24.7.16

Tórrido

O jacarandá frondoso
hasteia a sombra
a dileta pele segunda que aplaca
o estio metido pelos poros.
Assobiariam andorinhas rampantes
não fosse o forno aberto a meio do dia.
As pessoas arrastam os corpos
pelas veredas vagarosas do dia.
Pedem aos jacarandás
que intercedam nas divindades
que aferroam o tempo que faz
– por acreditarem nos poderes dos jacarandás
por suplicarem a ajuda das divindades,
ou deve ser por as credenciarem.
Se olhassem
para o mercúrio de um termómetro
ser-lhes-ia levado ao entendimento
que não há divindades com dedo na meteorologia
não há intercessão das árvores inertes
nem porventura chegam às divindades
a não ser por projeção da incapacidade 
dos homens.
É neste estado
(de liquefação dos corpos e do resto)
que o esteta empoleirado no arco de granítico
proclama:
abriguem-se sob os jacarandás
se querem que o calor derreta o seu bastão.
E bebam
de tudo o que for possível
álcool de preferência
que, num ápice,
arrefecem em hibernação.

23.7.16

Torre bela

O arco melódico
entra no firmamento
sem supor franjas inertes
na tradução das inclinações serenas.
As pedras não estão encardidas:
todos os pés nelas passeantes
cuidaram de as tornar alvas
purificadas no desejo dos beijos
contumazes.

As pedras dançam
remexem-se
remoem com intensidade
os terramotos interiores
os que já tiveram tempo
e os que estiverem por vir.
É na torre bela
majestosa interpretação das almas maiores,
das almas que tudo compõem
com a prestidigitação dos singelos dedos,
que as paisagens se dilaceram
as lágrimas se enxugam em lenços vivos
os freios se libertam na magnífica orla da vida.
Na torre bela
onde a moeda que conta
é a fruição dos sentidos cunhados
nos mais preciosos metais
enfeitados com as flores macias
e com perfume embriagante.

Para
num êxtase
tudo se entregar ao altar
onde somos curadores da audácia
mestres na destreza
que é dobrar o braço ao risco
e às carantonhas que são imagem sombria
sem esteios terem,
porque não deixamos.

22.7.16

Dilemático

Um desfiladeiro sem baias
mesmo no epicentro de tudo
desafia o corpo leniente.
Os músculos apertados
berram o medo do precipício;
o desfiladeiro pode ser fatal
tamanha a altura da queda
se o corpo desajeitado
não for diligente.
Porém
o corpo pode ser prisioneiro
da letárgica indolência
se recusar o desafio do desfiladeiro.
É matar ou morrer
- atira o observador atento,
atraiçoado por uma desatenção:
na apoplexia do dilema
o corpo sabe
que é morrer, ou morrer.
Só não sabe quando chega primeiro.

21.7.16

Mãos arcaicas

As mãos cansadas ditam o suor
em erupções convulsivas.
As mãos debatem-se em suas rugas
são o espelho de um navio decadente
ocaso que espera pelo tempo devido.
As mãos velhas
protegem-se das arestas vivas
da convivência com as cinzas depostas
nos canteiros vazios.
Vulcões incandescentes
que degelam glaciares inteiros,
fogos ininterruptos que derrotam o torpor.
As mãos servis
abraçam a árvore centrípeta
cingem-se à cintura fina que espera
um abraço demorado
ou um beijo que levite.
As mãos com as rugas todas
são um mapa gasto na lassidão do papel
uma voz gutural e, todavia, em surdina
o plástico tornear das marés vivas
que teimam em adulterar as cores vivazes.
Mãos destas
em serena coreografia das palavras vitais
congraçam o desgaste do tempo.
Mãos cansadas e enrugadas
apaziguam o temor pelo tempo exíguo.
Colhem o sal do tempo
e transfiguram-no em casas sadias
retemperadoras
templos soalheiros à espera de quimeras.
E o mar todo
refugiado nas palmas das mãos.

