12.6.06

Corpos febris no avatar do desejo

Os lábios sorvem as gotas de suor.
Extasiam-se, na languidez do acto.
Lá de cima
um solfejo ritmado incendeia o compasso.
Há na suave curvatura dos rins
a magia visual que destempera,
povoa o ensandecimento selvagem.

Pelas mãos, braço acima,
repousando no pescoço perfumado.
Às vezes o deleite emparelha-se
com a lentidão premonitória,
uma dança provocação alimenta o rubor.
Pelo meio,
beijos transpirados,
a vontade de selar o corpo que se desvela
a suprema vontade de a emproar imperatriz
do meu desejo.

É este acto animal:
poço de paixão.
Instantâneos irrepetíveis
campo vasto onde todas as rosas se avermelham
todos os ramos se erguem no viço imparável.
Um campo tão quente
altar onde se sagram os corpos entrelaçados
e vinga o desejo vibrante.

Sempre a redescoberta,
em mais um acto de poética luta dos corpos.
Realização pela entrega ao outro
pela entrega do outro.
Recíproca luz, ou não, não interessa:
apenas o império dos corpos
empossando o reinado da paixão
na exaltação carnal das veias que pulsam
à espera do jactante fim.

Por fim
o sossego no restolho da luta
que desarrumou os lençóis
fez tombar o candeeiro
empurrou os corpos para o tapete.
Onde jazem, vitoriosos,
por entre as despojos da batalha.
O olhar que se troca
sanciona o silêncio cúmplice:
os corpos foram senhores do seu desejo
sem espartilhos ou descaminhos
primeiro guiados pelo travo doce da pele
no grito tão alto do espontâneo sentir.

Os corpos, esses,
imperadores do canteiro carnal
onde
por momentos
os amantes se entregam
esquecendo-se
que o demais existe.

5.6.06

Lágrimas de ouro

As lágrimas coalhavam o sal da memória
eram lancis onde bordejava a planura do espírito.
Intemporais.
O sal turvado enriquecido pelo sabor dos poros
entretanto percorridos.
Das lágrimas furtivas, o espelho:
os olhos marejados
lagos imensos das lágrimas retidas.
Do choro entristecido
do choro amargurado
do choro dos desventurados do amor
ou apenas do choro da alegria irreprimível.

Sempre lágrimas
um mar chão que se perde
pele abaixo
na tez enrugada que absorve as lágrimas.
São fugazes, mas sofridas:
a muita dor que as percorre
extingue-se na curta vida em que se consomem.

Os teus olhos são testemunhas
das lágrimas sentidas que se soltam
batem asas
e escorrem uma gota esparsa.
As lágrimas
vertem o turbilhão de estados de alma contraditórios:
a dor de viver
a dor pela dor dos outros
ou apenas a comiseração pela felicidade de quem a tem.
São monumentos
elegias da intensidade do frémito
que as empurra no emolumento das emoções.
São aviltantes?
Jamais.
Telas tecidas
na espontaneidade dos afectos desencontrados
ou no torpor do deserto lancinante
ou na solidão condoída.

As lágrimas têm a cor que lhe queremos dar.
O verde da alegria incontida
moldada nas lágrimas altivas;
o negro de um luto sentido
a saudade da pessoa querida ora partida;
o amarelo doentio
dor que consome a pacatez do corpo
expele as lágrimas como expoentes da dor tão forte;
o vermelho das efervescências
mergulhos em desavenças que ferem
ou o pranto da humilhação que verga em derrota.

Mas as lágrimas juntam-se
no fermento de um só sentido:
salgadas são
sentidas saem
e lavam o espírito.

4.6.06

Emanharado enigmático

No emaranhado
tecem-se os caminhos.
Gelificam-se os dedos dos pés
de tanto errarem nas artérias escuras.
Algures
de onde os raios luminosos se desprendem
há-de estar a resposta.
Por agora
apenas o desconcerto das ruas erradas
o mistério por desbravar
escondido no enigma celeste.
As teias desdobram-se no escarlate gotejante.
As teias tecem-se em si
e dobram-se sobre os incautos que passam.
Eles
palmilhando o emaranhado,
apanhados no alçapão da translúcida teia
e na anestesia que os exaure.
Quem sabe
a teia que manieta,
a resposta para o emaranhado enigmático.

30.5.06

O labirinto sem saída

Os caminhos do labirinto
adocicam o desafio que é ser.
Na combustão lenta
o pavio consome-se em marcha repousada,
indelével.

São as intermitências que contam
não a lhaneza que irrompe, feérica.
Pode vir o fósforo, aceso,
acendalha da fogueira que se há-de consumir.
Pode vir, espevitado,
que as impurezas lhe não dão guarida:
as faúlhas tardam
escondidas no véu escuro
que demora na combustão.
Emparedado no vácuo latejante
nem com sopros alongados desperta.
Se, por instantes,
umas fagulhas esboçam espreitar
entre o negrume da lenha
assoma a humidade imperatriz a cercear a fonte.

O labirinto, insondável.
Nas encruzilhadas que se sucedem
nem o fogo altivo se distingue.
Houvera ele de aparecer a escurecer o horizonte
e uma pista teria para a saída.

