11.2.16

Bússola

O peito encharcado
do vinho que deitamos em nós.
As mãos treinadas
no pulsar do teu corpo.
Os olhos fundidos
em êxtase matinal.
Os percursos abonados
pela batuta eterna.
O sol poente
sem deixar vestígios atrás.
Chegamos à demanda
enquanto sopramos pétalas de rosas.
Divagamos
cantamos
dançamos
(sim, dançamos, se preciso for)
contemplamos.
Ajuramentamos o fiel do tempo
à medida do nosso olhar.
Sabemos de cor
a cor dos poros das peles nossas
a música das nossas veias.
Sabemos como subir
aos bosques frondosos só nossos
como adestrar os ramos orvalhados
e sentir o palpitar incorporado num só.
Às noites por serem noite
aos dias por serem sua antítese;
quando quisermos que a noite seja
e quando fizermos os esteios do dia.

10.2.16

Pontuação náutica

A bombordo
as pedras puídas
encarceram a noite.
Por mais voltas que dê
os escombros do corpo
desmaiam na música em murmúrios.
O mar soado na funda memória
desaprova as incontinências
que ocupam o sono.
A estibordo
rostos grandes e alvos
apaziguam o mar rombo.
Deslaçam as planícies feitas
no mar aveludado
enquanto tiros de pólvora seca
escorraçam abutres esfaimados.
Já sabia
que devia ter escolhido estibordo.

9.2.16

Colóquio

Tirando
as cordas vivas
o mar rasante
os nenúfares amarelos
as nuvens caiadas no céu
o cão vadio que mendiga mimos
os botões de punho aristocratas
as resmas de papel que armazenam nada
os beijos arrebatados
as facas quietas
as canetas à espera
a pele sentada
e o gelo quente
nada se revolve na impureza das cicatrizes.
Nada agarra
o vento quente
o mestre experiente
a bola furada
a traineira ousada
a neve tardia
a bala retida
a palavra acertada
a raiz profunda da alquimia.
E eu sou
juiz de todas as medidas
e a mim chamo
as fazendas que servem de agasalho.

Terra molhada

A terra molhada
acalma.
Transpira pelos poros
todos os poros.
Ou serão lágrimas
que fogem da escura terra
por quererem beber
na luz desmaiada do dia chuvoso.
A terra molhada
acama
os tremores que sussurram
à boca da noite.
Feitos amálgama
futuro fermento dos tempos ávidos.
Sem a terra molhada
não há suor
não há lágrimas
não há tremores
nem sussurros:
não há a feição nobre
aprisionada no lado oculto
do suor
das lágrimas
dos tremores
e dos sussurros.

8.2.16

A cadeira

A cadeira de três pernas
aguenta-se,
impecável,
sem tergiversar.
Exemplo de um equilíbrio magistral
não vacila com o vento
nem hesita quando sopram terramotos.
A cadeira está manca
mas não manca.
Não precisa de muleta
e recusou,
até,
ajuda diligente de um carpinteiro.
Teimosamente
mantém-se escorada
em cima das suas três pernas.
Não se importuna com intempéries
ou com os alvoroços que chegam
amiúde.
Um dia perguntaram-lhe
onde tinha perdido a perna (em falta).
E ela,
impassível (como sempre),
perguntou ao perguntante
se tinha certeza do que a pergunta continha.
Disse,
em bom idioma
para ser percebida aos ventos todos,
que tinha as pernas todas
e bem aparafusadas.

5.2.16

O novo inverno

Dá-me o sol
a centelha que derrota a penumbra.
E sabendo da luz que retalha
assobio ao alto
para ver se a invernia se eclipsa.
Lá fora
tímidas flores vicejam nos arbustos
não sei
se em sinal de primavera apressada
ou porque também querem beber do sol.
Na passagem de um tempo configurado,
à memória vêm fragmentos ao acaso.
Os mais velhos dizem deste inverno
(contristados, mas às avessas)
que se enamorou da primavera,
de tão soalheiro e ameno.
Talvez estejam errados,
os velhos:
as rosáceas vítreas
os campos floridos
as pessoas que se entristecem
com os rigores do inverno
– todos protestam a nostalgia dos velhos.
Na luz da mudança
pontos cerzidos na andadura do tempo.

4.2.16

Da arte malsã

Os bichos
ao menos não tresleem.
Não se incomodam
com políticas coisas
que adulteram o autêntico.
Não falseiam nem mentem.
Não navegam em desleais águas.
O mesmo
mutatis mutandis
vale para as pedras amontoadas nas serranias
as árvores que esperam o tempo
os paus perdidos
o ar que povoa o ar
os demais elementos da natureza
as telhas de uma casa
todo o metal fundente nas siderurgias.

