10.7.15

Do riso diurético

Faz de conta que fui ao médico.
Faz de conta.
E que o médico
inquieto com as maleitas
que eram minha apoquentação
mandou estudá-las.
Voltei ao médico quatro dias depois.
Faz de conta outra vez.
O médico, perplexo,
narrou com técnicos termos
as medidas da maleita que andava comigo.
O médico estava perplexo
mas não era por minha causa;
a perplexidade vinha afivelada
à patologia que era de outros
e pelos outros vinha contaminar-me.
O médico desenganou-me.
A doença pertencia a outros.
Perguntei
se nem pelo contaminante efeito
a patologia passava a ser minha.
(Não que tivesse ambição hipocondríaca;
é que tamanhos sintomas
causavam brotoeja a gente canhestra).
O médico olhou,
com o olhar perdido de quem está longe,
e quando o olhar regressou aos meus olhos,
lavrou prescrição singela:
rir,
rir com gargalhada sonora
demoradamente
um riso espontâneo
desfazendo urros que incomodam a um nada
com a grandeza de um sorriso.
Deixar a agnosia ser programa de humor.
E a todos os canhestros
agradecer
o (meu) sorriso perene.

9.7.15

Os nós desalfandegados

O marinheiro coçava a cabeça,
eram tantos os nós por desatar.
Era sua função.
Apetecia-lhe ser madraço
convidar o ónus à ausência
embolsar o sono por dentro dos olhos
cantar aos pássaros famintos
apreciar as varinas que descarregavam a faina.
Mas era mais forte que os impulsos;
pegou numa corda
noutra e noutra a seguir
e as mãos calejadas de destreza
desfiavam os nós impossíveis.
Ou os nós que pareciam impossíveis.
O marinheiro tinha as mãos ensanguentadas
de tanto porfiar nos interstícios dos nós.
Na manhã depois
o contramestre nem reparou nas cordas
ordeiramente depostas no convés.
O tempo seguiu a ordem de sempre.
E o marinheiro não tinha miradouro
para sonhos diferentes da arte que era sua.

2.7.15

O paradigma do gato

Gato poltrão que boceja
o pesar da vida invejada.
Os bigodes molhados
da água que o dessedentou
pingam sobre os comestíveis sonhos
de mandriões avulsos.
Gato poltrão,
que lições ensinas?
Que as sinas da gente transviada
são descaminhos dos fados outorgados.
Gato poltrão
que persegues a lagartixa
só para desenferrujar a preguiça:
mostra a tua pança
libelo dos manjares que alimentam
outras invejas.

1.7.15

As mãos só

As mãos atadas.
Algemas geladas que descem as mangas
sobre a noite.
O pensamento revolve-se
como se de ondas altas num mar agigantado
se tratasse.
Contorcido,
o pensamento,
parecia embrulhado num enigma,
retorcido.
A noite promete ser uma longa insónia.
A noite promete tempo talvez gasto em vão.

Pelo meio
a imagem da lua a caminho do ocaso
é intensa candeia que destrava o enigma.
O luar enfeitiçado despejou
uma árvore radiosa sobre o olhar embotado.
Uma árvore cheia de flores
constelação de odores quiméricos
como se uma barragem se hasteasse
entre o mar enraivecido e o corpo à mercê.

O corpo esbracejou
exalou as fantasias reprimidas
vociferou tudo o que havia engavetado
trinou as cordas vocais no silêncio da noite
e dedilhou as guitarras baças que ganharam brilho;
o corpo frenético bebeu o luar
e tornou-se majestoso imperador de todos os lugares
centrípeta peça de um equinócio novo
as rodas do mundo
– do mundo que calhava em interesse:
o mundo a seus pés.

Nesse instante
as mãos soltaram-se das algemas.
Desceram à terra
e trouxeram um pedaço dela ao cheiro.
Com a força tentacular do corpo
despedaçaram as algemas que pareciam de fino cristal.
As mãos depois vieram ao rosto limpar o suor
sentir o suor
– que era coisa que já levava saudades
de tanto o tempo sitiado nas algemas.
As árvores tinham todas a sua marca.
A lua tornara-se perene
até quando a luz diurna se fazia ao altar.
O pensamento
agora desembainhado do coldre
fruía desimpedido;
era como se viesse na proa de um navio
e o navio mandasse nos oceanos todos.

