaco

Os frutos sobrantes nas árvores
depois da safra
antes de apodrecerem
antes de as folhas caducas
despirem as árvores. 
O outono cicia nos ramos frágeis
no exato estertor de amantes trespassados
pelo rumorejo incessante do rio ao longe. 
Os frutos senescentes
não são cadáveres sem proveito:
fundem-se no húmus 
em presságio de quimeras extasiantes. 
Que os amantes trespassados
não protestem com prostrações ocasionais
(que o desamor não é elemento constante). 

17.2.17

#141

Não temos ideias soalheiras:
se não andamos de cartola
como sabemos dos coelhos?

Palco

Atrás do palco
onde as nuvens respondiam pelo nome
“sombras”,
sem os estorvos da decência
nem os sobressaltos da heresia,
as nuas pessoas tiravam das vestes
um módico de singeleza.
Depois
quando o palco voltava a ditar leis
e as vestes eram verniz baço
sobejavam as coisas artificiais
as palavras urdidas
os passos projetados três casas à frente
a genética soberba de tudo o que não conta
e o esquecimento de haver atrás do palco.
Quando foram procurar o que o palco escondia
encontraram um amontoado de cinzas
vidros estilhaçados
e o rigor mortis do oblívio.
Depressa desaprenderam
o que havia atrás do palco.
Até que o palco se tornou lugar único.

16.2.17

Suor frio

Éramos
tangência imparcial
uma concentração absoluta de vontade
émulos dos heróis que víamos por dentro
monumental simplicidade ao vento
tronos à espera de vez
sentados nas cortinas ajardinadas.

Éramos
suores lavados nas fontes
correria fruída na praia deserta
corpos exsudados no miradouro trespassado
estrofes tingidas pelos lírios atónitos
sem medo dos medos
com a audácia da destemperada idade louca.

Éramos
donos da voragem do mundo
arquitetos do tempo aprisionado entre os dedos
tesouros desembainhados na foz do rio
desvarios eloquentemente lúcidos
tradutores de almas tresmalhadas.

E agora
somos ainda mais.

#140

Diante do ocaso
como se fosse o avesso da alvorada
estimo os pesares sem caução. 

15.2.17

Desafio

Subiu a parada.
Não aceitou a esmola
insinuando indigência ingrata.
Pegou no corpo
quis levá-lo longe,
onde nunca fora.
Não havia aspiração desenhada em papel
nem loucura bastante
para tirocinar empreitadas vãs.
Que fosse um desafio
– como desafios vêm ter a toda a gente.
Não contou a ninguém.
Seria um segredo
dentro do cercado que era seu limite.
Subiu a parada.
Ao começo
sentia o pulsar acelerado do sangue
como acontece com o desusado.
A decisão estava tomada.
Subida a parada
exigiu-se responder à altura
sem ser refém da timorata indecisão
sem se intimidar
com o chamamento de retrocessos.
Subiu a parada
e já não havia nada a fazer
a não ser levar o corpo ao seu encontro.

14.2.17

SMS (Save My Soul)

Âncoras que reluzem impecáveis
sob o sol duro do estio durável.

Ou apenas
navios que não gastam o mar
enquanto dão as mãos às ondas vadias.
Gémeas almas
entrelaçadas nos nós macios do amor.
Gémeas almas
que cruzam olhares
deitando feitiços nos objetos entesourados
olhares que consomem desejo.

Ou apenas
um beijo atapetado no rosto suave
um peito aberto como cais
um livro inteiro com páginas consagradas
o ouro cheio na garrafa guardada
e o mar que enche a janela sem freios.

As homenagens são-nos tributadas
na multidão que somos nós
sem os embaraços dos rostos fugazes
com a medida certa da inscrição que deitamos
num poema fervente
num poema em feitura contínua.
Pois somos a medida inacabada
do todo que congeminamos em mar perene.

Não desejamos ao tempo
se não a mesma ânfora vivaz
que nos traz numa constelação sem adjetivos
a não ser o substantivo inderrotável do amor.

E eu,
no promontório prometido
penhor da quimera onde me tenho
na gratidão sem fim ao amor que me tens.