27.11.10

Os contrafortes da impossibilidade


Ah,

se ao menos no ouro do dia

não houvesse ocaso;
se as árvores,

na sua impossível imortalidade,
trajassem sempre douradas folhas;
e se os rios não derramassem
todas as lágrimas no leito marítimo:
um lugar qualquer,

onde se esconda

o santuário da perseguida
impossibilidade.

25.11.10

Da harmonia

Vetustos
os lados escuros
as caras repetidas
as sombras de outrora.
As memórias,
na sua inutilidade.
Agora
o chilrear dos pássaros
as rosáceas avivadas das crianças ao frio
o embotar das árvores outonais;
a doce pimenta da existência
em arpejos melódicos.
Os olhos que fitam o horizonte.
Está sol todos os dias.

14.11.10

Ósculo


Às duas por três
os lábios em colisão.
Saboreiam o seu sal
perfumam-se com o seu veludo.
Não vêem,
os quentes lábios,
que aos olhos não é dado a ver
o êxtase que se consome
nos aveludados lábios em fusão.

13.11.10

Life ever since


Will life be back in – you dare to ask.
Then
in the aftermath of a long breath of pure air
you ask whether life
ever ceased to be.

10.11.10

Mar de fundo


Olha o estandarte
o estandarte da folia,
aperta-o contra o peito
e foge
foge dos cemitérios
onde não jaz vida.
Sopra as pétalas diante
a tua embriaguez divinal;
resolve os condicionais verbos
festeja o funeral de todos os oxalás.
Atira-te de cabeça
ao que tudo compensa e passa diante dos olhos.
Não o deixes numa letargia suicida.
Que os dias escassos
são insultados quando passam,
errantes,
como se fossem um navio fantasma
à deriva
sem capitão nem marinheiros.
Mergulha nas águas frias
afogueia-te nas braçadas torpes até ao navio;
faz-te capitão dele
toma-lhe o pulso com uma têmpera indomável.
E depois,
depois
enfeita o convés com as luzes engalanadas
abre as outrora enferrujadas portas do convés
aos convivas
que querem ser parte contigo.

(Funchal)

No cais


Os barcos no cais
esperam.
A ímpar paciência
embota-se no musgo que se pega ao casco.
E, todavia,
não se impacientam
com as mesmas águas lodaçosas
que os banham na sua constância entediante.
Um dia
serão lançados à fúria do oceano aberto.
Para se saciarem numa qualquer glória
projectada.
E que interessa se esse lampejo é pueril
a uns olhos outros,
se só contam os ensimesmados barcos
no convencimento de um fausto
que só a cada um deles é dado?

(Funchal)

For someone’s teardrops


Wash away the teardrops
those salty tears that melt down
the icy feelings.
Do let them flow
as if they were vanishing rocks
that cut all over the edges
and burst the waves of a furious ocean.
At the same time
gather the unravelled places
where all the colours turn into their own white.
By then
you will rule all over the places.
Learn with the tears:
any drought is worse
than the perhaps acid teardrops
that your eyes keep on telling.

(Ponta do Sol)

7.11.10

Podem parecer ruinas.
Pode parecer que o chão já não existe
sob os nossos pés.
Às vezes,
um mergulho no abismo.
Um tira teimas
uma torrente de provações,
a constante
que ora redefine o equilíbrio
ora faz desabar o chão.
Deixando o corpo metido na sua fragilidade.



(Funchal)

12.5.08

Olhos fechados, uma fortaleza

Só uns olhos fechados
no dealbar da escuridão
onde se joga toda a confiança.

Na penumbra que se insinua
repousam os olhos
resguardam-se em seu colo de ternura:
um ombro, seu ancoradouro gentil.

Não queria
tecer a luz que irrompe na alvorada;
não queria
destruir a escuridão onde tudo se esconde
sobretudo o que não merece atenção dos olhos.

Queria ter assim,
toda a noite,
o ombro protector
contra as investidas de todos os demónios.
Por os demónios possuídos de malvadez
adejarem na luz do dia
vindos de esconsos promontórios
onde vigiam os desassossegados espíritos,
as vítimas que se seguem.

Ao menos no remanso da escuridão nocturna
cegam-se, os demónios.
Só então deixam de ser inevitáveis
só então
exangues da força sobre-humana.

Aos olhos cerrados pela espessa camada da noite
vem o refúgio.
O refúgio
das conturbadas ondas do dia
as que semeiam a desordem e o medo
e apagam vestígios de bondade.

Os olhos fechados num sono iludido
o tear onde ondeiam plácidas águas
lá que a maresia tranquila povoa o sossego,
o tão breu sossego.

À noite dormem os demónios
no seu contrário de morcegos noctívagos.
Os segredos da serrania intensa
nos seus contrafortes escondidos do luar.
Os olhos vagueiam nas ondas circulantes
ciciam o seu esplendor
imersos na profundidade de sonhos cheios de cores.
As cores
que só a imersão num banho de trevas
revela.

Os olhos permanecem belos
de uma serenidade tão estranhamente bela.
Pelos olhos assim cerrados
repousados no meu ombro
as ameias mais altas da confiança:
todo um mapa que tacteio

e em que confias.

4.3.08

Heliocêntrico

A cabeça pousada entre as mãos
fita a escuridão que se projecta no chão.
Não são fantasmas
nem ventos empoeirados
ou aves de rapina que cerceiam a voz;
uma espessa nuvem
clarividente na antítese do negrume
distingue-se nos olhos cerrados.
Uma lança afiada tomba,
estrepitosa,
deixando o seu gume ponto cardeal.

