12.5.18

#575

O historiador
cultor de Rosa do Luxemburgo
tem a meia rota 
do tamanho do dedo grande.
É para arejar ideias.

11.5.18

Estrangeiro

Saio de mim. 
Vou pelos arruamentos
onde se enquistam molduras desiguais
os estruturados lanços 
do que meu olhar não contempla. 
Revisto cada enseada
talvez as areias molhadas invistam
o puro sinal das diferenças
e então
na companhia dos navios em redor
sinais de fumo venham ao estuário
onde escondo a solidão. 
Descubro os incomparáveis lugares
que fogem da penumbra
e noto
pela primeira vez
que me consigo ver por fora de mim:
vejo uma figura;
parece a distorção de um espelho
um passo vadio contra as varandas pueris
os contrafortes dos lagos intrínsecos
um chapéu sem medida
a medula funda nos ossos húmidos
palavras entoadas num viveiro oriente
propositadamente despojado de armas
o peito nu dado ao imponderável inverno
armadura sem doenças inventariadas. 
Não soube dizer
se ao ver-me por fora de mim
o vulto era eu em reconhecimento
ou se me vi como estranho 
(de mim mesmo). 
Não consegui tirar fotografia. 
O aparelho ficara escondido
no fundo da minha alma. 

#574

Ah! as certezas:
sitiadas por titubeações, 
transfiguradas em certezas dissolventes.

10.5.18

Moda sem modos

Trovas modernas:
o tempo não tolera a letargia
e os seus argonautas

(como se cavalgassem 
nas amarras de um relógio)

insubordinam-se contra o vazio. 
No fundo
exoneram a história
projetando-se para o fado que é incógnita

(menos o sê-lo, 
quando chegar seu apeadeiro). 

Enquanto esperam
esculpem o tempo que vem parar às mãos:
as modernidades sucedem-se
com a mesma voragem
dos dias sucessivos. 
Na lente baça da desmemória

(entretanto cultivada)

de tantas trovas modernas
já não mantêm inventário
dos modismos em acelerada substituição. 

Às trovas modernas
o património da desmoda:

todas decaem no seu fulgurante emudecer

o passo cedendo
a outras por sua vez efémeras.
Até se chegar ao nirvana:

é moda 
não estar em moda. 

#573

Não há moral da história. 
Há um mural para a história.

9.5.18

Atributo

Deste colostro
um viveiro fecundo
úbere das palavras
limiar dos nómadas,
trevo de quarto folhas. 
Deste mangas
ao coloquial assinalar da data
um desfado cinemático
entre as sombras desenhadas,
xadrez sem regras. 
Deste causa
à paráfrase sem curadoria
no metálico entoar dos fantasmas
nos diálogos surdos,
ponte suspensa sobre o vasto mar. 
Deste olhar sem freio
acordo com as árvores
à espera do vento
na espera do que não tem espera,
o engenho que não precisa de invenções.

#572

Dei de mim
um legado ao devir
e não me importo
se o tempo não agradece.

#571

- Não sei
o que é um contumaz. 
- E sabes
o que é um desertor?

8.5.18

#570

Não o plano beligerante,
atalho para a circuncisão 
da rebeldia heurística.

O todo e as partes

A parte de um todo
nascente
desdiz o equinócio vespertino
e traduz em aplausos
a válida interpelação.

Afivelem-se deduções
como as laranjas que medram na primavera:
os embaraços 
são fulgurantemente demitidos
sobrando o chão inteiro
à mercê dos pés que o querem ler. 
À parte de um todo
em pleito desigual
os braços terçam lugar contra as marés;
o todo é desimportante
na fecunda indução das estrofes sem rumo
por saber 
que o saber não se sabe. 

No mais alto miradouro
nada é o que vemos da varanda sobranceira
(e não é por haver um teto de nuvens
a servir de chão).

O modo aristocrático em desuso
ensina:
desliguem-se os nós da teia dos pergaminhos
que não passam de incenso sem fogo
de um esplendoroso sol despojado de cores. 

Há vozes estridentes
ensaiando seu máximo ruído,
o silêncio 
sepulcral e capazmente sibilino. 
O todo estilhaçado nas suas muitas partes
perdeu-se num mapa sem sextante. 
Dos escombros
uma miríade de partes
desligadas umas das outras
intencionalmente desligadas
na fruição de uma soma
maior do que o todo anterior. 

As múltiplas partes gravitam 
no sedoso esculpir 
das palavras desarmadilhadas;
tudo se congemina na fábula da perfeição
enquanto os paradoxos dão leite ao pensamento
e das bainhas dos sobressaltos
não se sabe paradeiro. 

Chove lá fora. 
As mãos molhadas 
recolhem um pedaço de terra molhada.
As mãos empapadas 
libertam a terra entre os dedos. 
Não haveria melhor metáfora
da transfiguração do todo 
nas suas múltiplas partes.

#569

Alarido no mercado:
um pranto convulsivo
e a indiferença vegetativa.