Dorme ainda a fogueira
manietada pela humidade malsã.
Lá fora
na colina vizinha do labirinto
as cinzas não se libertam da letargia.
E enquanto o fogo não levitar a candeia do fumo
o labirinto permanece
prisão sem saída.

25.5.06

Afecto ausente

Desconhecia os encantos escondidos
mesmo ali, ao lado das ruelas por onde passava.
Absorto na modorra existencial
na atracção pelo precipício que as coisas contêm,
desmembrado de corpo e mente.

Aliás
por vezes
desconfiava que tudo em si
era desmembramento
– como se as pernas andassem para lados diferentes,
a cabeça ao contrário do tronco
a mão direita acima do cotovelo
as orelhas no fundo das costas.
Achava-se a pessoa mais ridícula do mundo.
E definhava
na lentidão dos assomos de esquizofrenia
por entre os passos trocados de uma dança ignóbil
nos abraços que nunca dera.
Esboçava esgares de cinismo
ao ver afectos trocados entre anónimos transeuntes.
Por andar distante de si a necessidade dos afectos.

Aliás
por vezes
desconfiava que a chacota dos afectos
era mais uma doença que o visitara:
a inveja por viver fora da casa dos afectos.
Desdenhava-os
ria-se para dentro,
gargalhadas que só ele ouvia,
ao testemunhar
uma mãe acariciando o filho
os namorados abraçados com ímanes
o padeiro e a familiaridade com o cliente
o velhinho entregando afectos a um cão vadio
o simples “boa dia” cortês do jornaleiro.
Mortificava-se
por sempre ter fugido dos afectos
encerrado nas masmorras onde se refugiou.
Delas não se conseguia libertar
como se um pêndulo pairasse, sem parar,
sobre a sua cabeça
no hipnotismo da perene ausência dos afectos.
No isolamento propositado
sabia-se consumido por desconhecer os afectos
as sensações não experimentadas
mas que ele augurava boas,
a julgar pela entrega das pessoas aos afectos.

Aliás
por vezes
queria-se emancipar das altas ameias
de onde a vista nada alcançava.
Em momentos de lucidez
– que confundia com ensandecimento precoce –
só desejava sair à rua,
sorver o odor das pedras da calçada
das flores acabadas de romper dos seus botões juvenis
e olhar nos olhos dos desconhecidos
entregar-se em beijos retemperadores
abraços apertados
presentes às crianças que as fariam mais felizes.

As masmorras acabam sempre por vencer,
a sua tenebrosa escuridão
que esconde os afectos
embrutece o esquálido desiludido da vida.
Resta-lhe esconder-se,
dormir muito;
que nos sonhos, ao menos,
pressente o toque mágico dos afectos com os outros.

Aliás
por vezes
Apetece-lhe jamais acordar
daqueles sonhos frondosos que,
no púlpito da alvorada,
trazem o amargo sabor da vereda espinhosa do resto do dia.

Velho adormecido

Descansa na esplanada
enquanto o tempo de esvai
como as águas do rio, lânguidas, para a foz.

Contempla a ponte
feita das pedras gastas
tão gastas como a sua pele tomada pelas rugas.

Os cabelos brancos que esvoaçam
dizem-lhe que houve tempo
em que a juventude foi rainha.

Agora, enquanto o tempo se demora,
bate-lhe à porta a nostalgia
povoada pelas recordações que ungem o presente.

Entrelaça os dedos das mãos
e sente a pele rugosa
a batuta das adversidades semeadas vida fora.

Refugia-se nos claustros da nostalgia
o impulso para a solidão em si
olhando a constelação de coisas pequenas de tanto dizer.

Por entre as memórias
as mais recentes, funerais de amigos que partiram,
o tremor que se apodera ao pressentir que a porta se fecha.

Apela à memória mais longínqua
iludindo o que o espera – e atormenta;
descerra imagens frondosas, sem rugas ou cabelos brancos.

Nesses tempos
o coração palpitava com força
e tragava com vigor todos os segundos do dia.

Uma gaivota com silvo estridente
desperta o velho para o dia de hoje
e vê, com os olhos cansados, as crianças que rejubilam.

Erro fatal invejá-las
que cada coisa tem a sua idade
e o tempo é o reduto do que já foi gasto, irrecuperável.

Por todo o lado
a brisa fresca arrefece as ilusões.
Sabe o velho que lhe resta esperar.