O desassossego providencial
resgata o corpo da inerte função,
já sem a embaciada luz
de onde tanta incerteza se incensou.
As pontas dispersas
as páginas soltas
quadros cavernosos
um uivo de palavras indefesas:
tudo no seu amplexo desassombro
cada golfada de ar
um ruminar em pastos estéreis.

Uma misericórdia lentidão
por onde os ossos se acotovelavam, imensos
e uma covardia de só recusar a letargia indigente.
Havia a cabeça repousado na escuridão
metida entre os quadris
escondida da sua própria fúria avassaladora.
O mergulho aos confins de si
inesgotável, febril manancial de se saber ser
ser
importunado pelas certezas incómodas
mas certezas, porém.

Recentrava os eixos que se geravam em seu equilíbrio:
não era fuga da amálgama revelada pelos olhos
nem a dolorosa ascensão
ao castelo que encerrava curativo exílio.
Ao contrário:
a urgência de ter os olhos bem abertos
perenemente bem abertos
guerreiros ao sono envenenado
que trazia,
com a alvorada,
o adocicado sabor das pétalas embutidas em veneno.

Queria muitas vezes repousar a cabeça nos quadris
remetê-la à escuridão forçada:
não eram as algemas do pensamento a esbarrar,
indomáveis,
contra o peito sangrado;
era como se o navio recolhesse âncora
sulcasse águas jamais tragadas
com a espuma a salpicar
o altar onde tudo renascia.
Deixava de contar tudo o que fosse
inteligível, sensorial, colorido.

Havia uma suave neblina
a escotilha das portas tentadoras
por onde o cêntrico lugar
temperava desbragadas emoções.
Um pináculo tão nítido
ascendendo entre as gotículas que resguardavam a neblina.

E nem que o navio julgasse vogar em círculos
em perpétua revisitação dos gastos lugares;
nem que os olhos
se demorassem num firmamento tão familiar;
ou as palavras, sempre as mesmas palavras,
entoando os cânticos que se esgotam em seus acordes;
podiam até os pés lacerados
de tantas pedras pontiagudas
consumir-se nas suas feridas ensanguentadas;
E nem que os dias em contemplação
inaugurassem a solidão;

Nada
nada por conta do retempero interior
das águas contagiantes
em palpitante trajecto desde as entranhas
lavando as veias das cores que as tingiram
torrente varrendo todas as impurezas.

Até que tudo sobrava na sua nitidez refulgente
numa cor não substantivável.
Um coro ecoava ao longe
melodias de trato encantador.
Levitava, por fim
na sua heliocêntrica condição.

14.1.08

Os bárbaros devastadores

Das catacumbas
ascendem pelos poros humedecidos
rastejam, insinuantes,
amensendam com a boçalidade impante.
Gargarejam alarvidades
sorrisos canhestros
gargalhadas logo vomitadas
toda a babugem repelente
osgas fugidas das profundezas onde o breu
e só o breu
tem trono.

Passeiam-se pela juventude
esbelta e frenética.
Pela juventude antitética de ansiolíticos
desvario constante
atropelos sem cessar
gritaria,
muita gritaria
e desdém em redor.

Mas não:
venho, ao arrepio das convenções,
transigir uma geração;
militante recusa
em esboçar moralidades bafientas
que crucificam levas de adolescentes
e já não adolescentes
no muito sangue fervente na guelra.
Espectador anónimo, apenas
como se do promontório
(e seguro)
andasse testemunha,
fiel dos arroubos intempestivos
do desinteresse lancinante
da vozearia inconsequente.
Ou talvez não:
da vozearia
grito de alma
despedaçado porvir
que fermenta a dissonância do mundo.

A dedo erguido:
os mais velhos
culpados pelo estado de coisas.
Os mais velhos:
deixando os fragmentos
que hoje são o firmamento dos novos;
fautores dos bancos de ensaio
onde deitaram, cobaias, os novos;
sacerdotes do experimentalismo perene
de desastre em desastre
todo um oceano
– um vasto oceano –
de devastação
sementeira de pessimismo loquaz
onde o céu se demora na sua escuridão
o sol emoldurado num museu que sagra o passado.

Os mais novos
nada desaproveitam.
Ciciam os ciúmes de outrora
de um qualquer outrora mais fértil
dos idos que lavraram a métrica do empenhamento.
Hão-de protestar moralistas encartados:
que os novos são todo um oceano
de incultura e desconhecimento,
a pá que levanta a terra da sepultura
a sepultura da bárbara condição que arremete.
E dirão:
os novos tingem as convenções
com os dedos retorcidos
desalinhando puro egoísmo atroz
cicuta que tudo consome à sua passagem.

Eu
niilista sem remédio
desminto-o por instantes:
retemperado das caves imundas que me acolhem
desconfio
que os novos são o contrário da sua imagem dantesca.
Por momentos
é neles que revejo a minha redenção.
Que interessa a estética ininteligível
a língua assassinada
a abúlica expressão diante do mundo,
como se fossem as pedras inertes
recebendo de braços abertos
as ondas que nelas se despedaçam.
E que interessa
ajuizar gerações pelo diapasão hermético
das idades diferentes,
houvesse um compasso acertado
misterioso caudal por onde vogam as águas separadas
os velhos e os novos em camadas distintas.

Resisto:
os novos não são bárbaros implausíveis
bandeiras hasteadas da boçalidade grotesca;
nem criaturas disformes
pérfidas existências onde nidifica o nada
ou placentas mal digeridas
que resguardam maldade e ignorância.
Desenganem-se os que os olham
simples espuma que se esvai ao leve sopro.