20.7.16

Eureka

As bainhas da ideia
coziam-se com os ramos
das árvores primaveris.
Debatiam-se, as palavras
– as palavras particularmente certas –
no tojo florido das serranias altas.
Antepunham-se vozearias interiores
desafiando a alvura da ideia,
demónios na vez da contraprova precisa;
nos copos amarelos
a espuma da cerveja convocava
os repensares que tivessem carestia,
um chamamento aos olhos felinos
desembaciando a terra do pensamento.
Em linha
perfeitamente atirados por cima do ocaso
as fazendas translúcidas levantavam o véu
e os copos já despidos
celebravam os campos dourados
onde a ideia se mostrava,
ufana.

19.7.16

#43

Procuração a tinta-da-China
(indelével e sem mácula)
para não caucionar
retrocessos ou arrependimentos.

Descompromisso

O cobrador de promessas
amanheceu irado.
Tivera maus sonhos:
deixara de haver gente madraça
no respeito das promessas próprias.
Sabia.
de ciência certa,
da impossibilidade das pessoas,
das pessoas todas,
serem diligentes
no deve e haver das promessas.
Mesmo assim
o cobrador de promessas
estava com o coração a mil à hora
um aperto interior
que quase tirava a respiração.
O cobrador de promessas
continuava sem entender o temor:
não era preciso estudos
ou ser cientista com nitidez de análise
para extorquir aos autos da espécie
a mitomania sem remédio.
Pois se os da espécie
eram dignos
da mentira que sobre os próprios se abate,
que abutres julgaria o cobrador de promessas
estarem de atalaia ao seu alpendre?
Confessou
aos seus próprios fantasmas:
receava que a espécie tivesse uma epifania
e de repente,
sem exceção,
perdesse as rédeas da mentira
e acautelasse todas as promessas
com selo notarial;
temia
o cobrador de promessas
que a demissão rimasse
com a redenção da espécie.
O que o cobrador de promessas
não quis ver
é que as promessas só podem ser cobradas
por quem delas é autor.
Afinal
foi ao cobrador de promessas
que se deu um assalto dos vultos interiores,
os máximos julgadores das intenções,
das ações
e das omissões.

18.7.16

Sentinelas

Atravessamos as ruas de mãos dadas
o fardamento contra os atropelos
sem aviso.
Vamos ao encontro da âncora maior
onde deixamos o suor sem pesar
e ganhamos o tempo de volta.
Colhemos na pétala branca
o mapa de onde somos
e sabemos ser matéria que desconhecíamos.
Respiramos no fundo do desfiladeiro
as rochas duras sentidas nas mãos
nas ameias contra anjos fingidos.
Arranjamos as paredes cardadas
onde deitamos os corpos cansados
no ocaso que pratica a penumbra.
Não povoamos contrafações a eito
nem sequer como amostra
por sermos tutores do nosso devir.
Celebramos os esteios fundos
os cálices de onde bebemos
os lençóis cúmplices
os mastros irrefreáveis
o tempo que detemos em contemplação
as lágrimas que dão mote aos corpos 
entrelaçados
as feitorias de onde avistamos calmaria
as paisagens pintadas 
com a cor dos nossos nomes.
E concebemos,
pela plenitude que a nós vem
na avidez dos corpos inquietos,
a casa inteira de onde nos entronizamos
imperadores
com o selo do sol suado em sua solenidade.

16.7.16

Da minha janela

Da minha janela
a aurora que cicia os segredos.
Da minha janela
o vento húmido entrando
nos ossos.
Da minha janela
a paisagem fetiche devolve
o ardor em cadeiras arqueadas
sob o doce jugo do desejo.

Da minha janela
colho as flores balsâmicas
que vêm às mãos sedentas.
Da minha janela
deito o peito ao mundo
num relógio sem arestas
e proclamo a totalidade das coisas.
Da minha janela
deixo o tempo vagaroso
deixo-o ser um lago vistoso
onde o olhar se demora em contemplação
sem notar no desmaiar da luz.

