31.3.17

#174

O solstício atrasado
mas jura a tempo
e os nenúfares vicejantes
esperando.

Maré

O que conta a espuma do mar?
O que vem na fina camada
que entroniza uma onda?
Que segredos esconde o mar?
Que contos sem autor
estão náufragos na sombra do mar?
Que navios sulcaram estas águas
que me insonorizam os sentidos?
Que severidade traziam seus comandantes?
Quantos foram os sobressaltos das tripulações 
contra os demónios agrilhoados
ao mar tempestuoso?
Quantos os navios destroçados?
Quanto tempo demorou
a domar as ondas irascíveis?
O mar
aprendeu a vestir o fato da ternura?

30.3.17

Jogos sem fronteiras

Olha:
uma folha em branco.
A forma à espera
de tamanho.
Um cuidado em diligência.
Lápis sentado
entre a muleta do pensar.
Um comboio atrasado
à frente da nuvem.
O gato sonolento
ronronando.
A bandeira rasgada
ao vento vadio.
A faca esgaçada
no estertor da ira.
O deserto do rosto
sob o gelo contumaz.
A urze que medra
no desmentido do outono.
O pregão sem rosto
na voz deslaçada.
A página roubada
ao plágio improvável.
A trova mugida
do lóbulo estrelar.
Frutos podres
antes do tempo.
O tempo que foge
na penumbra coagida.
A coação das palavras
sob a égide de uma espingarda.
Espingarda maleita
no avesso do mar.
Mar desnatado
sem fruição.
Discurso obnóxio
de pajens sem vontade.
Um posfácio sem redenção
no aproveitar da roda incansável.

#173

A terra dourada
em préstimos legítimos
e donativo matinal sem recompensa. 

29.3.17

Hoje

De hoje
sobra o sedimento apurado
nas fronteiras do sentimento. 

De hoje
trago ao peito os lugares devolvidos
num promontório esquecido. 

De hoje
atiço ideias sem a poeira do amanhã
enquanto me despojo das ruínas. 

Do hoje
sem ontem a arquear
nem amanhã diletante
prometo destronar 
a candura das velas acesas
dos mastins esfaimados
que se atiram à carne e ao sangue
dos profetas desapossados
em preparos desassisados
dos mandantes sobranceiros
das árvores sem fruto
da ira sem serventia
das campainhas estouvadas. 

Do hoje
sem peias
sem pejo
no lauto jantar
à minha espera. 

#172

Das eras antigas
vestígios
bruma dispersa
um octogonal monumento
e a sede inteira do céu por descobrir

28.3.17

Sem vergonha

No vértice da tarde
onde o chão arruma a bruma
pelo módico esgar de um mendigo
deitam-se ao céu preces sem autor.
As ondas venais
sem areia para beijar
desfazem-se no cais antigo
à espera de um vento soberbo
que as faça aportar no lugar cobiçado.
Na embocadura do rio
As barcaças arremetem contra a corrente
engolindo a espuma das ondas
que vencem o braço de ferro com o vento.
E a noite tremenda
esbracejando o luar alvo
abre as cortinas
para a loucura sem quartel.
Os vendilhões afinal não o são.
Sobram as côdeas esfareladas
do baraço rutilante
que amordaça
todos os pesares sem estima.

#171

Não me lembro do futuro
no formulário das concessões
deste pedestal inverosímil
de onde me devo,
ausente. 

#170

O medo
arranca por dentro a vontade. 
Nos alçapões sem fundo
está o medo de não ter medo. 

27.3.17

Instituto de Meteorologia

(Em jeito das conversas à falta de assunto, tirando o assunto meteorológico do saco)

Desafio as portas da primavera.
Desafio-as
a serem tutoras da claridade reavivada
das flores gravitacionais
do mar que descansa do desassossego invernal
das pessoas sequiosas de leveza de indumentária
do entardecer que se estende pelo dia fora
das nuvens alisadas no céu aberto
das árvores que voltam às folhagens
dos aromas silenciados no inverno
dos mananciais que se escoam fartos,
fruto do degelo.