Às vezes
deslaço-me do pessimismo antropológico.
Pela mão dos novos
hediondos
sarcásticos
intragáveis
incompreensíveis
retrógrados
impensáveis,
violentos, até;
mas novos, porém.
A longa aura diante dos olhos
os campos que vão até ao horizonte.
Ou, porventura,
apenas inveja pela idade ainda imberbe
da inocente imaturidade
um assomo de nostalgia elevando-se
ciente que o tempo na sua abundância
pertence aos mais novos.

Porventura
o optimismo antropológico datado.

8.1.08

E tu serias

Dizias

haver abraços irrepetíveis

beijos só no instante em que se esvaem

um rosto amolecido pelos afagos

uma cintilante avenida diante dos olhos

- olhos teus

que por mirarem os meus

faziam de mim

miradouro do mundo.


Dizias

que só há uma entrega

as mãos dadas, o combustível dos corpos

e os corpos sedentos

fogueira dos seus complexos desejos

- os corpos na sua síntese

os corpos em coreografias sensuais

alimento e altar

da combustão estrelar.


Pela manhã dizias

que o mundo podia acabar hoje.

E eu

perplexo

sem saber se por metáfora falavas.

Doce a água do regato

O regato escorre entre o musgo

planam as águas frias

sob o testemunho das nuvens

onde ecoa o sussurro das águas.


À noite

só sobra o sussurro

o sinal da ténue água

imparável, mas lenta.


São as pedras, imóveis,

que indagam o destino das águas

fugindo pelas fragas

rompendo entre as rochas que as acamam.


As pedras, estáticas,

diante das águas que rumorejam

os dias ausentes

na sua imóvel condição.


Oxalá se movessem

nadassem pelo leito perfurado

andassem com as águas lentas

até um desfiladeiro, ou estuário, aportarem.


Desenganam-se, as pedras

presas à sua imóvel condição

amordaçadas pela raiz inerte

seu esteio inamovível.


Só sonham, presas ao lugar

sonham com viagens fantásticas

levadas ao colo pela água transparente

só para conhecerem destino outro.


Como se, pedras estáticas,

se tornassem gélidos seixos

abraçados ao rumo das águas esquivas

colina abaixo até algures.


O algures em que militam

um lugar qualquer

quebrando monótona impassibilidade

diante dos dias sucessivos.


Nem que seja

para esbarrarem no precipício

onde a cascata se despenha

na espuma da raiva contida.


Ou que seja

para se deitarem no fundo

de um imenso lago

onde as águas, cansadas, repousam.


E que seja

o lugar de outra sepultura

o algures prometido

nos sonhos acordados.

2.1.08

O poema combustível

Os aplausos ensanguentam as mãos.

Não se cansam

diante da gloriosa expressão das palavras

ecoando

insinuando-se

entranhando-se

onde nem cirurgiões levam bisturis.

Há uma magia das palavras

vomitadas no seu fogo

as palavras-alimento

melodias graúdas que escorrem pelo ouvido

e levitam nas paredes da garganta.

Vêm aquecidas no seu fogo:

são a combustão do espírito

a depuração até das gelificadas armaduras

jamais orgulhosas da sua insensibilidade

- perdida.

As cores admiráveis

consagram os aplausos:

tecido aveludado

onde o poema incendiado repousa,

complacente.

No veludo onde as chamas se aquietam

o poema redobra a sua grandeza

cavalga nas ondas sopradas por um vento vadio

cresce

e mergulha sobre os corpos.

Na combustão audível

desfaz a nostalgia dormente

traz os corpos da sua letargia.

É o poema

combustão dos corpos

a centelha dos músculos apiedados.

E os corpos

entregam-se numa furiosa peregrinação:

batem às portas do pensamento

expelem as lavas das interrogações

incomodam-se com a placidez.

Arremetem sono dentro

e despedem o sossego

- imparáveis na excitação do conhecimento.

E o poema,

intemporal.

O poema dito e lido

legado perene com as cintilantes âncoras

do navio museu sempre ancorado no cais.

Intemporal

como o feixe de luz,

irradiação das chamas que latejam

a armadura onde se recolhem as estrofes do poema.

O poema lancinante,

poema matriz:

nas palavras entoadas

tudo seria ilusão

(a ilusão, ao menos)

dos fragmentos da bondade indescritível.

As pessoas seriam felizes

os rostos irradiando uma alvura leve

as mãos sem as suas rugas

os corpos alindados

despidos de maleitas.

Só haveria tempo e lugar

para esboços da plenitude interior;

a sua antítese

logo fulminada por um raio cósmico

que chegaria,

alado,

dizendo que os felizes estavam garantidos.

O poema

a combustão de toda esta frenética bondade.

Pelo poema

tudo tingido

com as cores que embelezam os dias

sempre uma luz clara

o farol arquétipo.

Nos vastos campos habitados pelo poema

até a tristeza seria vestida

com as cores da beleza.

13.12.07

Poesia (para o jardim) infantil

O natal
perfuma as estrelas
com as cores
da felicidade.

