31.1.17

#129

Nem facas afiadas
nem terramotos tiranetes
nem marés vivas:
nada se opõe
à inteireza-ossatura.

Os eleitos

Das folhas frescas
no parapeito do orvalho
sobra um pedaço da manhã
como se houvesse carestia 
em lembrar a manhã. 
Num amontoado de nuvens rasantes
medra o néctar procurado
os dedos ungidos por préstimos não sofríveis
o peito cheio de vida cheia
um desfiladeiro apreciado desde o fundo vale
um caule decadente de uma flor 
arrancada ao chão
as pessoas de cujas vidas se sabe nada
um nada concentrado nas páginas não abertas 
de livros que esperam vez. 
Oxalá o chão fosse atapetado 
por pétalas lilases
pétalas que derrotassem os pesares amorfos, 
que não capitulam. 
Como se fosse preciso
levantar estátuas imediatas
a heróis sem probabilidade,
eleitos sem eleição
no mais puro hiato
entre a indolência dos povos
e uma soberba linhagem
sem gente por representação. 

30.1.17

A chama

Pois,
a chama.
Delicodoce.
Como um abraço.
Sentinela.
Na atalaia urgente.
Com os braços quentes
sem estiolarem no inverno.
A chama.
No crestar dos ramos secos
a fogueira repleta.
Sem chama vivaz
o pasto mortiço.
E na chama
as sementes loquazes
um esteio escorado
as cinzas testemunhas
o dorso orgulhosamente retesado.
A chama que chama
pelos corpos serenos
em sua feição celeste
domadores dos mares irados.
A chama, pois.
Trezentas noites urdidas
sem a pele macilenta
apenas por dentro dos olhos ardentes
dos olhos que resplandecem
a chama.
Leva os latidos dos cães vadios
levanta o abraseado da alma
limpa os corredores esquecidos do pensamento
nas levadas alcantiladas
nos sopés majestosos
nos luares quiméricos
nos lugares vazios, até.
Sem a chama
condenação ao arrefecimento global.

#128

Contra os testemunhos capazes
mordi a pele dura dos demónios
numa elegia aos contratempos. 

29.1.17

Marégrafo

Será que somos como nós
– a pele escondida
feitios vorazes
cores embebidas
vinho que não se adia
olhares sobre as coisas
corpos transidos?

Não importa
se somos como a linhagem herdada.
Só importa
sermos o que vier na rede
no púlpito da vontade
no sereno beijar do mar às pedras do cais.

Juramos não atraiçoar
a não ser a linhagem reverberada,
de dentro para fora.
Até que os impolutos jurados
sentados na sua sentida cátedra
se desmoronem corroídos por uma podridão
do tamanho do seu atavismo.

Nós somos fautores
dos nós que em nós de desatam
e repercutimos na tela as tenções que marejam
nos interstícios das veias.

28.1.17

Alpinismo

Um dia
subi a um choupo
(logo eu,
que nunca havia trepado a árvores)
um choupo centenário,
a julgar pelo porte.
Vesti
a roupa mais grossa que tinha
(apesar de ser um dia de verão)
e levei dois livros ao acaso
e um agasalho para a chuva
(não fosse demorar-me
no cimo da árvore).
Lembrei-me dos gatos
que sobem céleres às árvores
ao fugir dos cães famintos.

27.1.17

Epicentro

Imaginasse um epicentro
onde todas as coisas abrissem as asas
asas em que fosse possível deitar
e deitado voasse sobre um mapa.
Do epicentro
partiria com sede do mundo
dos idiomas desconhecidos
e dos rios e estradas e paisagens em espera.
Seriam,
esses lugares,
meus epicentros nómadas
em constante mudança
em constante demanda.
Pois o epicentro
é o lugar de onde nos vemos
numa certa medida do tempo.
Seria o trunfo ágil
para uma ataraxia
(que se força)
clandestina.

#127

Não é distante o céu
quando à mão
temos a terra que apetece.

26.1.17

Arco do triunfo

Balbuciam
as cores entranhadas
em coros sem rosto
em árias pontuadas por grilhetas sem nó
em nós,
que sabemos ser ouvintes.
Coram na aposia irrecusável
em iracundo devaneio
contra as paredes estimadas
contra o vento sem freio.

Talvez se saiba à noite
as cordas atenuadas do sopor
as imagens diáfanas de crianças sem maldade
as montanhas sucessivas sem firmamento
e o rio estroina que escarva seu caudal.