7.5.18

#568

Não é menor vaidade
exibir abundante modéstia,
em arrependimento pretensioso.

Casa da chegada

A casa 
sem fronteiras
sem telhados vãos
sem veios apodrecidos
a casa acesa
alpendre em espera
a casa do verbo falado:
da infinita alvenaria
o ósculo viveiro
conferindo a cal sobre as paredes
no astuto olhar desembaraçado.

A casa
nascente do amor
e seu estuário, também:
fluxo circular
vitral marmoreado
centelha que se empresta aos corpos
com o jardim por perto
as flores silvestres selando a paisagem
a casa 
onde se entrelaça a alquimia com o nosso suor.

Da casa em congeminação
à casa sonhada
à casa havida
à casa 
com os corrimões
compostos pelo ouro das nossas mãos.

A casa 
pátria dos deslimites
terraço de identidades desenhadas
os fragmentos colhidos do chão
os murmúrios reservados pelas paredes
santuário dos dedos que afagam os lábios
na boca sedenta
no segredo da janela sobranceira ao mar. 

A casa
património do mundo
e o mundo
em sua devolução
resumido à casa fortaleza
onde se ciciam os verbos fecundos
e as palavras sabem a framboesa.

#567

O fugitivo
preso a uma miragem
no sonho incontestável de uma muralha.

6.5.18

#566

A grande fábrica do sal
onde, depostas, 
as lágrimas não têm carestia.

Paisagem acesa

Confiro a metáfora
na paisagem de mel
encanto cerzido na urze ao acaso
e não concedo no dilatório impropério
em que enquistam
os pesares arqueados sobre o dia volúvel. 
Uma desfeita 
sobre as arcadas perfunctórias:
as abóbadas estilhaçadas regressam ao lugar,
depois de o olhar ter errado
depois de ter perdido o compasso
depois de terçada a angústia infecunda. 
Não interrogo nada
nem procuro as respostas impossíveis. 
Antes a metáfora
uma metáfora gutural
os pontos cozidos na pele
na prometida cicatriz que dispensa tatuagens. 
Às voltas com a moldura, 
onde minha aura tem cabimento
sentado em meu lisérgico lugar,
trago da madrugada a boca sedenta
o corpo sem freio;
a insubmissão não é torpe fingimento:
a falésia testemunha o fundo da jura
o encontro das abcissas
e da escotilha vejo
o luar a caucionar o dia
enquanto a algazarra pura das crianças
póvoa estrofes em folhas soltas.
Não quero penumbras desautorizadas
como penhor da vontade. 
Só quero o deleite empossado
o verbo contundente
a maresia imperturbável
e os olhos desembaciados, incontingentes
para leves verem o quadro 
onde se senta
a paisagem acesa.

5.5.18

Turismo

Seria uma bala perdida
o furacão intumescido
a glosa sem vento
uma mão erguida em protesto
o miado do gato presidente
o mar calmante entre paredes 
uma história sem enredo
o mendigo absorto no cais enferrujado
a menina apressada
uma gota de suor misturada com chuva
os livros deitados fora
um russo em pose aristocrata
um assobio (não piropo)
a seriedade do edil
a contrassenha do segurança
a sobriedade da velha atriz
o freio do cavalo atrelado
a sétima vida do rapaz do circo
um adeus que se remete ao silêncio.
Hipótese por amadurecer
o fogo alto em pira amontoada
a voz rude no parapeito da melancolia.

#565

Fiz deste embaraço
alquimia
e deitei-me no regaço da noite.

4.5.18

#564

Aqui: o meu corpo desminado
mártire de prazer
a água toda por beber.

O grande gesto oblíquo

Sussurrei versos ímpares
e os ouvidos inquietaram-se
no desábito da imparidade.
Se ao menos fossem verticais
e não intuíssem
os trovões que assaltam a janela
neles se podia aninhar 
a refrigeração das almas.

Não era o caso:
os versos
rudes
violentos
um ensaio de sarcasmo
eram prova viva da marginalidade
do isolamento metódico
de uma certa desidentidade
que não se esfrangalha no sopé das bandeiras;
maus os modos
de quem desalinha criteriosamente
num fogacho de mau feitio perseverante
na irrisória ilha de que é esteio
nos preparos da loucura insignificante 
– da loucura todavia benigna.

Justapõem-se
razões cimentadas em desrazão
no pueril encaixe da insubmissão,
talvez.
Talvez:
se visto de fora
lente que não é viável juízo
por exterior incapacidade
de saber do sangue fluente 
que toma conta das veias.

Continuo a sussurrar versos avulsos.
Versos-protesto.
Versos-infâmia.
Versos-inocência.
Versos desunidos.
Versos em coreografia contra a contrafação.
Versos carentes de uma nova gramática.
Sussurro-os.
Às vezes, 
em paradoxal gritaria interior
tão estridente
que só as veias combustíveis os ouvem.