30.11.07

Despojos do Outono

Ao amanhecer
as ruas ainda desertas acolhem o restolho
as furiosas folhas acobreadas já desligadas dos ramos.
A rotunda é o leito sombrio
onde as folhas gastas se acamam.
E dançam ao vento,
o vento despótico que as atira, aleatórias
contra a embocadura do vazio onde jazem.
Não há nos despojos de Outono
a magia das despedidas.
Apenas a coreografia das cores esbatidas
um óculo que espreita
em retrospectiva
as danças excitadas do estio dobrado.
E, contudo,
há nesses despojos
a fértil sementeira dos dias claros
logo no contrário dos dias cinzentos
tingidos pelas nuvens pesadas
a ossatura dos dias minguantes
as pedras pontiagudas do vento agreste
da chuva que se toma pelos sopros da ventania.
Nem sempre as folhas quebradas
entoam o seu restolho
devolvidas à terra que se oferece,
sua sepultura.
Na coreografia dos contrastes
entre os dias lívidos e as noites de refúgio
rejuvenescimento nas folhas acobreadas que se amontoam;
e renovação: a reinvenção das forças
pelo perecimento das folhas
que acastelam os despojos das páginas já dobradas.
O ternurento Outono encobre uma dormência pueril
a preguiça contagiante que se insinua
nos fragmentos deixados para trás pelas folhas
que esvoaçam em outra rabanada de vento.
Dizem
que o Outono
repristina a tristeza;
e que fermenta a indolência
dos corpos aprisionados em casa
quando chegam tempestades;
e ainda que acomete com saudades antes do tempo
saudades do Verão que levantou âncora.
Só esquecem de dizer
que os despojos do Outono escondem a densa neblina
e, atrás dela,
o mistério da luz que se há-de desvelar
centelha que adorna a doce curvatura
onde se deitam os corpos
apaziguados
excitados na luz esquálida,
mas quente
dos encurtados dias outonais.
As folhas inertes cambaleiam no dorso do vento
irrompem no ar em movimentos aleatórios
enquanto desnudam as árvores
dir-se-ia,
em muda de pele.
O gritante paradoxo:
nuas quando mais abrigo carecem
agora que a invernia acintosa
espreita entre as folhas do calendário rasgadas.
É um Outono de despojos.
Em despojos.

5.11.07

Os olhos e os pesadelos reais

Dizias:
que os olhos se encerram
e então vês toda a vida
um cortejo entristecido
negras personagens sem rosto
o rumo do destino ausente.

Dizias:
que os olhos se entreabrem
a medo
e o pesadelo que julgavas ser
desfila diante da vista estremunhada.

E dizias:
que nem sabes se é o refúgio do sono
ou dele fugir
para que pesadelos tão calcinantes
se hajam confundir com a espessa realidade.

Aos ecos vadios

Ecos
de tantas cores
esbracejam aos meus ouvidos
o lacrimejar das fadas.

E ecos
distantes, perenes, sombrios
ou apenas ecos
sem serventia de adjectivos
ora trovejam, ora ciciam.
Amaciam os sons estridentes
abafam as palavrosas prédicas
que, espremidas,
gotejam nada.

Ao menos, os ecos
deixam ao ouvinte um imenso mar
para cavalgar;
dão-lhe liberdade:
de os perfumar com um incenso exótico
ou mascará-los com o sal do mar nocturno
enquanto o límpido luar
encerra os demais sons.

Os ecos
recolhem nas suas asas
a plenitude da paisagem.
Reproduzem a sua eterna beleza
dela o bastião que retratos não conseguem fixar.

2.10.07

Nem sempre os olhos

Os olhos cerrados para a lua
bebem a brisa fresca,
desnudam-se em sua fragilidade.

Os olhos cicerones:
ora mentem,
ora mergulham no cru cenário.

Juízes implacáveis
sempre de espada desembainhada
na aura esbelta de estarem vigilantes.

Por vezes, escondem-se;
escondem o que custa olhar
mentem com o descaramento da ilusão.

É então que se vê:
olhos, traiçoeiros feitores
de retratos impossíveis.

3.7.07

Cruise Control

Podem as tempestades amedrontar
os mares assobiarem raiva endemoninhada
os ventos silvarem fauna grotesca
e raios selvagens queimarem o singular remanso.
Podem, até,
chorar as pedras da aspereza dos elementos.
Nem as garças que desafiam a borrasca
ou as folhas que se saciam nas gotas da chuva
aplacam a tristeza carpida em demorados dias cinzentos.

Não chegam
esses dias melancólicos
a furtar o sorriso altivo.

Entraste em cruise control
e derrotas os remoinhos
adivinhas as armadilhas escondidas
enxotas as alcateias esfaimadas
e persegues,
inane que seja,
como se indomável fosses
as pedras pontiagudas que te doem.
Nem o corpo franzino espalhado de cicatrizes,
dessas cicatrizes por fechar,
ladário de dor que troveja, lancinante;
ou as lágrimas que escorrem
sem as saberes prender:
nada
nada pode contra a brandura vegetativa
que te deixa a pairar
sobre a mortal dimensão terrena.

Passas pelo escuro
com os olhos que vêm na cristalina luz.
Pisas o chão tão duro
sem a mortificação dos espinhos cravados nos pés.

Ah, insultos que apoucam
e um coro que amesquinha,
diria:
tantos sedimentos para o suicídio
– ou apenas refúgio nas ameias de ti mesmo.
E, contudo,
as pálpebras escondem-se, perplexas:
serás um couraçado
brutal força assassina
imune ao pestilento estado das coisas?
Ou apenas domado por uma anestesia piedosa
soporífero que cinde o que há em ti
entre confusão e discernimento das cores vis?

Corres com toda a força
toda a força que as tuas forças alcançam.
Esbracejas contra o vento
fazes tenção de o apanhar
ou só de o afastar de ti,
receoso do seu virulento quilate.
Corres sem destino
colhes as flores alheias
aquelas que as cores e as formas estonteiam
e depois oferece-as à primeira pessoa que vês
atónita testemunha do desvario que desentorpece.

Pela noite,
só pela noite,
acalma a batida do coração.