Já certa gente,
que por gente ser
se apruma antropocêntrica,
bolça metal fundido em oxidados sentidos
abriga telhas de vidro no compasso das lições
torce o braço à natureza
polui o ar que lhe é dado
e dos paus
o mais que se afigura
é ser seu dorso merecedor de açoites.
Certa gente
tão sequiosa do centrípeto trono
que suga as árvores por dentro
dissolve as pedras à volta
mata as águas onde se banha.
Mente e falseia
com os dentes todos
que divindades compassivas ainda lhe conservam.
No dicionário que habita
lobriga na falsidade
na ludibriosa hermenêutica
ou não fosse gente assim política personagem
habituada a desdizer sem corar
nem que lhe caiam os dentes que ainda tem.

Não admira
que gente assim
não goste de animais.

3.2.16

Marco geodésico

A boca prova as nozes noturnas
devolve em dobro os prazeres possíveis.
Os animais contorcem-se
mas não é de dor,
é do amplexo de ternura
do contágio dos suores benignos
das ramagens das árvores perfumadas
em que eles se aninham.
Vão felizes,
os animais,
senhores da sua ciência.
Vejo tudo isto
com os olhos sequiosos
com o dorso curvado sobre o terraço
que é sobranceiro ao mundo.
As mãos sentem o calor da terra
sobem à fronte
limpam as gotas de suor que lacrimejam,
selando o cansaço.
Não há queixumes
não há pesares
pelos idos que se reverberam
nem um pulsar tóxico a derrotar a pele;
há,
apenas,
o sentimento maior
ondas que se agigantam
o desenho belo das silhuetas
o ciciar que adormece
dedos entrelaçados
que emprestam febre aos corpos.
Visto de fora
o quadro sublime
espraia-se no estirador
onde se afinam as palavras:
apetece beber na terra
beber nos sortilégios ditados pelas palavras
domar o cavalo furioso que seja impedimento
travar os alvoroços que esvoejem.
Aportamos
onde a madrugada alisa os suores frios
à espera que a alvorada solte seu freio
e depois tudo seja
claridade a desobstruir estorvos.
Até que nas mãos repouse
o ouro puro
o esteio calculado
os olhos desalfandegados.
E o amor inteiro.

2.2.16

Bons rapazes

Intrépidos
os rapazes fugiam do sossego.
Desassossegavam as campainhas dos vizinhos
e deitavam-se a fugir, em louco corre-corre.
Amarravam os cornos das vacas ao cercado
gastando gargalhadas diante
do gado desembestado.
Bebiam vinho por copos de leite
pagavam à cidade com altercações
quando a cidade perseguia a noite tranquila.
As fisgas cuspiam pedras afiadas.
Do alto do prédio
disparavam sacos de água
zelosamente ao lado de quem passasse.
Passavam o tempo a arranjar partidas
nem que fosse para matar o tempo
(que o tempo desocupado era fértil).
Não era por mal
se acaso causassem dano
– e, assim como assim,
o dano não era um rasgão doloroso
na carne das vítimas.
Um dia,
já espigadotes,
caíram no engodo de umas raparigas.
Achavam que iam ter deleites,
não desconfiaram das facilidades.
Acharam-se prisioneiros
numa fábrica sem serventia
reféns de uma armadilha.
Não tinham saída
e a noite teve de ser ao relento
assaltados por um frio invernal.
Dois dias depois
a polícia veio em resgate.
Famintos e cheios de frio,
as mãos trémulas nem conseguindo segurar
os mantimentos de emergência,
quase juravam que não voltariam
a ser estarolas.
Mas apenas quase foi a jura:
depressa o sangue ferveu nas veias
e as promessas da aflição
nem subiram à boca de cena.
Estava-lhes no sangue
serem doidivanas sem freio
madraços sem remédio
rasgar roupas puídas nas aventuras demenciais
insultar agentes da autoridade
pregar sustos a senhores bem-apessoados
e rir,
rir tudo o que vinha da barriga
sem travarem a função.
Suspeita-se
que eram tutores da felicidade
inteira.
Deles não há notícia
tempo bastante depois
para serem adultos e bem-postos
(ou adultos e em perdição).
Do seu paradeiro não há menção
nem os vizinhos sabem onde se dissolveram.
Os bons rapazes
em segredo
à distância e sem se verem
cultivam ainda
a frenética passagem pela juventude.
E conservam comendas que o atestam.
Call me
in the storm.
Calm me
in the storm.