20.5.06

Fragmentos

As coisas na sua contradição interna.
A criança pontapeia a bola
que se perde do outro lado do muro.
A velhinha arqueada
atravessa a rua desamparada,
pára o trânsito.
As folhas outrora esverdeadas
estatelam-se no solo, agora acobreado.
Um cão vadio erra sem norte
conduzido por onde o faro o leva.
Há pessoas na rua
destinos inverosímeis
caras sorridentes
caras carrancudas
umas destilam desconfiança congénita
antipatia defensiva a rodos.
Há quem olhe para o céu
enquanto deixa escapar um suspiro.
Acaso anseiam que o avião que traceja o céu
as levasse para bem longe
onde pudessem achar outro destino.
O mendigo vasculha o lixo
sabe-se lá em busca do quê
empesta as mãos desnudadas
carcomidas pela desventura dos anos.
Nos seus olhos baços
petrifica-se a muda existência.
Tem o cão como companhia fiel
com ele partilha os seus parcos víveres.
É para ele que esboça o seu único sorriso
que outras almas humanas outrora
o deixaram em solidão cortante.
O mendigo cruza-se com a criança
levada pela mão da mãe pressurosa
que a aperta ainda mais com o mendigo próximo.
A criança olha, surpresa,
para os andrajos do mendigo
vê a sua barba avantajada e deslavada
o cão bem tratado no paradoxo do quadro.
A criança
desconhece a miséria
não lha foi contada nas histórias de embalar
quando o dia se despede no sono.
A mãe esconde-lhe a pobreza
só consegue adiar a curiosidade.
Há-de crescer
deixará de ser criança
entregue à aprendizagem de si
e do mundo lá fora
tão habilmente sonegado pela mãe diligente.
A criança, já crescida,
perderá aviões na azáfama da jorna preenchida;
olhará para o lado quando a velhinha caduca clama,
na sua muda voz,
pela ajuda para atravessar a rua;
terá o incómodo de partilhar o passeio
com o cão vadio que vagueia, errante;
ficará insensível ao mendigo
estendido no chão
estômago ferido pela ausência de alimento,
de mão estendida pela piedade alheia.
A criancinha
já adulta,
terá apanhado o avião do fausto
cortinas cerradas para o lado fétido da vida.
A mãe zelosa,
culpada da encenação do mundo,
deita-se todas as noites
na ilusão de uma consciência aquietada.

Fragmentos

As coisas na sua contradição interna.
A criança pontapeia a bola
que se perde do outro lado do muro.
A velhinha arqueada
atravessa a rua desamparada,
pára o trânsito.
As folhas outrora esverdeadas
estatelam-se no solo, agora acobreado.
Um cão vadio erra sem norte
conduzido por onde o faro o leva.
Há pessoas na rua
destinos inverosímeis
caras sorridentes
caras carrancudas
umas destilam desconfiança congénita
antipatia defensiva a rodos.
Há quem olhe para o céu
enquanto deixa escapar um suspiro.
Acaso anseiam que o avião que traceja o céu
as levasse para bem longe
onde pudessem achar outro destino.
O mendigo vasculha o lixo
sabe-se lá em busca do quê
empesta as mãos desnudadas
carcomidas pela desventura dos anos.
Nos seus olhos baços
petrifica-se a muda existência.
Tem o cão como companhia fiel
com ele partilha os seus parcos víveres.
É para ele que esboça o seu único sorriso
que outras almas humanas outrora
o deixaram em solidão cortante.
O mendigo cruza-se com a criança
levada pela mão da mãe pressurosa
que a aperta ainda mais com o mendigo próximo.
A criança olha, surpresa,
para os andrajos do mendigo
vê a sua barba avantajada e deslavada
o cão bem tratado no paradoxo do quadro.
A criança
desconhece a miséria
não lha foi contada nas histórias de embalar
quando o dia se despede no sono.
A mãe esconde-lhe a pobreza
só consegue adiar a curiosidade.
Há-de crescer
deixará de ser criança
entregue à aprendizagem de si
e do mundo lá fora
tão habilmente sonegado pela mãe diligente.
A criança, já crescida,
perderá aviões na azáfama da jorna preenchida;
olhará para o lado quando a velhinha caduca clama,
na sua muda voz,
pela ajuda para atravessar a rua;
terá o incómodo de partilhar o passeio
com o cão vadio que vagueia, errante;
ficará insensível ao mendigo
estendido no chão
estômago ferido pela ausência de alimento,
de mão estendida pela piedade alheia.
A criancinha
já adulta,
terá apanhado o avião do fausto
cortinas cerradas para o lado fétido da vida.
A mãe zelosa,
culpada da encenação do mundo,
deita-se todas as noites
na ilusão de uma consciência aquietada.

Manifesto da rebeldia militante

Amotinados
rebelam-se no ardor das causas.
Entregam-se às faíscantes lutas
desenfreadas bebedeiras
ideia emproada em razão só,
sem contestação.
Rebeldes
feridas por cicatrizar
pela relutante caminhada
por janelas com vidros quebrados
cravados na pele rija das palmas dos pés.
Ensandecidos parecem
ao puxar o lustro à razão das ideias.
Cegados por uma vara lancinante
andam aquém do discernimento,
fugazes entre as constelações do ser.
Emparedados no rigor da doutrina
agrilhoados a estreitos túneis escuros
onde a luz não ousa penetrar
tão pesados os muros
tão densa e fétida a atmosfera.
Amotinados
no suave apascentar da modorra
protestam,
a voz alta,
contra a acalmia anestesiante.
Tudo o que querem
é romper com as águas paradas
que se abeiram da estagnação letal;
outro quadro sem dóceis consentimentos
pessoas falantes sem o estigma do rebanho
que segue,
ordeiro,
pastores aviltantes.
Domina-os o método:
não o admitem,
acaso a pardacenta existência mudasse
e almas recobrassem o hélice enérgico,
eles iriam em busca de outro paradigma
outro furioso desencontro com a normalidade.
Eternamente insatisfeitos
neles
(e por eles)
fermenta o desprazer.