Não é o cansaço que tolhe movimentos
nem cerceia a ambição.
É um dia pleno que revês
na convicção da maioridade enfim:
o baluarte que és para ti mesmo
ao saberes que houve mercê
do enxerto da alma providenciado.
Aprendeste:
em vez dos descompassados sons
das melodias ora céleres, ora lânguidas
a essência de tudo na estabilidade do ser
lá, onde a completude se encerra.
Nem que haja doloroso preço a pagar,
a enraivecida lupa das coisas
cedendo a vez à planura da paisagem
ao presciente passajar da pele nua aos atritos maiores.

12.6.07

Paródia dos pecados

Tomba sobre os pecadores
a asfixia do impudor.
Debatem-se com a consciência atormentada
tantos os pecaminosos, impérvios caminhos
dos esbulhados da moral.

Há sacerdotes que expiam os pecados
e espiam consciências.
Sacerdotes que tratam da moral,
eles, tão puros
tão imunes aos devaneios transgressores.

Batem à porta dos pecadores angustiados
a qualquer hora
patrulhas de generosas almas
que rondam, atentas,
os sumiços das consciências.

Dizem que há um rebanho
apascentado pelos pastores que se entregam
à bondosa militância dos passos certeiros.
E que os pecados são o encantamento demoníaco
a cancela que afasta a virtude.

Quem lhes assegura que queremos a virtude?
Quem lhes assegura o que é a virtude?
Sacerdotes aprimorados afivelam os costumes
encaixilham-nos no vetusto celofane
dos seus herméticos quadros mentais.

Os outros,
os dissidentes da normalidade,
amedrontados pelo tortuoso futuro que os espera
na embocadura do encarniçado inferno.
Os outros, apenas vigiam o seu tumulto interior.

Os sentinelas da moralidade alheia
perseguem o sacerdócio:
é a sua vez de chamar a sublevação
a deles contra a dos pecaminosos amotinados;
pungente altruísmo ou advogados em causa própria?

Os desvalidos teimam em pecaminosos actos
e provocam, renovando mais pecados.
Sobra a excomunhão
– como se carecesse depurar o rebanho
acantonar os excluídos à condição de párias.

Não que lhes desassossegue o espírito,
aos amotinados da pacotilha sacristã,
pois a fé lhes é risível coisa.
Na glote fica-lhes o doce sabor da transgressão
mais doce quanto mais censurada pelos guardiães.

Os fantasmas que acenam
e a monstruosa tarefa reservada
aos que teimam na herética errância:
apenas um cabo de trabalhos aos seus fautores.
Os únicos inquietados com desvios alheios.

Os destinatários
sossegados na impureza do pecado
hão-de prosseguir no sono plácido.
Não são eles que bebem a cicuta
por não haver no “pecado” veneno algum.

Miseráveis
hão-de continuar os vigilantes dos outros.
Ao saberem que os campos do pecado
são sulcados por um rebanho numeroso.
Cada vez mais numeroso.

10.5.07

A candeia e as lágrimas

Seguia-me pela candeia,
uma âncora salvífica
para o homem desvairado.
A luz da candeia
espalhava um rasto de esclarecimento
enquanto a escuridão se dobrava diante da luz.
Através da candeia
acendiam-se os candelabros da existência
perfumavam-se os poros
já não com o suor sofrido tisnado pelo breu.

Diante da candeia
vogava a tua imagem;
ao início
não percebi se de imagem
holograma
se tratava
ou se eras tu,
matéria e alma concreta.
Os passos temerosos
e a mão trémula que se estendia a medo
ajuizaram que não eras sonho.
Senti a alvura da tua pele
a sua macieza
o cabelo que ondulava com a brisa matinal
e afastei com um dedo
esparsas lágrimas que tombavam.

Choravas
– seria a lânguida e provecta desdita a visitar-te?
As lágrimas curvavam-se face abaixo.
Eram salgadas:
os dedos que as enxugavam
traziam-nas a mim,
saciado pelo néctar que continham.
E embora chorasses
não via esgar de tristeza;
apenas serenidade que irradiava
perturbada só pelo estremecimento do corpo
na passagem dos dedos que te aspergiam afecto.

Era perturbante
o choro de quem assim dormia,
profundamente.
Respondias com silêncio às minhas demandas
e nem a luz da candeia incensava os teus olhos,
teimosos,
como janelas empenhadas
em serem refúgio do temor avassalador.
Diria que o teu sono era
imperturbável:
nem a intensa luz da candeia
ou o ruído da cidade apressada
ou a minha voz
(nunca alta, decerto)
nada te resgatava do sono balsâmico.

Ajuizei por ti
(penhor dos teus sonhos
na autorização da tremenda cumplicidade):
seria um sono apaziguador
mergulhada em sonhos radiosos
onde eras plenitude
o zénite de todas as coisas
um arroubo intenso nas palavras murmuradas
que ecoavam sentimentos sublimes.
As lágrimas não eram observatório do infausto,
delas jorravam
fragmentos vivos da felicidade adulta.
Porque há lágrimas vertidas
que são sinónimo do arrebatamento que mumificamos.

Vi então
nos demorados instantes que te fitei
uma e outra vez mais
o altar sagrado do meu enlevo;
de como o tempo se abstém
nesses instantes imunes às palavras;
já não havia precisão da candeia
pois as tuas lágrimas salgadas
eram as águas onde vogava
ser inebriante, eu,
habilitado pela fortuna da tua placidez.

Seria por magia,
uma lágrima recolhida com a ponta dos dedos
ungiu a candeia.
Que se apagou,
chama desvanecendo-se lentamente.
Havia nesse desvanecimento
o clamor para uma vida inteira,
completa,
para reter todo o sal de um singelo abraço
e contar aos desafortunados
– para sua saudável inveja –
como habitava nas águas bonançosas
a temperança ideal.