As velas desfraldadas tinham sede
da brisa fresca.
Tornavam-se acetinados estandartes
impregnados de pérolas e ouro:
a macieza do pensamento medrava
a distinta figura ímpar
enquanto as aves marinhas ensaiavam coreografias
sobre os respingos das suaves ondas do mar
e a figura imperial contemplava o firmamento
– imperador das águas daqui até ao firmamento
e o que houvesse por depois.

Já não havia lugares medonhos.
Já não havia proibidas palavras.
Nem esteios que parecessem masmorras eternas.
À boleia dos alísios
as mãos o mais separadas que pudessem
erguidas ao alto:
mostrando aos céus
já não terem algemas por freio.

À volta
apenas mar
um mar imenso e fresco
a fazer apetecer um cais algures.

25.6.15

A ira das vinhas

Aferroa o garfo pontiagudo
como se quisesses prostrar uma abelha louca
e traz ao de cima os olhos límpidos.
Mostra os dedos brancos
o rosto desembaciado e loquaz
os dizeres probos em palavras singelas.
Protesta contra os ladrões de sonhos
contra os melífluos atores que se entronizam
num altar vazio.
Desembainha a espada que estava de reserva
assesta os golpes que tiverem carestia
sangra os incapazes de serem íntegros.
Não te deixes embrulhar nas vestes infectas
não digas as palavras rombas
não rias quando te apetecem carantonhas
não faças o que entendes por contrafação.
Diz que não.
Não.
As vezes que forem precisas.
Porque, às vezes,
o não é o êmbolo da construção.
Não te empenhes nas vicissitudes que não são tuas
não sejas peão em mãos alheias
tolo peão num fartote de poder baço.
Destrava as palavras que vêm à tona
com o fermento das uvas fortes.
Não balbucies protestos vãos;
berra-os nas fronteiras da surdez
até que dos outros sobre medo.
Deixa-os serem contumazes
inquilinos de casas sem janelas
animais acossados pela proverbial imodéstia.
Arranja as cordas adelgaçadas,
o cadafalso onde marcam encontro os felisteus.
Atira-os contra a parede
vomita-lhes a ira sem freio,
a ira que eles desataram
e em que foste vítima sem vontade.
Açambarca as artes amargas que adestram algemas
e monta nas suas bocas um corcel que os cale.
Depois
quando o sono vier derrotar a insónia
repousa no bálsamo do teu leito,
orgulhoso pela retirada de cena
dos asnos que não passam de tirocínio de gente.
O sono aplaca a ira.
Já não precisas de mergulhar nas vinhas
de onde buscavas os rudimentos da ira.
Traz os bagos doces para o teu regaço
adultera a imaterial acidez,
fruto dos outros
num fruto que de ti faça temperado rei.
Num reinado
em que sejas suserano e súbdito
sem as teias engorduradas
com o aval de destemperadas reses.
Para seres o sol que vem de dentro de ti
deixando na opacidade as vetustas alarvidades
que medram no exterior.
A ira
não tem serventia.

17.6.15

Via láctea

Coabitamos um espaço sideral.
Pensamos.
Somos as suas estrelas solares.
Em carne viva.

12.6.15

Salgados

Na areia branca
depomos os lábios num cálice
de flores.
Na areia branca
as mãos trazem o sol
aos nossos salgados corpos.
Na areia branca
o tempo ausentou-se.