16.5.06

Gato atropelado

O gato morto
preto
a ser retirado da estrada.
Um homem
papel na mão
pega o gato pela cauda.
Sepulta-o na relva imunda
de beira de estrada.
Desfaz-se do papel
cospe para o chão
o ritual no nojo do acto.
O cadáver
ao menos
descansa do esquartejamento
por apressados automóveis.
Não será um enojado e indiferenciado
amontoado de carne triturada
a esvanecer-se com os rodados
que martirizam o que já nem cadáver seria.
O destino fatal do gato:
mais honroso
na coragem daquele homem
que dignou o apodrecimento final
do cadáver do infeliz gato.
A desdita tem momentos de sorte.
E vale alguma sorte
quando
cadáver já feito
ao bicho
a indiferença dos despojos?

14.5.06

Violinos dançantes

Canta-me a tua voz
o som melodioso
das cordas de um violino
debruado a ouro.
Os sussurros que entoam no ouvido
a mágica melodia da voz convicta
voz cálida que aquece os sentidos.
Vale a voz por mil instrumentos
como se orquestra fosse.
Uma afinada orquestra
que povoa o imaginário
com paisagens verdejantes
o céu pontuado por nuvens arquitectónicas
os montes que anunciam
férteis vales onde se descobre o rio
que retempera os sentidos.
Lá, onde as rãs coaxam
e os pintassilgos vivificam melodias piadas
onde a tua voz
me conta as coisas que quero ouvir.
Os acordes soltam-se
na finura das palavras selvagens.
Escoam-se com o tempo;
pudessem emoldurar o tempo
quando elas faziam acreditar
que vivíamos numa fotografia do tempo.
As ilusões são isso mesmo:
enganos dos afectos
emoção que deslumbra os sentidos.
A musicalidade da voz,
na entoação sublime das cordas dos violinos,
apenas uma dança imaginada
no tempo em que as ilusões eram reais.
Guardo na memória
a melodiosa voz que pertencia às ilusões.
Retenho comigo
o violino de onde essa voz se soltava.
E se a frieza de um coração empedernido
repôs a ilusão no quarto das recordações
tenho em mim o violino harmonioso;
não vá dele necessitar
por as ilusões reclamarem espaço
algures
num destes dias.

9.5.06

Sagração da alvorada

Os primeiros raios de sol
anunciam a luz clara.
Tonifica-se a alma
tinge-se o espírito com a frescura matinal.
Há na alvorada uma magia incomensurável.
Quando chega, discreta,
rouba a noite escura.
As cores e os odores renovam-se no que são.
Ganham vida
e emprestam-se ao ambiente
sequiosos da simplicidade da luz solar.

Primavera.
Amanhece mais cedo.
Os olhos estremunhados acordam
bebem a renovada luz do dia
pespegando o sol que,
breve,
alto vai cintilar.
Quando a alvorada gentil cedo se levanta
há um canto do dia escondido
na penumbra nocturna que ficou atrás,
derrotada na luz triunfante.
Vaga imparável
esquadrinha os cadinhos do céu.
Pinta-o de azul.
Antes há-de tingi-lo,
por instantes,
no alaranjado rubor do sol
que trespassou o breu nocturno.

Os pássaros acordam primeiro.
Deliciam-se com a mágica alvorada
no chilrear exuberante nas copas das árvores.
Pressentindo a luz caridosa
as flores soltam-se do resguardo nocturno.
Pássaros e flores
mão dada com a alvorada,
hospedam os transeuntes
(ainda a sair da letargia do sono)
para o dia frenético na cidade desassossegada.

Quando o sol se põe alto
já adolescente,
a alvorada despede-se na manhã.
Sem o encanto da alvorada branca
nem o sossego das ruas desertas.
Fina-se a alvorada
quando as ocupadas almas
batem a porta de casa e saem.
Vigorosas ou contrariadas,
apressadas ou lânguidas ainda,
para a rua já fremente.

Outra alvorada à espera
ciosa da luz
primeiro trémula, depois refulgente.
A saciar o apetite dos fogosos e indomáveis
amantes do bodo da vida.

8.5.06

Sapiência dolorosa

Unges a tua erudição,
pérolas agraciadas aos incultos permanentes.
Colocas-te no Olimpo dos sapientes
tradutor da instrução dos asnos impenitentes.

Deambulas nas danças insondáveis
pequenos os passos incompreensíveis.
É na erudição tão elevada que te refugias.
Até de ti mesmo.

Um dia,
tão inebriado
com assanhado conhecimento
esqueces-te de pôr o olhar em ti mesmo.

Ao despertares das incuráveis tarefas
da sapiência que espalhas,
vês ao espelho quem não reconheces.
Já não és tu, apoderado pela criatura em que te tornaste.

Virá o tempo da redenção.
Livros, enciclopédias,
mais os dicionários,
estulta matéria-prima de um desassossego.

Virás a tempo de recuperar o tempo?
Emancipação do castelo onde te aprisionaste
tocar nas pessoas, ora de caras belas
ora horrendas faces com verrugas e tudo mais.

Falar, sair do altar, caminhar
andar por sítios escondidos da tua torre de Babel
e saber que a ignorância que foi teu combate
é a aura de um povo tão feliz.

Só não saberás:
se renascido estarás
ou endemoninhado pela cruz que te crava
chaga ardente bem fundo.

