11.11.16

#90

Um rosto sem maçã
uma maçã sem barba
uma barba sem muleta
e a ginástica no armário.

10.11.16

Fundo do mar

Foi preciso ir ao fundo do mar
tocar nas estrelas depostas
perguntar à areia muda
sobre o sortilégio de ser.

Do fundo do mar
em demorada apneia
trouxe uns seixos dentro das mãos
algas arroxeadas agarradas ao corpo
e um sorriso que não conhecia.

Não vi as sereias desenhadas em fantasias
(pois delas não fui em demanda)
nem vi medonhas criaturas
ou grutas com sonora incógnita à entrada.
Vi a água profunda
peixes em sereno nomadismo
ao longe,
o hélice contorcionista de um navio mercante
ao longe,
sob o teto do mar
o céu disforme.

Sulquei algumas águas
provando do diferente sal que traziam.

Às vezes
o fundo do mar ilustra os segredos
que olhos nenhuns
em terrena digressão
conseguem abraçar.

9.11.16

Romagem

As escadas íngremes.
Uma medida de coragem.
Tiro os dados à sorte
(ou a sorte contra os dados).
Debaixo da pedra
a centopeia esperneia um destino
ao acaso.
Debaixo da pedra
subo ao céu estrelado:
amparo as costas do dia singular.

Todavia
uma centelha fugaz
estraga a escuridão da noite.
Precisava da escuridão.
Precisava de saber que sem luz
as portas se entreabriam
desmontando as ruínas à espera.

As pessoas falam de ordenanças.
Falam de mandamentos
como se houvesse carestia de vontade.
Eu puxo lustro à vontade que é minha
destruo os mandamentos e as ordenanças.
Posso estar na mira dos atiradores furtivos,
mas não me importo.
Tenho confiança
o céu estrelado é meu mandamento bastante
um seguro cais onde o corpo não se cansa
com pedras à mão para o caso de precisar.

Em minha defesa
alego os ancestrais líquenes
onde ficaram vertidos os votos vindouros.
Alego
páginas a eito
algumas ininteligíveis
outras (talvez)
um rasgo de uma coisa qualquer.
Alego em minha defesa
a pureza das palavras
embebidas no peito desembaraçado.

O corpo prepara-se para as escadas.
Uma vertigem incessante não o demove.
Catalisa as denúncias das coisas irrisórias,
desprende-se do chão húmido.
Ninguém sabe o lado oculto das escadas.
Não importa.
Depois da madrugada demorada
as mãos acertam contas com os lábios sedentos.

8.11.16

Framboesas

De um vaso soalheiro
um punhado de framboesas à boca.

De olhos fechados
como se com eles fechados
todo o sumo das framboesas,
num caudal semântico,
combinasse com uma concentração pura,
e o suor afirmasse a doçura decantada.

Uma medida bem tirada
do sangue vertido no vaso das framboesas.

Simples as coisas que valham
no parapeito liso de onde o resto
se desfaz em pequenos fragmentos ao longe,
e tudo se resgata no sentir forense
das espadas que rasuram a usura.

As framboesas são hipoteca dos sobressaltos,
ganham deleite até serem matéria gasosa.

Nelas se esconde o título arpoado
no dorso de um cavalo hirsuto
contra as persianas que,
desfeitas em vestígios disformes,
jamais ocultam o teatro plano
onde ensinam os artesãos das framboesas.

#89

Havia árvores inclinadas
néctar prometido por deusas
embaraços em capitulação
e palavras desejadas.