Quando voltei a mim,
depois dos instantes de anestesia que foste tu,
já não sinal da candeia;
e o teu rosto enxuto
despertado pela alvorada clara.

9.5.07

As perguntas certas

Não são as respostas
não são as respostas que interessam.
Sim, as perguntas
as perguntas certas
aquelas que desvendam os passos prudentes.
As perguntas que cerceiam lugar
ao altar do conhecimento
(as perguntas fátuas
as do linguajar entontecido
a facúndia barata que espremida nem umas gotas dá)
essas são as perguntas inúteis.
Tempo gasto.
Desnecessariamente gasto.
As perguntas certas libertam o verbo
e aprisionam a verve ilusionista.
Nelas, o travo apetitoso
a esquadria das ervas aromáticas
deitadas na proporção ideal.
Nem de menos, nem de mais.
Senão
as perguntas trazem o sabor insípido
travadas pelas palavras despojadas de ousadia;
Senão
as perguntas florescem adulteradas
atravancadas pelos aromas que se atropelam
sem fio condutor
sem nexo
entretecidas no torpor da vozearia banal.
São difíceis
as perguntas certas.
E tantas são as vezes
convencidos que estamos das perguntas certas
e logo no instante seguinte
o travo amargo da pergunta errada
ou apenas inconsequente.
E se as perguntas certas são importantes:
é como chegados a uma encruzilhada,
sabermos o que perguntar
para onde saber ir.
É nas perguntas certas
a divinal razão dos sentidos.
Não nas respostas
que essas podem
vacilar, debater, divergir.
Sem as perguntas certas
é como se ao mar tivessem levado todo o sal.

19.4.07

Que diremos
quando destinos cruzados
são a candeia da existência?

Os dias nascem ao mesmo tempo
como se os olhos despertassem em uníssono;
as folhas trazidas com o vento
esbarram, compassadas, nos nossos corpos;
as bissectrizes que se intersectam
mais além da labiríntica espuma da vida,
onde todas as gotas da chuva são dádivas
o gentil bálsamo que fertiliza a terra
onde nos deitamos.
Tudo em nós é um vasto oceano
ora de águas agitadas
(no regurgitar cardíaco que se acelera)
ora nas águas mansas
(que apascentam a fluência dos dias).
Tudo em nós
é sintonia.

Habitamos um lugar sem precipícios:
os pés escorreitos deslizam em alcatifas suaves
e os olhos anestesiados pelos cortinados aveludados
detêm-se uns nos outros.
Eu digo que os teus olhos
são a minha respiração,
como dizes que a minha voz
é melodia perfumada que te embriaga.
E o tempo amadurece os campos que semeamos
os campos
onde de mãos dadas irrompemos
retendo o perfume das flores campestres
que – dir-se-ia –
estão sempre floridas
até no pináculo da invernia.

Há em ti a âncora que me amaina,
o sólido paredão que domestica as águas furiosas
que embatem no meu peito.
Dizer que és porto de abrigo
é lugar-comum
um lugar-comum na abundância de significado
(tanto que vem vertido no verso sentido).
Não sei se reitero o lugar-comum
se disser a alternativa:
um feixe de luz arrebatado
no monopólio dos nossos sentidos.
Ou
o mar onde os corpos repousam
e nidificam na correntes invisíveis que nos agrilhoam.

Há aí a única prisão que concebo
as ímpares masmorras salvíficas:
em vez de serem o algoz da liberdade,
a ela me devolvem.
À suprema liberdade de espírito
a liberdade do amor que parece amansado
mas vive num estremecimento constante.

É quando sinto
que se a morte viesse partia preenchido.

13.4.07

Um sonho semântico

Esta noite sonhei
vezes sem conta
que dizia
vezes sem conta
paroxismo.
Mesmo sem saber o que significa
paroxismo.

No sonho
enamorava-me com a palavra
paroxismo.
Como se discursasse eloquentes palavras
sempre rematadas com um sagrado “paroxismo”.
A audiência extasiava-se sempre que pronunciava
paroxismo.
O orador enfatuava,
testemunha da exaltação da audiência:
e ia repetindo
vezes sem conta
paroxismo
paroxismo
paroxismo.

Ao acordar bati à porta do dicionário:
“a maior intensidade de uma dor, de um prazer,
agonia antes da morte (medicina)
do grego, auge”.
Porque haveria o onírico de trazer
o paroxismo
– perguntei-me, vezes sem conta.
O pior é que nem me lembrava
de que matéria era feita o sonho
para convocar o paroxismo.
Às tantas
é apenas uma tropelia onírica
a armadilha onde são capturados
os sentidos adormecidos.
Não sei se seria exorcismo
ou outro ismo qualquer:
aquela noite foi epílogo
no rosário dos sonhos surrealistas
que dariam para preencher páginas de livros
ou pintar obtusas telas com cores garridas.

O mistério fixou-se na intemporalidade:
eu, que nunca havia escrito
paroxismo
marcaria encontro no ermo de um sonho
com a palavra repetida à exaustão.

5.4.07

Louco o mundo

Vejo os querubins trajando vestes negras
enraivecidos com a demência
de que são testemunhas.
Esvoaçam invisíveis
disparando a fúria
porque
as pessoas buscam a essência da loucura
da terrífica loucura que as amesquinha.
As capas negras dos querubins
dançam
silvam
a cada golpe de asa encolerizado.
Nada podem
os anjos que idealizaram a bondade.
Nem sequer
quando
vêm montados em trovejantes cavalos
que querem esmagar todos os vestígios de maldade
escondidos até nos lugares mais recônditos.
Até os anjos foram contaminados:
já não são feitos de alva matéria
nem vêm adejados pela auréola benquista.