6.5.06

Sonho, loucura

O sol de rompante tingido de vermelho.
A ruborizada cara da tímida desmascarada.
Máscara dos foliões do Carnaval das ilusões.
O desengano acometido aos passionais militantes.
A crença cega: ideias, pessoas, superstições.
O gato preto escondido dos que o esconjuram.
A ignorância que fermenta com a bonomia dos incautos.
Olhos fechados ao mundo, acríticos seres que vegetam.
Anomia interior que desagua num árido deserto.
Pisam areais escaldantes,
as areias que espalham miragens encantadoras.
Ensaiam sonhos do que não são.
Em miragens mais se revolvem
como se as areias crepitantes fossem
os lençóis que os aquecem.
Contemplam estátuas grandiosas
que só aparecem diante dos seus olhos.
Estátuas que enobrecem feitos impossíveis.
Quando acordam
assustam-se com a exiguidade do quarto que os aprisiona.
Amordaçados,
sem acesso à palavra que chama por socorro,
das amarras da camisa-de-forças já não se libertam.
Quando beijam a acalmia
percebem a ilusão dos sonhos que os mantêm ligados à vida.
Apetece cerrar os olhos
mergulhar no profundo sono,
sorver os sonhos idílicos,
paisagens brancas,
onde tudo é alvura
(o céu, as estrelas, o mar, a relva).
Como branca é a nuvem onde levita a liberdade esquizofrénica,
apenas uma liberdade onírica
fantasiosa
nua
na crueza do nada que bafeja bem alto
quando os sonhos já estão a pedir para serem sonhados
outra vez.
Aí sabem que levitam
na leveza que jamais os visitara,
passos lentos que pousam em nuvens almofadas.
Lá, onde as pessoas têm faces límpidas
olhos encantados pela luz pura;
onde os dedos se entrelaçam no afecto irreprimível.
Com o tempo
aprendem a viver espoliados do discernimento,
a droga vital e adorável
lenitivo da aquietação compulsiva.
A tranquilidade exasperante que nunca incomoda,
trajecto sem curvas nem encruzilhadas,
cumprido a eito, sem esgares,
ou um mar nunca encapelado
nem quando o vento fresco se deita
no mar que teima em ser chão.

Fogem,
fogem das coisas que são
das pessoas que existem
fogem deles mesmos quando fantoches alheios se tornam.
Ou apenas fantasmas propositados que se ensimesmam.

2.5.06

Ode à vida

Há almas que encontram paz na morte.

Sei que virás.
E sei que preparado não estarei
para te receber.
Pintam-te de negro.
Esconjuram-te, ensandecida és,
por desapertares os nós da vida.
Doentia e fatal
chegas um dia e ceifas a respiração.
Saltitas entre a penumbra,
para que ninguém te veja quando,
traiçoeira,
sorves ingénua alma para o alçapão.

Tu chegas a todos os mortais
que o são,
terrena e frágil condição,
por tu seres o que és.
Vestes de negro
quem chora a perda de quem levaste,
antecipando o choro invisível
da sua própria partida,
quando decidirdes que o indómito dia chegou.

Por tua culpa
vilipendiam o preto,
tu que cobres com manto de tristeza
os que sofrem com a despedida de quem levas
contigo.
Desapiedada,
dizes-te fiel da balança,
penhoras o equilíbrio da espécie.
Dizes-te
cultora da demografia aceitável.
E contudo
és cega quando tomas em teus braços
os mortais que o deixam de ser
quando se despedem dessa condição.
Será por isso que te dizem traiçoeira?

Por mim podes vir quando quiseres.
Convenço-me que sim,
que podes vir quando quiseres.
De preferência,
sem hora nem dia marcados.
Cá estarei,
não de braços abertos,
na jactante luta contra ti.
Há vida tanta por viver
que um sopro resoluto te afastará
Para algures,
um sítio que nem sei onde.

Virás,
as vezes que vieres,
e terás um obstinado amante da vida
insaciável no apego das coisas,
das pessoas, dos afectos.
Insaciado ainda por tanta vida haver.
Esse é o bolor que te incomoda,
ó morte tenebrosa:
para longe,
longe do horizonte.

30.4.06

O quarto gelado

Num losango iluminado
rangem os dentes,
tiritam com o frio não aquecido
pelo losango.
Lá pertencem
os ossos dobrados
pelo ressequido, gélido ar que dói.
Nem agasalhos
nem uma bebida quente
para resgatar os corpos do torpor.

A noite longa promete saga interminável.
Os corpos abandonados ao gelo
olham para a fumarola soltada
pela respiração resignada.
Na janela depositam-se os cristais de gelo.
O ar límpido
desnuda a lua cintilante,
empresta a nitidez ao ar cortante.

Naquele quarto
apenas o silêncio quebrado
pelos corpos incomodados
– que se movem no encalço do calor
no ensaio da ilusão do frio translúcido.
Ou o silêncio violado
pelo gemido dos dentes,
pelo frio tão letal.
Os corpos aninham-se
fossem adivinhar que o ninho
descobre uma réstia de calor.

O gélido chão entra pela carne
apodera-se dos músculos
enraíza-se,
toma conta dos ossos.
Algures a meio da noite
a dormência latejante anestesia os sentidos.
Dedos que não se sentem
o frio que deixou de ser uma dor
ou os sentidos que se ofuscam.
Alucinam os sentidos
enganando os corpos já entorpecidos.