1.2.16

Estrelas cadentes

Estrelas cadentes
não se aguentam no parapeito da janela.
Exibem lustro
muito lustro
sem deixarem de ser pólvora seca.
Estrelas que cadentes se ensaiam
em simulando sua própria incandescência
fadadas estão ao sepulcro sem remédio.
Por cadente condição,
estrelas não chegam a ser.
A não ser
no pequeno quarto escuro
onde lobrigam,
pequenas luzes fundidas
que são coorte de si mesmas.
Decadentes:
é o que são.

29.1.16

Vulcão

Trazia as mãos molhadas ao peito
com sede de o arrefecer.
Foi assim
enquanto duraram as tempestades
enquanto pesadelos furtivos caiaram
as paredes do sono.
Receava que a alvorada
fosse uma partida sem chegada
que pedras grotescas mortificassem o peito.
Parecia
que o chão tinha a quentura de um vulcão
e toda a aderência dos pés
se derretia na lava ácida.
Mas isso
foi no tempo das tempestades irrefreáveis.
No tempo
em que as alvoradas tinham a forma
de penumbra
os ossos doíam num desfalecimento
e o sono era contumaz.

Agora
subo ao promontório,
ao mais alto de todos,
e levo comigo a inteireza que sou.
Sou capaz
de ver a alvorada
por entre a noite medonha.
Sou capaz
de decantar as palavras malditas
meditar sobre os sobressaltos espúrios
raptar da maldade a maldade toda.
Agora
abro o peito inteiro
ao vento frio que desalinha os cabelos
no mais alto promontório.
De onde vejo,
com o olhar de lince,
os antúrios a medrar
o rio a escorregar para a embocadura do mar
as neves teimosas atapetando os sopés
um falcão em suave coreografia
o vulcão com a lava arrefecida
e ao longe
o fumo das chaminés
desdizendo o frio invernal.

E sei,
agora,
quando descer ao casario
ter nas portas entreabertas e nas janelas
um trunfo que derrota intempéries
por dentro.
Sei
que não há ideias desarrumadas
nem zeladores da inverdade
a furtar as flores coloridas
que compõem a planície.
Pois sou eu que as tutelo
dia e noite
protegidas contra sabotagens.

Agora
de dentro do peito
gritam as palavras belas.
E agora,
por entre as portas entreabertas
e as janelas oportunidades,
sou rei do reinado reposto,
sem dar conta às cinzas embotadas.

Agora
apenas o ouro da coroa do rei
e os dedos de veludo
em récita generosa. 

28.1.16

Fonte fresca

E assim paramos diante
da fonte fresca
onde às mãos trazemos urze
e fruímos seu perfume.
As montanhas desenhadas no horizonte
abrigam os pressupostos da quietude.
O lento pulsar de tudo
é mapa a preceito.
A água fresca
o património que resguarda
a capacidade de remoçar.
E a vontade, também.
Como a água
que desabrocha da fonte fresca.           

27.1.16

Do tempo adiantado

O menino agarrado ao gato
no sono do gato
rima com o seu ronronar.
Espreita pela janela
bebe as cores diametralmente opostas
do entardecer.
Imagina-se mais velho
sem o torpor da meninice
uma ferrugem que embacia empreitadas.
E ele tinha tantas
arqueadas sobre o portal das resoluções!
Afaga o dorso do gato
e o gato espreguiça;
no fundo,
o menino quer o futuro adiantado
mexer nos relógios que amparam o tempo
torcer o braço ao tempo
para se fazer cedo
(cedo de mais).
Se aprendesse com o gato poltrão,
se ao menos levasse o olhar
à lição do gato,
traria do futuro ao tempo de agora
a alucinação do sono demorado
e o culto do vagar.
Um dia
o menino confidenciou
dramas extemporâneos ao avô.
Talvez por causa da surdez do velho
não pôde congraçar a lição que o gato
em seu regaço
silenciosamente emoldurava.

26.1.16

Medos sem medo

Seriam
vultos efémeros
palavras furtivas e negras
fantasmas
uma serpente colérica.
Seriam
medos a embaciar o sono
semeando sonhos plúmbeos
o corpo atamancado num túnel
ou nu no meio de nada
com vergonha de tudo.
Medos.
Das coisas difíceis
que por difíceis são tomadas.
Guarda-chuvas lilases e rotos
uma rosácea apodrecida
sem serventia.
O mar parado
com as ondas em greve
árvores estéreis
o arco-íris despojado de cores
e a madrugada
numa litania que coalesce.
Os números em desordem
desarrumando o pensamento.
Gatos ciciando o medo da água
e a água ausente em estio fora de época
tendo por baças as lentes do tempo.