Da minha janela
remoo os víveres maçadores
que memórias sem freio teimam
deitar no palco abraseado.
Da minha janela
povoo o porvir com pedaços de mel
e pinto as paredes com cores lunares.

Da minha janela
abro os braços inteiros.

#42

Não bebo as lágrimas
derramadas em fráguas íngremes
nem o sal transido
em léguas noturnas.

15.7.16

Tutelar

Um imenso poço de petróleo
onde as algas interiores se lavam
na impureza das lavas.
Apóstrofes indignadas levitam no calor
sem se saber se as mãos se apertam
ou se terçam num tear frio e redentor.
Ou, talvez,
tudo o que interessa é o cerzir das luzes
em estando os céus à espera de tempo.
Diziam-se:
ditados só para reforçar ideias
estrofes perdidas entre páginas sem rosto
palavras macias entre os dentes cerrados
preces avulsas entre paredes caiadas.
E então
abrindo as mãos
– como se estivessem prontas
para abraçar rimas sem rumo
e estrelas descidas ao chão
– cintilavam os olhos sequiosos,
as diletas personagens fruindo na imaginação,
e deitavam-se no palco sem pano
as imagens belas
as paisagens extravagantes
os caudais velozes
à espera de domar os impávidos escrutinadores
das almas.
Da lava funda
em fervente jato
o imundo petróleo que tudo purificava.

14.7.16

#41

Sabia de fonte segura
que gritos emudecidos ecoavam
na trovoada seca
enquanto dentro das casas
choravam de medo as paredes suadas.

13.7.16

Pé de dança

A dança sinuosa
no atapetado chão vítreo
levanta o ventre ao promontório.
Desengonçado
sem remédio
a não ser
mergulhar na negação
até convencido estar dos dotes
de dançarino.
Mas é tudo no seu contrário,
como a vergonha apascentada adverte
em contramão das gargalhadas de usura
no asfalto liquefeito do vexame.
O que importa?
Deite-se o corpo à música
deixe-se a música ser musa sua
remetam-se as injúrias à estética
para os pardais irrelevantes que adornam
os beirais do tempo:
que a dança
por sinuosa que seja
chama dançarinos
– e dançarinos só –
sem cuidar de saber se são
diligentes
capazes
e audazes.
O que conta
é o pé de dança
com o frescor do rio em contrafação.

12.7.16

Redenção

Mandavam confettis tardios
sobre as costuras da manhã
os homens bravios
repousando na luz temporã.
Não queriam domar baldios
de gente barrosã
hipotecando seus lados gentios
atirando dados à gente vã.
Tiraram medidas a ventos sadios
para terem em mão prebenda sã
perdendo o visto dos olhos vadios
em oferenda que basta ser meã.

11.7.16

Sinais de fumo


(The Durutti Column, "Duet With Piano", in https://www.youtube.com/watch?v=6vfJf_SzthA)

Sazonais pássaros deixam
cantos rasantes nas paredes alvas.
Os ombros pesam
como se a neblina matinal
tivesse o peso do chumbo.
Dizia-se que os portões de ferro
eram o logro de onde se punha vista
no estuário de prata.

Mas depois
uma curva apertada
interrompia os pés descalços.

Uma curva apertada.

Depressa as mãos tomaram cama no piano
e arpejaram cores ciciadas
nas gotas frias da chuva a destempo.
Tomara que as retas não se juntassem
em planícies sem fim
em planícies à espera de searas fartas.
E se os corpos se dão ao medo
ao medo de curvas apertadas,
curvas sem aviso
(curvas ao acaso),
um murmúrio quente depõe ao ouvido
da mulher amada:
como o mundo inteiro sobra
quando as mãos se aconchegam
num castelo de reis.

O piano devolve a tapeçaria que terça
o templo onde o tempo se demora
enquanto as mãos se beijam em auroras doces
e os amantes entram nos olhos recíprocos.
Ditando palavras cheias
palavras rios
e palavras açambarcadas
o ouro arregaçado em mangas rotas
e a janela desembaraçada à espera do mar,
onde o sentido maior segreda:

somos nós
e nós apenas
os curadores dos campos
onde se colhe o amor.