Ou se apressa a aurora
ou o fantasma da despedida acena,
sorrateiro e indesejado,
cruzando as paredes de madeira.
Ou se apressa a aurora
semeando a luz que afugenta
as armadilhas dos precipícios,
ou o maior dos cadafalsos,
ali encerrados,
no refúgio derradeiro.

A luz aguada do losango
mantém os olhos acordados.
Impede que os olhos se recolham,
quem sabe?,
no derradeiro adormecimento.
Tomara
que luz tão tímida
franqueie o portão ao majestoso sol.
A alforria daquele cárcere necessário.

26.4.06

Frágil incerteza

Que mistérios explicam a fragilidade
de uma massa tenra e, contudo,
pétrea?
Por mais voltas que dê
não sei onde encontrar
a nascente da fonte que me sacia.
Revejo as voltas que a água dá
montanha abaixo:
plácida no estio
vertiginosa no dilúvio que se deita
nos contrafortes da serra.

Ainda que os olhos sejam as testemunhas
da dureza da pedra
os recortes da água descendente
desnudam a fragilidade da granítica serra.

Nem sempre a vista alcança:
onde se esconde a fragilidade
na penumbra da imperturbável rocha,
ou a coriácea força que levita
de um corpo tão frágil.

Um quadro
com as pinceladas da antinomia,
onde as coisas certas estão fora do lugar.
Nem as certezas são seguras
na indefinição dos termos.

É a altivez das coisas que se redescobrem
não no seu contrário
mas na sua essência esquadrinhada.

22.4.06

Louco errante

Vagueia, perdido.
Nem sequer carente
de um ponto cardeal
na bússola que não tem.

Desencontrado da lucidez
mete fala com os passeantes
remexe o lixo
e nada nem ninguém procura.
Deambula em desnorte
nos andrajos propositados
calças desafiveladas varrendo a sujidade
camisola coçada e rota
manchas de vinho tinto nas mangas.

Erra pelas ruas da cidade
desafiando a placidez dos bem-postos cidadãos:
uns incomodam-se
desviam a cara no refúgio da hipocrisia;
outros guardam a perturbante imagem
não se desenvencilham do incómodo.

Com um esgar alucinado
assusta a criancinha que passa.
Da progenitora tão protectora
vem a reprimenda ao louco,
dedo em riste,
“que maçada, que maçada”.

Atónito,
o louco errante
fecha-se na luz escura
do quarto de onde nunca saiu.
A criancinha,
um petiz como ele,
a guisa de brincadeira
que apressados adultos de dentes cerrados
não são mestres.

O louco não se entristeceu.
Nunca marcou encontro com a tristeza;
nem sabe onde encontrar a alegria.
Tristeza, alegria, choro, riso
acidentes no mapa que tacteia
pelos anos fora.

Saltando de passeio em passeio,
ora querendo ir em frente
ora ameaçando que recua,
o mundo insondável do louco errante
tresmalhado do rebanho dos lúcidos.

Irado parece
na prisão dos tortuosos becos onde desagua.
Ou apenas a suave opressão da tranquilidade
não ser achado nas contas dos deveres
que aos lúcidos pesam.

20.4.06

Voz salgada

As palavras levitam
atiram para cima de todos
o sal quente da tua boca.

Tanto há-de ficar por ouvir
mais o sabor perdido do sal
das palavras por entoar.

Pelas articuladas palavras
que ecoas,
as algemas de ti mesmo.

Sobem dos pulmões
vomitadas com o ar ofegante
dos sentidos alterados.

É o sal da vida,
emoções desenfreadas
sorvidas no cálice frio.

Essas palavras,
mais as que estão por dizer,
o cativeiro dos empenhados.

Extasiam-se,
como se salgada
fosse a plenitude da vida.

Nos sonhos e nas evocações
é essa voz salgada
que desfralda no alto mastro.

Voz que açambarcou
todo o sal de todos os oceanos,
agora só um legado de insípida água.

Houvera alguém de aprender
a destilar o salgada tua voz
e a desdita firmada na pequenez das palavras.

O sal da tua voz é o ouro valioso
o penhor da grandeza das palavras
que soam, cantadas, com o sabor salgado.

19.4.06

Espólio

As cinzas adornam as páginas dobradas.
Um restolho que passeia na memória,
o espólio do tempo fugido.

Na máquina do tempo
as imagens percorrem a tela
fogem quando as quero reter
por uns instantes.
Recordações
que fazem esboçar um sorriso,
ou
experiências dolorosas,
quantas vezes de uma dor procurada
como caçador furtivo
persegue a sua presa.

Eram tempos
em que a tristeza
não queria viver abandonada.
Tempos
do ar plúmbeo
cores carregadas com as sombras
sempre presentes.

Desse tempo
guardo feridas já saradas.
Revejo as cicatrizes abertas
o vermelho carmim do sangue exposto;
revejo-as
património da indecisão,
o fausto manjar da perturbação
sorvida com deleite.

Desse tempo
apenas o restolho que foi pousando
com a calmaria dos anos.
O espólio nos meus braços,
enternecedora imagem
do ontem não renegado.