As velhas persistem na língua viperina.
De olhos esbugalhados às vidas alheias
como se as delas não existissem
ou fossem apenas um limbo
de onde
vigiam todas as outras vidas.
Não dormem
na vigilância demorada com que saciam
curiosidade doentia.
Morreriam
se um dia
todos os predicados da bondade tingissem o mundo.
Não teriam então o oxigénio.
Seria a doença maior que as levaria
como se um raio fulminante as atravessasse,
a mortal espada que haveria de cercear
a maldade enquistada.
Mas aí haveria malvadez soerguida
para limpar
maldade insuportavelmente ignorante.
Maldade, ainda.

Nas ruas de todas as cidades
demoram-se as pessoas que se esquecem do que são.
Parece que vegetam
como se andassem uns centímetros acima do solo,
simulacro do que são pela imposição do local
onde estão.
Há nelas
a anestesia dos corpos
uma maquinal errância que as leva
a lugar algum.
Atravessam-se no seu tempo:
há nelas uma condoída imagem
do tempo que se esfuma
como se os ponteiros do relógio medrassem
debaixo da fogueira que aquece o inverno.
E ainda que os corpos encham as ruas
os espíritos são imagem de criaturas mirradas
carnes secas que acidulam quem nelas tocar.

Às vezes
apodera-se uma imagem atroz:
um lugar imenso onde todas as pessoas estão
um imenso pântano onde lutam pela sobrevivência,
demorando-se
atoladas no esforço maior para um sacrificial passo
e avançar escassos centímetros.
Das entranhas do pântano
exala um sulfúrico odor que entontece
cansa mais ainda os corpos exangues
que se movem pelo pântano.
E, contudo,
os mortais avançam
pela errância do desconhecido,
fossem impelidos por uma bússola escondida
dentro dos seus corpos.
Movem-se
tenazes
para alcançarem o ermo local
onde
o pântano cede a vez aos prados verdejantes.
Onde
enfim
as pessoas hão-de acometer no descanso final.

O contraste oferece a demência desleal.
Uma vida inteira a irromper entre o fétido lodaçal
uma canseira provável
a que os corpos se acostumam.
Ruinosa esperança que se desmorona
quando
os pés se libertam das pesadas lamas do pântano
e alcançam porto seguro.
Os prados verdejantes
são a cama onde repousam,
por fim.
De onde jamais se erguem
consumidos os exangues corpos
pelo traiçoeiro remanso dos verdejantes prados
que são sepultura prometida.

Atroz aliança
querubins e velhas são juízes
do tribunal das almas.
Conspiram entre si
mas dão as mãos para julgar
todos os espíritos que arremetem à rua.
Parecem os doutores
que dissecam cadáveres nas autópsias.
Dir-se-ia
que
querubins e velhas eternamente viúvas
passam os dias a autopsiar corpos vivos.
E quando espumam raiva,
esbaforidos,
pela perturbante vingança da bondade
inoculam os sedimentos da podridão.
Até que os corpos se habituem à perversidade militante.
Os querubins
voam até aos campos pantanosos
de onde
recolhem as sulfúricas sementes que nidificam
a crueldade sistemática.
As velhas
espalham as sementes
ao vigiarem as vidas todas.

Neste lugar
nem sequer
há tempo para a inocência das crianças.
A genética é o impedimento.
A genética fabricada nos fétidos pantanais
onde
os progenitores são infectados
deixam a sua mácula nos embriões que fecundaram.
Até que a loucura se apodere de todos,
a insanidade malsã para além do sensível.
Haverá um tempo
em que nem sequer saberemos o que é a loucura.
Todos os manicómios terão fechado as portas.

23.3.07

Não sei que segredos

Sabes?
Guardo segredos sem importância
fragmentos estilhaçados de vidas passadas
tento tecer as pontes que semeiam
harmonia.

Percorro a noite,
assustado.
Interrogo os fantasmas
se querem decifrar os segredos;
ao que me respondem com o silêncio escuro.
E assim ficamos
eu e os fantasmas
emparedados na encruzilhada sem pavio.

Pode vir a manhã mensageira
que os segredos teimam em bater alto
contra o meu peito.
Sei então que os guardo
só não sei da chave para os desacorrentar.

Queria que fosses penhor
dos segredos que tenho.
Queria que me dissesses
se são importantes,
ou apenas anónimos grãos de um imenso deserto.
Queria que fosses deles cúmplice
nem que fosse para que deixassem se ser
segredadas oníricas nuvens
que se ilidem na matéria
– ou eles os fantasmas avassaladores.

Mas nem eu sei de que jaezes são os segredos;
Nem eu sei
sequer
se há segredos.
Desconfio que sim
pelas aves que voluteiam por cima de mim
pelas brisas alterosas que me arrepiam a pele
pelas coincidências na dissimulação das superstições,
por tantos augúrios.

Oxalá
se abrissem as janelas
e os segredos só meus
sussurrassem
as inconfessáveis, amedrontadas
palavras da sua decifração.
Ou talvez não:
temente que os segredos
se desfaçam na desilusão que resguardam
promovidos a matéria insensível
arquivados no vetusto esquecimento.

Pelo caminho
apenas uma perdida oportunidade
de te fazer cúmplice
de uns quantos segredos meus.

15.3.07

Nuvens carmim

Alvorada.
O tecto de nuvens finas
filtra os matinais raios solares.
Espreitam ainda
do lado de onde irrompe o sol.
Hão-de ser de um dourado pujante
quando o sol hastear a pino
e queimar as peles encardidas.