8.7.16

#40

Convertido o sal do mar
(inteiro)
sobra o regaço das minhas
mãos.

7.7.16

Sem rédeas

Estrutural
o grito aberto
que sangra nas pedras alvas
ao cimo da escadaria dos pastores.
Passam os turistas
indiferentes.
Congemina-se a lua
nas imediações do entardecer
e os carros apressam-se
para o decesso do dia.
Dizia-se
que os sacerdotes rezam
noite e dia
pela jubilação das gentes
a matança das guerras
a fortuna das almas.
Indiferentes
os gritos sem rosto
esbracejam no forte mais alto
e deixam as migalhas da sabedoria
aos aprendizes meãos.
Não querem provações castas
nem boémias destravadas;
querem apenas beber a água da lua
quando ela se monta na sua roda grande
e o sol se some atrás do ocaso.
Para depois
treparem a escadaria alcantilada
e do promontório clamarem:
“e tu, ainda estás aí? Ainda estás aí?”
Sentam-se nas esquinas envidraçadas
trocam o ouro por pétalas frescas
juntam as páginas arrancadas
e tocam com os dedos no chão da lua.
E perguntam
outra vez
sem que a voz murche:
“e tu, ainda estás aí?”

6.7.16

Bandeiras gastas

As bandeiras sem vento
despojam-se do seu ser.
Murchas
arqueiam-se sob o jugo farto
de uma hibernação sombria.
Mortiças
cansam-se de serem nada.
Não se alimentam da ferrugem
dos mastros que as albergam:
morrem por si mesmas
domadas pelo marasmo dos tempos
que correm depressa na inversa proporção
da inércia do vento.
Só estão à espera de alguém
(piedoso)
que as liberte do peso morto que são
e as devolva
ao baluarte das simples memórias,
contra a conspiração do vento poltrão.

5.7.16

#39

Os laços retorcidos
distinguem a estátua do estadista.
Menos mau:
fossem dejetos das pombas
e na estátua, a estatura do retratado.

4.7.16

Carmim

No sangue sereno
que se sacia no seio abastado
a singular serenata
sibila uma sátira emparedada,
um sortido de sábados suados
segredando o que satãs sovinas
não sabem ousar.
E depois
depois de sindicar os súbditos
surgem dionísias sereias
as que soerguem seios abastados
e o sol serve aos soldados desarmados
a sua saliva.

3.7.16

Diagonal

Uma gota líquida de ouro
vertida dos olhos sem sono
à medida do tamanho das montanhas.
Dizem que uma aura lúcida
penhora os descaminhos causados
pelos neófitos artistas sem rosto.
Ganha-se a veia reta
jurada em pratos rombos;
projeta-se a veia
até se aquietar num fluxo contínuo
deixando um tear liso e limpo
a servir de avenida.
Frondosa,
a avenida,
com suas árvores de fruto generosas
e os ramos abertos
como se fossem braços amplos
a convidar ao resgate das almas.

1.7.16

Os cães e o veleiro

O veleiro adormeceu nas dunas
talvez
imagem de provecta idade
talvez
em sinal de falta de destreza
de marinheiros amadores
talvez
por ação de um mar adulterado.
O mastro caído no areal,
à mercê de uma matilha de cães
farejando o objeto estranho,
simula-se objeto inanimado.
A lídima inutilidade
à mercê da maresia sem misericórdia.
Os cães afastam-se do mastro
(assustados)
com um pulo para trás,
esboçam pose desconfiada.
Não
não é um objeto desconhecido
ou vestígio extraterrestre;
talvez o seja
(uma coisa ou a outra
ou as duas por junto)
para os cães que passeiam sua
vadiagem.
Para o que conta
o veleiro,
outrora miragem da ostentação,
sonho impossível dos remediados,
é tão vadio
como os vadios cães.
Prova-o a mija sobranceira
atestada no casco
por um dos da matilha.
O que prova
também
a inutilidade dos cemitérios.