Apenas vontade:
não dedilhar as páginas para trás
deixá-las inertes no seu sono eterno.
Houve tempo que passou:
empedernido
esquálido
emoldurado
numa fotografia que retenho,
o sopro gélido que petrifica a memória.

Só isso,
e nada mais,
quero do tempo ido.

18.4.06

Vulcão domesticado

A aeronave filma o vulcão,
temerária,
no voo de pássaro.
Mostra a cratera do vulcão
como ninguém a descobre
do sopé da encosta.
Uma larga boca
vomita as fumarolas
que adivinham lava incandescente
a ser regurgitada
– só não se sabe quando –
das entranhas da cónica montanha.

O cinzento
tomou conta da paisagem.
Cobre-se com os fumos
fugidos das frinchas que irrompem
das basálticas rochas.
A montanha troa,
irada,
assusta quem não a conhece.

Os nativos,
habituados ao mau humor do vulcão,
convivem com a feérica actividade.
Não querem temer
a distracção dos elementos:
o arrebatador mar de lava tórrida
ladeira abaixo,
tragando o que encontra
até repousar no fim do declive.

Têm pesadelos:
o vulcão,
furioso,
a vomitar lava que explode
num tétrico fogo-de-artifício.
Na aurora humedecida
olham de relance para o vulcão.
Fitam o cume
na ansiedade de quem clama
pelo sossego da grande montanha.

Sé então,
serenados espíritos,
descem os olhos
pelos contrafortes da montanha.
Há gerações
sempre o mesmo ritual:
um coração inquieto
pulsa veloz
desperta dos pesadelos
com a aura da bela montanha.

Tementes,
orando todos os dias
para que um bom deus os proteja
de um vulcão que promete
despertar.

11.4.06

Mar arrebatador

Desta terra
levo comigo o oceano.
As lágrimas que nele tumultuam
com a espuma fina que se perde
nas rochas enegrecidas.
Todo o sal que cristaliza
nas pedras gastas pela fúria das ondas.
A dor,
a dor sussurrada
pelos gemidos das ondas em dias de tormenta.
O odor da maresia
que invade a ossatura
nas húmidas noites de Verão.
À mistura com o nevoeiro
que se alimenta na maresia invasora.

Desta terra
guardo as imagens do mar tão belo.
Dos pescadores
e da sua imperial paciência,
das traineiras que fogem do rio,
remam contra a embocadura do estuário,
como quem se mete na boca do lobo.
Das gaivotas
em coreografias dementes
na demência de quem busca alimento
entre os restos já desaproveitados.

Desta terra,
o mar,
ou apenas
o longo lençol azul
que se deita na calmaria da brisa.
Longo mar,
infinito horizonte,
o travo ora doce, ora amargo,
demoníaco ou sublime
curador de exaltações singulares.

Partirei,
levando em mim
a lembrança
de toda esta água salgada
que inspira.

Nos meus olhos
todas as gotas do mar imenso.

9.4.06

Roseiras bravias

Das roseiras
o bailado de odores.
Ungido pelas pétalas
que foram leito
das dóceis gotas do orvalho
nocturno.
O sol da primavera,
já alto,
fornalha incandescente
que devolve o orvalho
ao etéreo.
Reluzem as pétalas
das rosas douradas,
tingidas num quadro de ostensiva
beleza tranquila.
Singular sabor
hibernação nutrida
na coreografia
das cores
e dos aromas
das rosas.
Para quem as quiser contemplar.

4.4.06

O navio candeia

Quando era pequeno
o navio aportava nas águas calmas.
Trazia no porão
o sal das terras distantes;
a miragem de terras
que nunca hei-de ver.

O navio
com a escolta de rebocadores
extasiados com a visita.
Já não sulcava as águas paradas,
empurrado pelos bravos rebocadores
até ancorar no cais velho.

Mostrava o garbo
da muita mercadoria empacotada
nos enferrujados, sujos contentores.
Ficava parado,
dias,
à espera
da lenta marcha dos estivadores
do langoroso desembarque da mercadoria.
Esvaziado de algum conteúdo o navio
outra se encavalitava
nos corredores desamparados.

Dava o navio
notícias do progresso do mundo.
Para mim
o repositório do navio vagarosamente
entrando no porto
hasteando uma bandeira colorida
que esbraceja tão devagar,
no ritmo de uma brisa
inesperadamente tranquila.

Envelheci.
Perdi o rasto do navio.
Só não sei
se a falta de tempo
– ou a desventura do navio ter fugido da minha vista –
selou o decesso do grande barco.
Não sei
se foi desmantelado
num longínquo estaleiro
nas águas gélidas do Báltico.
Ou se a surpresa reserva mais visitas
que saltam fora da minha órbita.

Qualquer dia
estou de visita ao porto.
Espero pelo navio
como quem espera por regressar
à infância deixada lá atrás.

No tempo do rasto perdido.