Mas dos medos soergueu-se
o medo deles.
O que faria mais sentido:
a consumição dos medos
ou meter um medo de morte
aos medos todos?

25.1.16

Nórdico

Algures
onde o sol da meia-noite
beija as nuvens desmaiadas
e os alces correm desenfreados;
onde
no inverno anterior
houve auroras boreais
e nevões fartos:
é o regaço de um lugar consentido.
Mesmo que
nos antípodas do sol da meia-noite
haja noites imorredoiras
selando sombras medonhas
que esfriam os timoratos.

22.1.16

Leftovers

Os restos de um telhado
enchiam o chão.
Estilhaços vários
dançavam no vento.
No ventre da noite
os dentes afiados,
famintos.
Ouço dizer
que já não sobra nada
a não ser os despojos silenciosos.
A noite fantasma
deita uma cortina opaca
e talvez nem o amanhecer chegue
para tirar as teimas.
Não há de ser grande o desarranjo:
os despojos são palco habitual.

21.1.16

Floresta dos sonhos

E assim chegámos à floresta dos sonhos.
Notamos
pelo sal acetinado
que era o sabor na boca.
Pelos cães que tomámos por vadios
mas que eram dóceis.
Soubemos ser dos sonhos a floresta
pelas árvores caiadas com os nomes nossos
pelos rios de águas chamativas
pelo lucro das almas que embolsámos.
Dissemos:
deixemos que os labirintos da floresta
sejam nossa perdição;
deixemos coagir a vontade
até sermos despojados da matéria destilada
e então alcançarmos
a inteireza prometida em sonhos.
Em não sendo infinita a floresta dos sonhos,
ao sairmos pelo portal
ganhámos os sonhos em nossas mãos.
Soubemos:
que os sonhos eram tradução
da agora matéria sensível.

20.1.16

Devidamente admoestado

Os dons dados aos druidas
repicavam sinos das aldeias
dardejando os diamantes diuturnos.
Desde então,
desgrenhadas as barbas dos druidas,
os doidivanas demitiram os diademas
que os amesquinhavam.
Doravante
só contam os dados deitados
no destravado mar:
ditam a desdita e o seu contrário.
Sem dons
(e apenas humildade)
os demais desmaiam na dicotomia.
Dedos divinos
não lhes distribuem dádivas.
Desde então
só desvios dos descansados dias.

19.1.16

Tentativa do bem

Por um lado
os autores da boa moral.
Desconfio.
Uma moral fica rasa de bondade.
Uma moral,
ao querer ser moral,
esvazia-se de bondade.
Mas
– e depois –
por que precisamos de bondade?
Por outro lado
as leituras que decifram
a antítese da bondade.
Instintos maus
maldade perversa
malvadez militante
e pessoas a sofrer.
Não
não se recomenda a maldade.
Mas não nos defendamos
com sermões bolorentos
invocando o fungo da bondade.
Deixemos o resto à semântica;
a uma reinventada semântica:
pois talvez
seja apenas uma questão de demarcações,
o bastão da maldade
derrubado pela generosa bondade
(mas até podia ser ao contrário).
Sobra
o estalão dos conceitos
e a profusão de juízes dos demais;
coisa desnecessária,
em remate de ideias.

18.1.16

Interminável

Invocavas um fado generoso
um tempo luminoso
um peito cheio de glória
um sangue descontaminado
dos pérfidos querubins
em teu redor.
Não te cansavas das preces
exortando os bons espíritos
contra as sombras malditas.
Convocavas as santidades
em rima com as preces:
suplicavas amanhãs diferentes
sem as algemas do arrependimento.
Porém
por mais
que as curvas te parecessem retas,
na contabilidade das coisas,
quando os pés voltavam ao chão
e os olhos retomavam lente desembaciada,
tomavas nota da argúcia dos fazedores de fé,
de como não te podias entregar
nas suas mãos.
E então
choravas as lágrimas sem peias
amaldiçoavas a inocência irrefreável;
juravas que era a vez derradeira
e que os espelhos vindouros
teriam um banho de diferença.
Até nova importunação crítica
tomasse seu poiso
e em teus olhos
o de antanho voltasse à mercê da repetição.
Não tinhas remédio.
E sabias
(só sabias)
que as distintas proclamações
vertidas em tinta da China,
as juras de ventos outros
a tomarem-te como bálsamo,
eram inoportunas canseiras.
Já sabias:
os sonhos não são grande dano
mas também não afivelam propósitos
que se vejam.
Não estranha
que fosses contumaz à novidade.