7.11.16

Radiografia

Deixo o peito descarnado
à luz aformoseada dos moinhos.
Num ápice
entre embrulhos rejeitados no restolho do natal
comprimo os olhos cansados contra as pálpebras
e retenho as lágrimas.
As lágrimas,
contudo,
marejam emoções desatadas,
os apóstolos entronizados na lenha seca
rosnando contra sua mofina.
Deixo o peito descarnado
contra vitais, impensáveis entidades alvares
que empunham bandeiras sem cores
pedras vulcânicas adormecidas
um cálice de vinho podre,
já sem serventia.
Pela alvorada
penso ser um pássaro que voluteia,
errante,
entre os ventos tremeluzentes
e as algas atiradas pela maré enxurrada.
Penso
que não devia pensar
nas alturas em que o pensamento 
se vira contra mim.
De que me queixo,
a não ser de um pensamento voraz
um pensamento foragido
um pensamento prolixo
um pensamento que se consome por dentro?
Os degraus da enseada
apanham as cores sortilégio do entardecer.
Fico sentado nos degraus
as folhas outonais batendo no rosto
e as mãos frias pedem refúgio,
enquanto as nuvens relapsas ciciam
e os automóveis invadem a rua.
Deito o peito
descarnado até ao osso
e fico à espera da noite loquaz.
Para saber
se são harpas que entoam músicas
sem hidras por perto
ou se um cais escondido sussurra ao ouvido
sobre o lugar onde fundear os ossos cansados.
A pele macia,
talvez,
a prova que o peito voltou a ser um só
inteiro e sem compunção.
O peito descarnado é de outrora
refeito por musa que me traz pela mão
em doces acordes de harpas sem fingimento
em estrofes que trazem a alvorada
e dissolvem os lugares pretéritos,
os lugares baços e sem espécie.
Uma musa
em peito abrigada
devolveu a carne ao peito emendado.

5.11.16

#88

Ai, se eu soubesse
tinha partido o relógio
nas trombas do tempo.

4.11.16

Manifesto anti lugares comuns

O jardim suspenso
é porque ficou adiado?
Tiram os dentes podres
e sobra boca;
ao menos, podem falar à boca cheia.
Um endemoninhado mete a faca no alguidar
e descobre a sanidade
ao descobrir o vazio do alguidar.
A faca,
deposta na imensidão vazia,
limpa o sebo onde ficou a loucura do homem.
Agora é um bom partido
(certificam as alcoviteiras);
e se partido é,
em não sendo inteira coisa,
como diz alguém dele ser boa rês?
Talvez se tenham enganado no mercado
e as folhas enrugadas
ofereçam um chão irregular
onde os pés se amedrontam
e o pensamento emagrece.
Dirão
em contagem de espingardas
que o diabo está nos detalhes,
como se o diabo
coubesse em coisas tão pequenas
– fosse desse modo,
quem fugia do diabo
como quem foge da cruz?
(Hipótese inconcebível para um crente,
a quem a morte não tira o sono.)
Talvez sejam os mesmos
que contam com as espingardas que contam
para dissolver os diabos subjacentes.
Só depois do morticínio
podem entrar no jardim do Éden.
Que não está suspenso:
não foi repreendido por mau comportamento.

3.11.16

#87

Num quarto apertado
um elogio
(talvez sincero).
Passei a odiá-lo
como se odeia o sebo de uma enguia.

Piedade

Aprendi com os prantos:
a misericórdia plasmada em pele aberta.
Cuidam os olhos marejados
da piedade alheia
em vez de serem os próprios
fautores de seus remédios.
A espécie está embebida numa consagrada
generosidade:
empalidece a boçalidade
quando os olhos se humedecem
em lágrimas adestradas por lágrimas outras.
Não falta muito,
a espécie acaba chorosa.
Náufraga de tantas lágrimas copiosas.

2.11.16

#86

Fora de água, a cabeça aturdida
um coice lisérgico
e a véspera de um amanhã desamparado,
funambular.
(Até parece que.)

Livro aberto

Era um livro aberto
as páginas escancaradas
gaiola desembainhada dos logros
rutura sem dor
mão sobre o dorso do mar,
acalmando-o
páginas sem rosto nem linhas para escrever
drama sacrificado
aposta contrariada no húmus infértil
ou apenas a fantasia documentada.

Era um livro aberto
sem nada lá dentro.

1.11.16

Do manicómio

Provavelmente
a loucura batia com os dentes
e a pele anestesiada abraçava-se ao afluente.
As manhãs sem tempo
dobravam-se no xisto amparado
sem desnorte que se visse nas redondezas.
Mulheres de meia idade
estendiam a roupa na varanda
enquanto um talvez ministro passava
estrepitoso
com a demais comitiva ruidosa
e um gato imperturbável dormia no parapeito.
Sentado,
sem pressa,
lia o jornal com vagar.
Amanhã seriam notícias iguais.
A repetição da loucura sem rosto.
Da loucura que ninguém repara.