Desafio as portas da primavera
a não se esconderem
na carantonha do inverno a destempo.
A não sufragarem os frutos em viço
debaixo da geada mortífera.
A não importarem das lonjuras
ares não convidados,
ares estranhos,
que as gentes protestam
contra a primavera em contrafação,
definhada
adiada.

Talvez
os deuses pudessem encomendar
por sua interposta pessoa
aos caudilhos das anomalias dos elementos
uma trégua.
Só para não ter de ouvir
incessantemente
lamentos de um tempo fora do seu tempo.

#169

Das cansadas arcadas
em aparente demanda, 
imparável muralha em fina matéria 
de vidro-espaço. 

26.3.17

#168

Parada de esqueletos
joias sombrias, gastas
grandeza de outrora
vozes guturais,
a destempo.

Elástico 

As fráguas tatuadas no dorso
coisa sem faceira 
confirmadas no rosto da lua. 

Os sapatos botos
perseguem a candeia que assobia
sempre uns passos à frente. 

A intermitência do fojo
não deixa dúvida:
passeiam-se os braços 
na efusiva celebração
que cada dia exige.

Nem que seja
em contramão dos pesares. 

25.3.17

Desalmado

Sem as cortinas avultadas
sem os freios que instruem engodos,
descarnado.
Sem as águas furtivas
sem as costuras à mostra,
desmatado.
Sem os vultos assacados às intempéries
sem as básculas intermitentes,
desossado.

24.3.17

#167

Viagem simbiose
em vulcões que esbracejam
diáspora de espadaúdos deuses
em sua lívida cartografia. 

Fonte certa

Passado o equinócio
sobravam as flores dançantes
em forma de chão
propositadamente congeminadas
para receber os pés. 
Não havia varandas sobre as nuvens. 
Não havia lamentos ciciados
debaixo de negra indumentária. 
As janelas entreabriam-se,
Timoratas,
mas acolhiam o mostruário que espreitava. 

Sem saber
juntei nas mãos as pedras preciosas
que vieram ao caminho. 
Os poetas não adormecem
diz-se, como se mostrassem heroísmo. 

Do alpendre estival
enquanto a preguiça estiola
e os olhos se perdem no firmamento
trago no peito
a crisálida mais bela que encontrei,
a espuma sublime
que se desprende de uma onda do mar,
a gravata em forma de mapa,
a voz doce que perfaz o encantamento.

Estou à espera
das horas pares
e dos acetinados do céu
para inventar outro equinócio. 

23.3.17

#166

À toa
sem Bacalhoa
bexiga escoa
juízo destoa
braço arpoa.

Miragens

O suor cansado
carrega heróis sem trono.
Que espetacular desperdício
vontade a rodos sem espaço a preceito
num matrimónio de inconveniência
que espalha olhos de gato
em avenidas estultas.
Os rapazes sonolentos
afinal
sabem mais do que os catedráticos.
Não admira.
O dia acordou sentado no céu
e não consta que as nuvens
corram no mesmo sentido do vento.
Às vezes
as trovoadas despejadas em feérico bolçar
aguentam-se no lapso sem memória.
É o que lhes vale.
(E aos rapazes sonolentos
– certos de saberem mais
do que os catedráticos –
que continuam a beber dos bueiros.)

22.3.17

Invisível

Deste lugar
no ermo de um corpo
onde medra paixão
impaciência
perpétua sede do novo
o voluntário sopesar da dádiva
onde se abraça
o romance
o comboio das fruições
as nuvens sem fundo
e um fundo copioso,
de um lugar
que se não quer centrípeto:
esbracejam fulgores prometidos
demandas em esboço
o pensamento não venal
a intensa marca dos dedos
num contínuo.
Deste lugar
no ermo de um corpo:
a aspiração de um neófito
à espera de aprender
com as flechas intermitentes
com a combustão dos enlevos
com a matéria não bolorenta
dos livros nunca tardios.

#165

Como as unhas dos gatos,
o cinismo:
só esgadanha a carne
quando desembargado. 