O murmúrio
enche-se das cores vivas
na centelha soalheira que reaviva a primavera.
E eu sei alguma coisa
contra o rio imóvel 
que espera pelo tempo impassível.

#563

Da valsa vagarosa
sob os lustres decadentes,
os profetas.

3.5.18

Quartel general

Sob o disfarce da lua
as facas desistidas
sangram suas lágrimas.

boxeur perdeu.
O sentinela perdeu.
O apoderado dos touros perdeu.
Ganhou a viagem sem rumo
e o pudor perdeu-se no escuro do cais
à espera da partida do comboio.

Sob o disfarce da lua
somam-se cardinais mentidos
equações rítmicas no arsenal das ideias.

Ganhou o letrado.
Ganhou a criança.
Ganhou o furor da salvação dos animais.
Perdeu-se a bússola
e a errância ganhou lugar intempestivo
à espera da madrugada tardia.

Sob o disfarce da lua
modas contrafeitas numa passerelle sem chão
atiram as unhas baças contra o parapeito.

Ninguém sabe quem ganhou.
Ninguém sabe quem perdeu.
Nem se intui que seja empate o lábio dominante.
Ganhou a ilógica
na perda do tempero da alma
à espera da continência dos generais.

#562

E os ismos,
todos proscritos
no halo da redenção.

2.5.18

#561

Um perito em história do futuro
é um oráculo do avesso.

Maio com meio século de atraso

Destrato a púrpura chama
na incomum xávega que tomo,
minha proteção contra golpes invisíveis.
Obtenho o distrate
a compensação de um aforro demorado
na subtileza do tempo arrastado. 
Olho para o banco gasto do jardim
e noto na metáfora
de toda uma ideia de banca decadente.
O marégrafo que tenho entre mãos
acinzenta as ondas ainda timoratas;
que ninguém ajuramente
que o estado das coisas tende a melhorar:
à superfície 
uma espuma amarelecida
supõe o contrário. 
Os magnatas já não têm vergonha
ou o maio de sessenta e oito chegou
e silenciosamente
com meio século de atraso
a conspiração dos despojados 
encontrou militância nos jornais. 
No perjúrio da insubordinação,
com patrocínio de outros 
que o poder querem conservar,
um simulacro de equidade
como se pelas janelas 
cruzassem ares respiráveis. 
Desconfio
que na hora dos inventários
as cores continuam 
com os mesmos pergaminhos. 
E o destrate 
não embainhará 
nenhum distrate.

#560

Concentrado de alma:
as almas grandes
são as que medem 
até um metro e sessenta. 

1.5.18

Algodão doce

Imagino 
os corredores brancos
de um labirinto escasso
como escondem dos rostos os garfos gastos
como são hinos madrigais
ejetando balões coloridos para o céu
em contrafeitos esgares matinais.

Imagino
as doces palavras rimadas
os lábios ávidos de as dizer
as espadas despojadas
os moldes da perfeição impossível
os arbustos imersos na neve fresca
os intermináveis beijos quentes
a cama à espera dos corpos
e um compêndio de desejo
subjugado ao vulcão torrencial sob a pele.

Imagino
como são dóceis as crianças
os seus jogos não florais
a querença sibilina
o perjúrio dos chacais
e a habilitação dos tutores das almas
contra a desfeita dos deuses.

Imagino
como não haveria viver
sem o entardecer sobreposto ao mar
e um lugar ao lado meu
que é o lugar teu,
num uníssono apalavrar.

30.4.18

Clareira

Vejo ao fundo a clareira.
Esbracejo um lenço de neblina
até à medula das rochas
até ao musgo inacessível.
As mãos 
que servem para o adeus
colhem os frutos da ternura
na ossatura funda
onde se embainham os sentidos.
As mãos 
seguram esteios
são os próprios esteios 
de árvores fundidas no ocaso
bebendo a água fria
vertida desde a alta montanha.
Ao longe
cavalos nómadas espreitam o entardecer
e a neblina retoma seu lugar
no lenço de veludo 
de novo aninhado em seu bolso.
Da clareira ampla
uma reentrância escondida
cetro basilar dos segredos por contar.
Na clareira
onde se preciso temos o húmus 
vamos 
a despeito do tempo 
contra o imperfeito desenho das palavras
contra a síntese dos ardis disfarçados.

#559

Se ao menos
as espingardas bolçassem flores
e os figurões falassem em poesia.

29.4.18

Relojoeiro

O relógio treslido
o relógio parado:
a reinvenção do tempo
o magma irrompendo da pele
o invulgar atapetar das palavras
o amanhã desagrilhoado. 

O relógio bastardo
o relógio perdido:
a tenaz justaposta à cortina
o improvável desaviso da maré
um navio com as medidas por tirar
o retrovisor estilhaçado pelo herói sem vão. 

O relógio da igreja
o relógio pregado:
a pele rasa no murmúrio de um ribeiro
o cobre gasto no alpendre
o entardecer envelhecido
o deslumbrante desemparedar do luar.