31.10.16

O pirata

Um pirata não furtivo
paredes-meias com as conceções gerais
vertidas em páginas de manuais
declarou o motim
contra os desapoderados do amor.

Um pirata altivo
sem temer descer às coisas banais
desafiava mil comensais
a perderem a indecência do carmim
perseguindo os condoíveis do desamor.

O pirata não esquivo
dando caça aos covardes dos lodaçais
sem saber que terçavam armas desiguais
desfez-lhes as vestes serafim
e contou lanças sem temor.

O pirata afirmativo
depôs da piedade os serviçais
sem esconder em panos finos os punhais
pois não almejava ser querubim
nem patrono do hexa amor.

29.10.16

Paredes cansadas

Paredes cansadas
ou o morticínio das tintas
furtadas à pintura.
Desarte não
apenas fadiga
paredes envelhecidas
carcomidas pelo tempo algoz
afeiam a cidade
triste.
Oxalá método
em vez de alucinação de ideias
ou pregões-preces pelos descamisados.
Paredes cansadas
opróbrio de tribunícios sem palco
desarquitetos a soldo
prisões sem fuga para os vizinhos da cidade.

28.10.16

#85

Gritavas ao ouvido
as ácidas, bolorentas palavras
à espera que se decidisse pelo abismo
e dormias depois um sono ermo
e a eito.

27.10.16

Carbono

Não seriam remédios
a colher no alto das minhas mãos.
Não serias remédio
para as feridas abertas em demanda de cicatriz.
Não seria um remédio
a dar às doenças em lenta mortificação.

Seria, talvez,
um animal ferido
irado
desvairado
cavalgando na onda que sangrava
desenhando óbices severos
sem o embelezamento dos sentidos atilados.

Destruí os campos planos
e as flores entretanto desabrochadas
e levava em mim a leveza distópica
de um urso cercado que não aceita ser presa.
Convenci-me que era um ciclone
e que tudo em redor tinha medo de mim.

Terão tremido os montes
ao saberem do meu grito excruciante.
Terão os rios chegado vermelhos à foz
lavando o sangue vertido.
Ninguém soube.
Ninguém cuidou
de arranjar os remédios precisos.

O dia depois
seria um dia como os outros todos.

26.10.16

Papeis trocados

Trocava as pedras arrefecidas
por uma tocha apagada
mesmo sabendo-a sem serventia.

Trocava um espelho baço
pela embocadura de um rio servil
mesmo sabendo-o anestesiado.

Trocava os dedos amarelecidos
por uma cunha à medida da mão
mesmo sabendo-a uma quimera.

Trocava as balizas tortas
por um arranjo severo das pautas
mesmo sabendo-o improvável.

Trocava as rodas finas
por uma estrada sinuosa
mesmo sabendo-a silenciosa.

Trocava o que sabia não ter troca
por algo que oxalá entoasse um pranto
em vez das ufanas estrofes de um pernalta.

Trocava
em mercancias até sem valor
o desmame de uma alma embrutecida.

25.10.16

#84

O guerreiro bebe o sangue do inimigo
(dizem).
E sangra as lágrimas que suas seriam
se em vez de predador
presa tivesse sido.

Olhar desembainhado

Atirei o olhar
por cima dos montes erguidos.
Deixei-o embebido nas raízes
a saciar-se nos mananciais escondidos
das profundezas do chão.
Atirei o olhar
no jogo simples das palavras sopegas.
Deixei-o medrar
na superfície das ondas calmas
ou na profundeza de um piano gelado.
Atirei o olhar
contra as janelas encerradas
à espera que o olhar delas fosse tutor.
Sem saber,
o olhar veio de regresso
com as mãos cheias de poros aturdidos
na embriaguez de um conhecimento cheio
com anotações embaciadas nos dados jogados
tirando as cordas atadas contra paredes gastas
desgastando os ergástulos com freios
sobre o porvir.
E o olhar refez-se
por dentro das bainhas deslaçadas
reinventando tudo
no ponto de mira de um olhar
não furtivo.

24.10.16

#83

Está alguém à escuta?
Consegue ouvir as cores desmaiadas
de um olhar contumaz?
Alguém à escuta?

Mapas

Mapas circundam a aurora boreal
voláteis,
como as luzes dançantes.