3.4.06

Parque das nações

A suave doçura das framboesas
crepita.
Contrasta com a acinzentada luz
das nuvens que escondem,
tímidas,
o temerário sol.
Lá fora,
as pessoas passeiam
digerem vidas atribuladas
esventram as sinuosas curvas da vida
no gelo quebrado pela tepidez
primaveril.
Não as crianças:
na algazarra
só conhecem a inocência da bondade.
Os mais velhos
ora repousam na esplanada
ora palmilham a calçada que adeja o rio.
Dão tréguas aos espinhos aguçados
cravados na garganta sangrada.
A hora do descanso,
refrigério dolente
um tempo que apetece imortalizar.
Não,
os espinhos crivados
não derrotam os sentidos;
só o perfume das framboesas
repousando na boca
no hiato das adversidades.
Oxalá
todo o tempo fosse
captura dessa
bonomia.

(Lisboa)

28.3.06

Perfume

Na tua pele
o aroma exaltado das amoras.
Fragmentos,
alva ou ruborizada
apetece tragar as pétalas perfumadas
soltadas de cada poro.

Às vezes adormeço sobre ela.

No vento soprado
vem o hálito que reconheço na tua pele.
Ou nas velas que incendeiam a noite escura
o odor roubado à tez esbranquiçada.
Um percurso sem espinhos,
aveludada avenida,
tactear vagarosamente os centímetros da tua pele.

Ungida pelos dedos extasiados
com a fragrância de morangos silvestres,
tágide que recobras os sentidos.
A pele adormece
saciada nos sentidos
e a cabeça repousa no leito que ela oferece.
Vertem-se as lágrimas enxutas
e a tua pele é o santuário onde os dedos
sabem dançar.
Esboçam estátuas imaginárias
contornam as curvilíneas dobras
que escondem mais mistérios.

Na repetição dos dias
há sempre novos segredos
resguardados na tua pele.

21.3.06

Dez minutos

Dez minutos
para dizer poesia.
Para estender a mão.
Olhar bem fundo, nos olhos de alguém.
Dez minutos chegam
para cativar a temperança.
Pequenos gestos
fortuitos ou pensados
espontâneos ou provocados.
Nos dez minutos
em que a nuvem passa
encobre-se o sol
e as cores tingem-se de sombra.
Nem assim,
dez minutos algures e depois,
o rasto da luz se perde no sempre.
Dez minutos
Hão-de tardar senão
em derrotar a sombria obstinação.
Tarefa singela:
Só, e só apenas,
dez minutos de contemplação.

14.3.06

Lampejos da primavera

As cores enrijecem
no troar da cálida temperatura;
anúncio da invernia que se despede,
em breve.

O cansaço do frio que torce os ossos
e da chuva-sempre-demais
– mesmo quando rareia –
apregoa outro hemisfério.

Pássaros
em voos inebriantes
cantam a alegria de contágio às pessoas,
em breve.

Das árvores
desponta um tímido, mas alegre, bouquet
o perfume que abre a porta
do armazém dos pesados agasalhos.

As pessoas soltam-se do acabrunhamento
no aligeirar dos corpos
que querem respirar
por todos os poros abafados pela invernia.

7.3.06

Desintoxicar

Fugir
no tempo que há
longe da matilha palavrosa
sem saber onde
é o refúgio.

Cura de desintoxicação
e demanda do belo
que rareia
como volúvel é o ar na altitude
da montanha.

A singeleza de pequenos passos
como se o terreno
pudesse ser dedilhado
e todas as pequenas pedras
apanhadas do solo.

Em todas elas
a impureza escrita
do solo pedregoso e sujo;
retiradas ao solo
purificadas na mão hospedeira.

Pequenas pedras
disformes, angulosas,
disfarce da putrescência
que clama o refúgio,
pedras agora debruadas a ouro.

5.3.06

O outro lado do espelho

Os olhos retratam o que vês
deste lado do espelho?
Será um sonho, a visão
deste lado do espelho?
Seja a fantasmagoria
que te acompanha;
ou a fuga do cenário medonho
que te leva a ver as coisas
deste lado do espelho
– quando, afinal, estás do outro lado do espelho.

O corpo não te deixa passar a linha
deste para o outro lado do espelho.
Quando cerras os olhos
e mergulhas no denso sono
duvidas de que lado do espelho
te encontras.
Tudo, apenas,
uma miríade de incógnitas.
Se certeza há é a ausência
da certeza.
És dois hemisférios,
dividido entre ambos os lados do espelho.

Ponhas o pé de um lado ou do outro
inquietam-te as sombras doentias
de te saberes abandonado do lado fugidio.
Percebes as vozes que gritam
do lado de lá do espelho,
a confusão de palavras que se atropelam
a absurda linguagem sem sentido.
No lado em que ficas
só há silêncio
um silêncio que ensurdece
os ouvidos repletos de loucas vozes
que vozeiam palavras vãs.

No sono
a moldura de um pesadelo:
a encenação do que acreditas ser
na vida em que estás acordado.
Quando a aurora te resgata do sono
a inércia da desrazão fala alto:
se quando sonhas
não são apenas sonhos de que sonhas
um turbilhão que te sufoca
em camadas mais densas
de te não saberes existência.

De olhos no espelho
sempre com a inquietante lucubração
de que outros olhos,
porém teus também,
te fitam
do lado de lá do espelho.
Na louca ansiedade loquaz
levantas o espelho:
só parede.
Nem o reverso do espelho
alguma coisa esconde,
a não ser uma tela acastanhada
o biombo do outro lado do espelho
um mistério por revelar.