Quem sabe
as feridas insanáveis sejam sinal?

Desaproveitem-se
elogios-marasmo
engodos que espreitam nas esplanadas
sapatos sem tamanho para os pés
ideias em saldo
betuminosas personagens desinteressantes.
Os murmúrios quentes
afagam o sono adiado
e os olhos fundos chamam
no chamamento mais fundo de que há saber.

Diante do resto
tudo é menoridade
tudo é pasto sem seiva
tudo é mar sem vista para a cidade.

Oxalá não haja mapas queimados
entre o restolho do outono
e o olhar fundo,
emergindo das funduras da alma,
coabite na perenidade do tempo.

25.1.17

#126

“De fonte segura”
– garantia o plumitivo.
Apiedei-me das fontes em escombros,
as pobres,
sem direito a meia palavra.

Céu limpo

O sorriso maresia
destapou-se do baú empoeirado
na cintilação própria dos predestinados. 
Não queria saber dos dizeres alheios
nem das lotas onde se mercavam rumores. 
Não queria nuvens ácidas
nem bastiões de certezas impagáveis 
nem teclados adivinhados
nem adivinhas sem paredes.
O sorriso desfraldado
(discreto, porém)
era o trono vívido
nas Mecas inventadas ao redor do luar. 
O património inteiro
guardado a sete chaves
dos azougados discípulos das árvores citadas
por cima dos sussurros
na esteira fundeada ao mais fértil chão. 

24.1.17

Fio de prumo

Em tempos
fui arquiteto das estrelas.
Depunha as mãos numa mina seca
e conseguia trazê-las molhadas
deixando água aos vindouros.
Em tempos
cinzelando as arestas das estrelas
fermentei o sal das dunas
sob o olhar inquisidor do sol superior.

À maresia
ia buscar as lágrimas
enxugadas contra as rugas da fazenda gasta.
E nem que visse crianças em prantos
as bainhas da alma se descompunham:
tal era um estado transitório
pois não há água que chegue no mundo
para prantos imorredoiros.

Os tempos
em que fui arquiteto das estrelas
não findaram.
Só que hoje
na bússola do tempo
por entre as traves encardidas dos bosques
e as ruas estouvadas das cidades
vagueiam almas vadias
almas impertinentes
almas que desajustam o tear dos auxílios.
Não precisam de estrelas para nada.

Ainda bem.
Era oneroso ser arquiteto das estrelas
e ter por esteio os lamentos dos outros.

23.1.17

#125

Não, há crise.
Não há, crise.
Não há crise.
Não à crise.

Cabo frio

Sabia o norte tecido
sem as rugas por ilhas
sem órfãos de ideias por perto
nem nas ilhargas sobressaltos outros. 
Tinha tudo ajuramentado
aos propósitos mais elegantes
(se à alma
alguma elegância pode ser adjunta).
Desembarquei entre os demais anónimos
sem saber deles as diferenças
sem me importar com seus fados. 
Ao primeiro golpe da alvorada
estimei sob meu corpo 
as veias crestadas precisas
para uma ignição. 
Não julgava ter o erro de estima
por companhia. 
Não julgava ter de hastear
a bandeira sem cores
a bandeira surda do tempo finito. 
Depois de passadas em revista
as páginas imerecidas
trouxe nas mãos as pétalas violeta
o sufrágio atilado da lua maior

22.1.17

Aquoso

Não era a chuva fantoche
que me importunasse.
Desci à chuva
o corpo suado por ela
em forma de janela aberta
e a chuva a entrar toda
sem pejo
sem limites.
Os instrumentos agraciados
fugiam das mãos
e um sonho vertido em pesadelo
enxaguava a água excessiva.
Tudo lavado
entretanto
e o peito preparado para outras
intempéries.

21.1.17

Agente secreto

Estouvados
em correria sem parar
como se de trás viesse um demónio.
Com a ambição de um refúgio
as paredes grossas
escondido do mapa
sem lugar no tempo.
A loucura sem marcas
menos as que se sentem por dentro
é a loucura no espelho
que são os outros.
Da loucura sentada sempre
no regaço dos outros,
e nós os únicos assisados.
Um anel sem rosto
e ladainhas incessantes
com uma espada sobre o devir.
Talvez seja a loucura maior:
pretender saber os cambiantes do amanhã.