Redesenhamos os mapas
no dorso de um papel juvenil
carregando tinta-da-China
nas linhas que temos por fronteiras.
Decoramos os mapas.
Deixamo-los voar sobre as cumeadas
cuspindo furor em tábuas envernizadas
no contratempo de um tempo virado do avesso.

Mapas muitos
em ordenada forma ciclópica
amparos exigidos na aridez demandada.
E nem os deuses dos algoritmos,
(que sopram o luciferino progresso)
na excitação das ferramentas reinventadas,
devoram a caução dos mapas.

Mapas:
auroras boreais
mares longínquos
desertos inóspitos
cidades emaranhadas.

Ou a palma de uma mão.
Ou paisagens apenas mentais.

Mapas que cristalizam fados escondidos
e embelezam os dedos perdidos
que açambarcam um método
para um fado dardejado nos limites de um mapa.

23.10.16

Adiamento

Seriam os adiamentos bons conselheiros?
Se o fossem
talvez os relógios mentissem
e todos os pontos alinhavados no tempo
ditassem um quimérico esplendor vago.
Todavia,
descobrira-se que os relógios fingiam.
E todos nós caímos no ardil
da apressada maquinação do tempo
sem darmos conta
do adiamento de que fomos vítimas.

21.10.16

Frutos imorredoiros

Paga-se em juros
o apuro dos frutos caiados pelo sol. 
Consagram-se os rostos perdidos
como se fossem os heróis 
de um planalto corrosivo. 
Nada é perdido nos cestos gastos
onde os frutos se acamam. 
Nem as pequenas pedras,
despedaçadas de grandes rochas enquistadas,
choram às lágrimas vertidas em gotas de chuva
pela metade da terra lamacenta que as cobre. 
Frutos serão
até a uma reencarnação próxima
quando frutos semelhantes
vierem no viço da colheita.
Sem esquecer os braços
que resgatam os frutos
e devolvem nudez e melancolia 
às árvores. 
E diz-se
de boca em boca
que as iterações não têm fim
no desembaraço das leis sem explicação. 
Numa anestesia global
e todos maquinalmente aprendizes dos passos iguais
de um torpor sem pesares. 
Contenham-se com os frutos fulgurantes:
os que da sua apanha cuidam
e os que com eles se saciam. 
Do resto
não há preces em registo selado. 

#82

Eu sabia
que o gato poltrão disfarçava
num entreolhar polido
a atalaia do mundo.

20.10.16

Compêndio

Saltei a espuma do tempo
cavalgando na inóspita rua sem fim
que amadurecia na lua sem rosto.
Queria sorrir e consegui.
Sobre a aresta de uma onda domada
juntei os impactos do mundo
numa folha de papel,
sem a amarrotar
sem os desarranjar.
Disse
aos ventos sem rumo que alisavam a onda
que sabia ser marinheiro mesmo sem mar
pois inventei os palcos perenes
onde tudo se transfigura.
E o mundo inteiro
(ou pelo menos o que importa considerar)
veio às mãos minhas
sedentas de o albergar.

19.10.16

Viagem

Uma légua de caminho
a paisagem atarefada desfila pela janela
e o troar do comboio toma lugar
no mapa dos ruídos.
Uma mulher desconchavada cambaleia
contra os solavancos do caminho.
Dir-se-ia,
contrariada
aprisionada no comboio e ao seu destino.

Os olhos cansados procuram refúgio
por dentro das pálpebras.
O maquinal troar do comboio não deixa.
A paisagem é vertiginosa.
Leva consigo o sono vadio.

É como uma viagem pelo tempo
e a roda do tempo que passa,
voraz.
Já diziam os sedentários:
estultas são as viagens
quando um pedaço de paraíso se prende
à bainha das calças.
Discordo.
As calças atadas ponteiam os pés ao chão
o pensamento perde em antiguidade
os olhares ficam em dívida dos seus múltiplos.

O estorvo dos lugares mesmos
pede mapas e viagens e paisagens
numa cornucópia de lugares,
contrariando exíguos, ermos lugares
onde o corpo padece em sua avareza.
Lembrando
para memória futura
que a madurez se entretece
na miríade de lugares.

#81

Não é por acaso
o promontório que alberga sombras
se não no sótão
onde se desperdiçam pensamentos.