3.6.15

Memória futura

Vi as pontes que olhavam os rios
provei as cidades de diferentes sextantes
os monumentos que se guardam na retina.
Andei pelas quatro partidas
errando pelas estradas empoeiradas
navegando clandestino na marinha mercante
ou em voos ocasionais como se fosse Ícaro.
Saltei entre lugares
mas às vezes parecia sedentário;
o nómada em mim era apenas um disfarce.
Vi os padres de tantos credos
em preces outonais.
Desaguei nos odores exóticos
onde havia mulheres com pele escura
macacos a atravessar as ruas
lixo no chão
e todo o encantamento do palco diante de mim.
Ao deitar
dei comigo a tocar violinos imaginários
a soluçar com as saudades que não tinha
a ensaiar no mapa mental o destino para depois.
Vi mundos muitos
lágrimas vertidas pelos mendigos
crianças tristonhas a caminho da escola
e crianças em algazarra nos parques infantis
neve suave em tarde de invernia
e o trinar de pássaros diversos
sussurrando os segredos guardados nos lugares distantes.
Experimentei as pedras das cidades
senti o suor das gentes no caiado das paredes
levitei de mim em vista de pássaro
tomando as cidades dentro da mão.
Demandei estranhos
amesendei com quem calhava
aprendi com os humildes
e com os da soberba
(que os há em todos os lugares).
Conheci camas à dimensão da variedade de sítios
as irrepreensíveis e as que pareciam latrinas
lençóis de veludo e os que arranhavam.
Embolsei as imagens num canto da memória
sem tirar uma fotografia.
Escorreguei pelos abismos
nadei nos lagos de água fria
apreciei a coreografia dos cisnes esfomeados
anotei a flora variada
e o aroma dos frutos que nem dos manuais sabia existirem.
Vi o belo
a natureza domada pela mão do homem
e a natureza sem freio.
E o feio também.
Renasci uma data de vezes.
Congracei cada vida como se fosse a última.
Insisti nas palavras que não podiam ser adiadas
nos gestos que não são volúveis
abrindo os botões da camisa para dar o tudo de mim.
Arrependi-me.
Outras vezes não.
Aquietei-me
quando os olhos se refugiaram no cansaço
de tantos lugares demandados.
Não deixei de ser viajante
nem de ir aos lugares que não tinha inventariado
dar de comer aos peixes do lago
ouvir música em bares obscuros
tirar livros das prateleiras das bibliotecas
mesmo em línguas indecifráveis.
Tirei as medidas ao mundo.
Ao seu paradoxo:
se visto do espaço, um mundo exíguo
e, todavia,
em dando com os pés no chão
um mundo que interminável parece.
E tudo isto
viajando sem sair do lugar
apenas com os olhos bem fechados
soltando o freio aos sonhos
na imaginação que medra de um fértil nada.

Silogismo #1

A bondade
tira anos de vida.
Por isso
envelhecemos a preceito.

26.5.15

Negra cal

Que cal negra,
timorata,
teima em caiar parte do tempo.
Oxalá houvesse abutres
adejando sobre os algozes
da cal negra.
Houvesse ninhos fartos
uma população inteira
adestrada no genocídio
da cal negra.
Para que todas as alvoradas
fossem quadros radiosos
despejados do negro caiado.

25.5.15

Tira teimas

Braço de ferro
entre ouvir e fazer de conta.
O músculo adornado
arqueia-se ao silêncio.
O braço de ferro
é uma rolha ensarilhada
a cartilha boémia que disfarça angústias.
Dos erros de antanho
sobeja o almanaque diretor:
de que servem arrelias
se as cefaleias supervenientes
e as insónias malsãs levam vencimento?
O braço de ferro
enfeitado pela pragmática medida:
que se deite o braço musculado
à letargia.
O sal tenente é bom conselheiro.
Manda o braço decair nas apostas
até que o aluvião bucólico
seja ilustre companhia.

21.5.15

Boca de ouro

Confia na minha boca.
A boca que te abraça
no juízo louco sem palavras.
A boca que deposita
os beijos em forma de quimeras.
A boca dos lábios ferventes
à boca de cena em desvarios vários.
Confia na minha boca
máquina de soletrar as palavras
doces e salgadas
mas palavras âncoras.
Da boca em êxtase
que se encerra em silêncios
e se enfarta no santuário teu corpo.
Confia na minha boca.
Confia.
Na minha boca que sabe poemas
trave mestra de mistérios
árvore funda com raízes de framboesa
tapete de musgo onde tens leito.
Ou da boca sitiada por silêncios
que são apenas silêncios reparadores.
Confia na minha boca.
Com os olhos marejados pelo vento severo.
Com os olhos vendados pela confiança
de que a boca minha é são credora.