20.1.17

Identidade

Lanterna apagada
no restolho das sombras
com instruções escondidas
sob as páginas adulteradas da manhã.

Avivada memória
derrama as nuvens céleres
sobre os torpes que cunham marés
com o frio que conserva sentidos.

Drogas esquecidas
ou então nunca sabidas
prometem avenidas largas
com a cidade entorpecida à espera.

Víveres rarefeitos
em deleites sem agenda
depois do acordar estremunhado
elegem o palco superior.

19.1.17

Na sela de um cavalo sem cabeça

Aposto
três dias de soldo
no insaciável magusto das lápides.
Aposto
como os artesãos
não deixam de as talhar. 
Não que venha grande mal ao mundo,
que os lugares atulhados
(e, ainda por cima, de imorredoira gente)
seriam destino inenarrável,
coutada de gente-fantasma
e de fantasmas feitos gente. 
Em má sendo uma hora,
que Ícaro cuide dos vivos
em tratando de encomendar lápides
para os que são tidos na roleta dos sobrantes. 
É costura que ninguém consegue derrotar. 
Os artesãos cuidam
de eternizar os desvividos em lápide:
ao menos por uma vez
um aplauso
mercê do punhado de palavras
cinzeladas em forma de elegia. 
(Ou o derradeiro solfejo de Ícaro
em paradoxal cartel com Tanatos).

18.1.17

Providência

Não se trata de rendição
nem de virar o eu do avesso
ou de esquecer o tempo fugido.

Não se trata
de adornar o fermento incapaz
nem de embuçar as palavras imerecidas
ou de emulsionar uma hibernação qualquer.

Não se trata
de separar os braços metidos num amplexo
nem de protestar contra marés embestadas
ou de ousar milagres como desfecho.

É só uma modesta proposta:
juntar nas mãos a natureza viva
aspergindo-a em redor
até que uma profusão de confettis
chova sobre o chão inesperado
e o seque das lágrimas vetustas.

#124

Uma viagem
sem esporas nem mapa
as mãos desatadas
e os olhos sem sono
desembaciados. 

17.1.17

Desordem

A desordem
é a ordem dentro da ordem
o buço mestiçado em ária incapaz
dentro de uma tina de vinho tardio. 
Pelas costuras da desordem
sobe a pulso um oxigénio remoçado
duro como carbono em fibra
na atalaia constante dos operativos mastins. 
Se na desordem houver fronteira
abracem-se as virgens enquanto for tempo
mergulhem cabeças intempestivas
nos licores salgados
dancem os velhos trôpegos.
E, nos interstícios do teatro hasteado,
num intervalo das pontes fruídas,
todas as arengas dissolvidas
no libreto da desordem. 

Noite sobre noite
sem tempo que chegue para a luz diurna
em promessa
com a desordem por notária. 

#123

Se eu te contar um segredo
prometes
que só mo contas a mim?

16.1.17

Dormente

Dou o ouro que há em mim
sem a água rasa das minas
com as lágrimas engolidas de fiada
com o pé largo do mundo sem rasuras.

Grito.
Grito surdamente
como se o grito deslaçasse o fio negro
e as botas aprumadas no caudal
se revezassem na orla estimada dos céus.
Mergulho a cabeça na água
como se isso fosse predicado
como se fosse segredo em danças sem sal
em provectas imagens de uma claridade rara.
Dou as mãos às algibeiras
pois parece que,
tementes,
precisam de se abrigar do frio madraço.

Não acabo sem perguntar
às lombadas alinhadas
desde o sofá solitário
se os arranjos do tempo explicam os acidentes
as cósmicas congeminações à margem de deuses
as árvores nuas no inverno sem luz
os rios aparatosos no coice da chuva imparável
a noite anestesiada
o rombo nas páginas enrugadas
a contrassenha dos segredos sem segredo
a tiragem contínua de uma ideia gasta
a romagem ao cemitério das rotinas
o fausto de caudilhos de si mesmos
o ar pesado nas imediações das fábricas.

Grito
outra vez
sem me ouvir.
Grito às ruas por onde arrasto o corpo
mesmo sem saber se as ruas se importam
se os deuses que guardam o tempo
se importam.

Se ao menos
não tivesse dado
o ouro que se guarda em mim
hoje seria a misericórdia da miséria.

#122

Tirei uma dúvida
e às dúvidas devolvi
eu sei lá quantas interrogações.