Por ora,
apenas uma assustada luz soergue
tingindo a aurora de vivo encarnado,
pintando as finas nuvens
com a cor que não lhes pertence.
Na admiração do quadro horizonte
escoam-se os minutos
e desempoeira-se o envergonhado sol;
como uma pedra de gelo embutida no forno
é o encanto que se esfuma
por entre o movimento matinal que recrudesce.

Pelo dia fora
aquela imagem das nuvens purpúreas
acomete à retina.
Há ali uma sugestão infantil
a bola de algodão doce tingida
que ruboriza na dócil essência de morango.
Os raios nascentes sussurram-se
com pinceladas avermelhadas
que colorem as nuvens.
Atraiçoam a monocromia celeste:
deixa de ser o negrume nocturno
o intenso azul diurno
a cintilação soalheira.

O esfuziante da vida é assim,
efémero.
Fragmentos que se esgotam no instante
sobram como mananciais que sedimentam
a memória que apraz retratar
– nos quadros
nas palavras
ou apenas nas imagens retidas nos sentidos.

Trago em mim
a imagem das delgadas nuvens alteadas
perfuradas pela frescura do rubor intenso,
desvirginadas da sua alva palidez.
Perenes, essas imagens.
E diferentes do tingimento que se abate
na despedida do dia:
porventura
pelo cansaço do dia que se esvai;
porventura
pela euforia da luz diurna que se acastela,
diria que o carmim matinal é diferente:
majestoso e refrescante
lúdico e tentador.

Apetece que os dias amanheçam todos
com o céu desimpedido das plúmbeas nuvens
que escondem este quadro magnífico.

10.3.07

"I'm tired of being God"

Inquebrantável o espelho
onde passa a languidez da tua generosidade.
Qual Madre Teresa
nascido para ser bondoso
espalhar com a magia dos dedos aquecidos
o altruísmo que deixa exangue.
Os astros o disseram alhures:
divina a condição que se empresta
aos predestinados.
Não para proveito próprio
na senda da monástica forma de vida
desprendimento de si e entrega aos outros,
às causas, às carências que agridem o mundo.

E sim
esta auto-deificação é uma implosão do ser
o esvaziamento das forças
o esvaimento de si.
Querer apascentar o mal dos outros
sem curar das maleitas que se apegam, teimosas.
Piedoso incorrigível
na laceração da carne tão ferida
que sangra as lágrimas interiorizadas.
Detrás de uma fachada luminosa
só gritos que ninguém escuta
só a pungente mortificação das vestes rasgadas
ofertadas em farrapos
inútil oferenda que só serena o ego altruísta.

Há, neste convencimento de ser deus,
a mortalha da dignificação suprema
como se a generosidade alumiasse
o trajecto decente.
Ai, tomara a deificação ser perene
oxalá não tivesse o travo das consumições
ou fosse uma planície lustrosa
onde medra só a brisa suave
que enxagua os olhos marejados
– pelo desencontro com a tua alma
pela demissão de ti mesmo.

De tanto curares de ser deus
tanto deixaste de ti pendurado nos outros;
tanto
que já nem se afiança
que em ti há um tu para chamar.
Pode a teimosia das divindades cegar-te
pode impedir de ver os cristais tão límpidos
que mostram o imenso deserto que és.
É que não basta
o desprendimento em nome dos outros;
nem esconder o altruísmo na comedida celebração;
ou simular o zénite de ti pelo aluvião
que semeias nos outros.
Enquanto não fores deus para ti mesmo
as traves da generosidade deificada
serão apenas lodaçal que te aprisiona:
ao que queres que os outros sejam
sem que revires os olhos
e cures do teu castelo.

Podes teimar:
mas aposto que lá fundo,
no mais fundo de ti
– onde ainda espreita um laivo de pessoalidade –
te cansaste de ser um deus.

1.3.07

Sitiado

As pernas trémulas calcam as folhas húmidas
avançam a medo entre a escuridão
as mãos tacteiam entre os muros frios
do labirinto.

Tropeçava em cadeiras derrubadas;
houvesse uma centelha que fosse
pródiga a alumiar a saída
do labirinto.

Às tantas, sem saber se sonho ou matéria viva,
cambaleava entre os muros lisos
sensação de vogar em círculos
atraiçoado pelo labirinto.

Naquele sítio, todos os instantes são nocturnos
medonhos sussurros que descem sobre o ouvido
e agendam a masmorra que é a ameaça
labiríntica.

À entrada, despojado dos pertences
é nu que a saga prossegue
pisando os vidros partidos invisíveis
nas trevas do labirinto.

Diria que lá fora trovejam gargalhadas insanas
a audiência disforme no entretenimento
dos algozes dos corredores onde vagueia
o prisioneiro do labirinto.

Nas incontáveis encruzilhadas
o prisioneiro entrega-se na imensidão
de uma loucura trepidante
que pulsa nas veias do labirinto.

As lágrimas que verte,
lânguidos esforços das paredes inconfessáveis
do chão tingido com o sangue derramado dos pés cortados
na pujante asfixia do labirinto que se encerra.

A certa altura, o tecto parecia ser mais baixo.
Não era ilusão: o corpo rebaixava-se
contorcia-se em espaços onde mal cabia dobrado
no cavernoso labirinto cortante.

O intrépido silêncio era um punhal doloroso:
só escutava o seu arfar aflitivo
e mais se condoía por ter franqueado
as convidativas portas do labirinto.

Havia apenas uma dúvida diante dos olhos:
quanto tempo levaria o pungente sacrifício,
ou, se acaso pesadelo era,
quanto tardava o balsâmico despertar.