21.3.17

O difícil sexo fácil

(Variações em torno de uma fotografia do Porto Eros 2017)

A fêmea exposta
sem pudor
deitando ao olhar outro
entranhas sem peias
contorcionista
(disparando febres másculas)
lasciva
provocadora
perdendo a roupa
até ganhar a alma
a alma despudorada
ou apenas a alma sem franquia
na generosidade maior
da entrega no palco do desejo
vociferado pela turba
patrocinado pela turba
em pré-êxtase.
A fêmea que dizem fácil
para outros
portadora da mais difícil função:
joga
o jogo inato
da condição dos humanos
da condição dos animais
sem distinção.
Do sexo prometido
do sexo sem fim
do sexo mestre
da luxuria que reduz o resto a nada
do sexo de onde tudo provém.
Dádiva inteira
consumida pelos olhares à espera
da turba que a devora
o olhar afiado
sede nas línguas destravadas
no impossível refrear do entumecimento
do sexo larvar
sexo a vomitar pelos olhos
ou através dos olhos o sexo atirado ao corpo
que é pouco para olhos tantos
como de animais caçadores na selva
de atalaia à indefesa presa
todavia
caçadora silenciosa
num paradoxo cautelar.
O olhar atento
as mãos trémulas
impacientes
sedentas de corpo
um ou vários
na concavidade que se entrelaça
no dançar lúbrico
que incendeia fantasias sinalizadas
no olhar fundo sem fundo
como se no olhar coletivo
uma centena de sexos dele saísse
em estupro consentido.
A coreografia do desejo:
e quem não tem desejo
quem não quer o sexo forte
sexo destravado
sexo
na pessoa de uma pessoa outra
que se não tem
e depois se tem na ponta afiada do olhar
do olhar que bebe o sexo oferecido
na régua impassível
onde as regras esquecem tempo
onde o redil celebra rivalidades
e a fêmea causadora
nada no tudo que oferece?
Os varonis
que parecem tresloucados
macerando na ardósia por diante
ousam o palco
que nem seja à frente dos demais
na orgia indefetível
que manda no desejo desarvorado.
Acusam a insaciável fonte
de onde fruem imperadores
(ou em tal estado se inflacionam).
Há em todos aqueles braços estendidos
suplicando por um toque no corpo exposto
a embriaguez não frívola,
ou como dirão os padecentes do pudor:
o pecado sublimado
no pior rosto da animalidade humana
(ou da humanidade animalesca,
ou na desumanidade bestializada
– à escolha).
Só se não sabe
quantos sacerdotes que assim protestam
se resguardam à degenerescência
no silêncio do quarto solitário
engolindo o seu vómito,
ato contínuo,
no embaraço da falsa pudicícia.
E a turba
em coletiva alucinação
prossegue a valsa
em crescendo
removendo os véus aos freios sobrantes
por dentro do ergástulo da imaginação
a compasso com a função
em cima do palco
na perpétua sacralização da mulher
na perpétua mulher tornada objeto.
Até que o sexo
de tanto o ser
ou de tanto emasculado em derivas onanistas
ou o sexo de abusivo reporte
deixa o seu préstimo perdido
em brumas gastas.
E de um promontório esquecido
nas cinzas depostas nas costas da função
cuidados zelados em papel timbrado
contra a mastodôntica, perene linhagem
dos falsamente puros
e dos de degenerescência acusados,
deixa-se de saber a pertença.

#164

Já há livro de elogios
(no estabelecimento comercial).
Pouca serventia terá
e em havendo
sobra o embaraço
(não no estabelecimento comercial). 

20.3.17

Meteorologia

Era, talvez,
presságio
o frescor a meio da tarde. 

(Ia a dizer
que era, 
talvez,
presságio o frescor a meio da tarde,
mas arranquei o talvez.)

Fossem feiticeiras vetustas
a ler uma sina
ter-se-ia oráculo dantesco
pelos suores frios embebidos
na ventania súbita que embaciou o céu. 

Não havia feiticeiras
nem desdentadas mulheres
ou pedintes descalças em vestes negras
a povoar as imediações.

Se calhar
(e este é um talvez modestamente crepuscular)
era apenas meteorologia.