20.5.15

Marca registada

O peixe nómada
conheceu o sal de todos os mares.
Sulcou águas quentes
água frias
águas nem quentes nem frias
mais salgadas ou temperadas
fundas e de coral
lânguidas e tempestuosas.
O peixe nómada
não apreciava a quietude de um lugar.
Demandava mares outros
às vezes sempre sozinho
outras intruso de cardumes outros.
Conheceu peixes diversos
de feitios diversos
de confiança diversa
e olhares diferentes.
Falou as línguas dos peixes de lugares diferentes.
Tantas milhas náuticas nadadas
mas de cansaço não havia vestígio.
Fugiu às artes de pesca
fugiu de tubarões predadores
escapou à fúria de tufões
e aos hélices trovadores de navios mercantes.
Enredou-se em algas em refrigério das escamas
adoentou-se em mares fétidos
intoxicou-se com detritos de petróleo
vertidos por petroleiros insanos
extasiou-se nos mares de coral.
Mudou de escamas e de cor
aprendeu a olhar pelo estalão de diferentes mares
foi e veio com a vontade das marés.
Dizia uma lenda
que o peixe nómada era eterno.
E que a eternidade
vinha dos diferentes mares mostrados.
Peixes houve
que sabendo da fama do peixe nómada
queriam confirmação do atributo.
O peixe nómada desconversava
enquanto demandava a um mar diferente.
Havia sempre mares novos.

19.5.15

Conspiração do vento

Devem ter importunado Éolo.
O deus do vento
surdo aos chamamentos de Zeus seu pai
deitou as entranhas ao exterior
e desatou um vendaval solarengo.
Ninguém pode sair à rua
sem levar com refegas de vento
que interditam a respiração,
sem ganhar novo cinzelado ao cabelo.
Éolo mete a mão debaixo do mar estouvado
há ondas a trepar por cima de outras
e generosa espuma entre ondas desfeitas.
Bem prega Zeus
para aplacar o iracundo Éolo;
os filhos alforriam-se
os pais confessam impotência
e tirocinam consumições.
Levam com salpicos do mar na cara
mercê do vendaval que traz mar à praia.
O vento bolçado
que quase arranca arbustos pela raiz
é a impertinência do jovem Éolo.
Enfim convertido deus do vento.
Deus que deus é
não dá o flanco a deus algum
(nem que deus esse seja seu pai).

18.5.15

Elogio da loucura

Vozes embargadas
sorrisos lunáticos
medos tresloucados
prisões mentais
passeios apoquentados.
Loucos aprisionados dentro de si
como lobos esfaimados da liberdade
e, todavia,
pressentem o resguardo do manicómio.
Patologias e comprimidos
angústia interior de fantasmas dispersos
mãos trémulas que são queimadura da vida
noites em gritos lancinantes
por temor do que só eles sabem ser temor.
Loucos de si
e pela lente dos não dementes como nós
ou talvez tudo no seu contrário:
eles, ao menos, desconfiam que o são.
Congeminam um sentir genuíno
palavras desprovidas de peias
gestos sem decaimento:
uma afinal lucidez que devolve a demência
aos que de fora os olham como loucos.
E nem que as grilhetas da noite sussurrem ao ouvido
em prédicas canibais que só eles escutam;
nem que fantasmas comam o pensamento
e que de fora sobressaia pesporrência
dos titulares do pensamento arejado;
nem que os loucos estejam sitiados num cárcere
e por dentro das suas cabeças voem monstros alados
e nós, os orgulhosos da lucidez,
tacanhos de loucuras indecifráveis;
e nem que se joguem os mitos todos
contra as paredes dos manicómios
e se desfaçam na poeira singular
dos singulares gestos loucos
– nem contra todas as intempéries mentais
ou contra os arrevesados descaminhos em que se amordaçam
e menos ainda
contra a lividez que destempera os lúcidos do espaço:
sobram as algemas nuas
outrora alojamento de um louco sem freio.
Mas são os loucos que domam
os cavalos selvagens que povoam as paisagens
por mais que julguemos
(os arrogantemente desembargados de condições mentais)
que pegamos na crina do cavalo
e somos seu máximo tutor.
Dos loucos aprendemos o desapego
a filosofia dos corpos sem tédio
os esgares teatrais que só fazemos na intimidade
o indomável pensamento que segue
livre e destemperado
pelas fronteiras dos ilimites.
Até que nos alvores de um tempo imaginado
loucos o não sejam
devolvendo a impureza da loucura
aos tantos saudáveis que a escondem
debaixo dos saiotes que são refúgio covarde.
Pois por dentro dos sonhos inconfessáveis
sonhamos ser loucos.

13.5.15

O véu dos amantes

Amantes embriagados
com o antídoto do desamor.
Sussurram palavras quiméricas
enquanto embargam o sal do vento.
Amantes de rostos hasteados
compõem estrofes debruadas a ouro.
Perfumam os quartos
com impuras impressões digitais.
Amantes entronizados
com coroa trespassada por bondade.
Desenganam os arbítrios
à medida que trocam de pele.
Amantes que se amam na função inata
enquanto amantes que são.
Pois de amantes serem
congraçam a balsa dos delírios.

12.5.15

Louvores matinais

O velho da barba rala
em tendo ido comprar o leite do dia
e enquanto esperava que o semáforo desse passagem
entreolhou as pessoas à sua volta
que transitam na azáfama que ele deixou de conhecer
(méritos da reforma).
Passa um autocarro à pinha
e o chão debaixo dos pés é como tremesse.
Noutro troar, agora vindo dos céus,
um avião desce para o aeroporto.
O velho
à medida que desenriça dois pedaços de barba
indaga de onde virão as pessoas naquele avião
e se somam mais fortuna que as pessoas do autocarro.
O velho quase decai:
quase sente uma teimosia a esbater-se
quando, num ápice,
se adivinhou na distante cidade de onde viria o avião.

(Ele que nunca foi cinquenta milhas longe de casa
e sempre teve medo de apanhar um avião.)

O semáforo pôs-se verde
e pareceu que tudo parou:
ele era o único utente da passadeira.
O avião foi à sua vida
o autocarro também
e o leite lá se fez, tépido, ao pequeno-almoço.

11.5.15

Entardecer

Calculo
que a aritmética
e os demais sortilégios divinos
foram congeminados
numa esplanada com o mar
como pano de fundo,
ao entardecer.

8.5.15

Sapatos trocados

Pegou no copo de vinho
bebeu-o até à última gota.
Bebeu outro.
Três, quatro
a garrafa inteira.
Uma segunda garrafa.
Julgava-se, então, filósofo emérito.
Ensaiou a hermenêutica
de um poema mentalmente idealizado.
Sentia as palavras indomáveis
brasonado pela irrefreável criatividade.
Sentia os pensamentos que vinham
com a velocidade do vento sagaz.
Formalizou páginas a eito
sem cuidar de voltar atrás nos parágrafos.
Depois se veria a gesta
quando depois da alvorada
(e ainda imerso em cefaleias próprias)
a lucidez da sobriedade pudesse julgar
a lucidez da embriaguez.
Tinha medo.
Tinha medo que à lucidez embaciada
creditasse préstimo que julgava ausente
na lucidez sóbria.
Depois veio a contumaz interrogação:
como podia ser a lucidez embriagada julgada
pela lucidez da sobriedade
se as duas se amanham por diferentes medidas?
Não obteve solução para nenhum dos enigmas.
Nem voltou ao despautério do vinho excessivo.

7.5.15

Fogueira

Da fogueira em crepitação
um naco de madeira incensado
nutrindo archote precisado.

O archote empunhado
contra o ardil da noite madraça
trespassando a penumbra.

Revivesce, traindo a decadência,
num solfejo capaz
devolvendo a maciez da luz.

Todas as centelhas se embebem
por entre a rudeza do chão
retirando o corpo das trevas.

O archote, chave guardada
límpido farol sem capitulação
triunfando na maré plúmbea.